Brecht – interesse social, político e experimentação formal
O que o levou a se aproximar do pensamento de Bertolt Brecht? Como surgiu a Companhia do Latão e a Pesquisa em Teatro Dialético desenvolvida pelo grupo?
Sérgio de Carvalho – A Companhia do Latão começou como qualquer outro jovem grupo de teatro interessado em pesquisa de linguagem. Aproximamo-nos do teatro de Brecht quando percebemos que não existe linguagem neutra e que as formas da arte traduzem visões de mundo. Quer dizer, percebemos que um grupo artístico interessado em assuntos sociais deve ser também grupo de trabalho interessado em formas críticas novas de representar a sociedade. Segundo uma das lições que o marxismo nos dá, os pensamentos dominantes de uma época são os pensamentos da classe dominante. Podemos estender o raciocínio e verificar que as formas dominantes de uma época são as formas da classe dominante. Nos padrões visuais, rítmicos, naquilo que os olhos e ouvidos percebem, nos jeitos de nos emocionarmos existem padrões associados historicamente a pontos de vista de classe. Então, a tarefa de um artista marxista passa a ser, também, desmontar a ideologia dominante tal qual ela aparece e se esconde nas formas. Às vezes é mais fácil perceber a ideologia dominante nos discursos – perceber que esse discurso é falso na sua promessa de universalidade – do que perceber isso no campo das formas sensíveis. Para isso, Brecht é uma ferramenta fundamental: sua crítica não incide só sobre os assuntos, mas sobre a própria representação. É um artista que une coisas difíceis de juntar: interesse social, político e experimentação formal.
Qual a principal novidade na forma épica criada por Brecht?
Sérgio de Carvalho – Em primeiro lugar, a forma épica tenta superar o individualismo e estimular um olhar histórico. Ela tenta mostrar que os indivíduos agem determinados por forças sociais amplas e, ao mesmo tempo, se autodeterminam no diálogo com essas forças. E que isso se construiu ao longo do tempo. Então, de um lado, a forma épica mostra a mentira do projeto burguês do sujeito livre, mostra a mentira da autonomia do indivíduo, desmascara a idéia de uma mobilidade social ao alcance de qualquer um. Ela mostra que é uma mentira de classe dizer que somos todos livres para agir e nos realizarmos. E faz isso mostrando diferenças históricas. E, de outro lado, o teatro épico faz a crítica da atitude contrária, que seria dizer “estamos dominados pelo sistema; somos bonecos da história, somos marionetes”, portanto imutáveis. Ela mostra que esses extremos – a mentira do sujeito livre e o ponto de vista de que o sujeito está completamente esmagado pela mercantilização – precisam ser submetidos à crítica. Evidentemente, no mundo atual, a mercantilização está em estágio avançadíssimo, e os estragos sociais disseminam a desumanização. Em outras palavras, o campo de determinação é muito maior do que o campo de ação livre. No entanto, o teatro épico não endossa o fatalismo. Ele não endossa a idéia de que o jogo do capital já está ganho porque seria rebaixar a perspectiva histórica. Ele não endossa a idéia de que não existe transformação possível. Ao contrário, ele é um teatro que trabalha para a transformação. Assim, o teatro épico não se dá no plano formal apenas, ele trabalha fora da arte na construção de uma atitude material que se dialetiza com a história presente e com o refluxo da luta. Para muitos jovens grupos de teatro, basta pôr narrativa em cena, quebrar com o drama para se fazer teatro épico. O teatro épico é mais do que isso, porque ele exige uma crítica dialética e política das formas. Ele exige um desmonte ideológico, uma perspectiva antiideológica, materialista. Para mim, o grande teatro épico, para o qual Brecht abriu caminho, é radicalmente materialista.
Parte da crítica jornalística possui uma atitude preconceituosa com o teatro de Brecht. Este incômodo se deve ao conteúdo político de suas peças?
Sérgio de Carvalho – O incômodo com o Brecht é completamente ligado ao conteúdo político. Só que a crítica jornalística não explicita isso. O que ela faz? Ela o desqualifica esteticamente, ao dizer “a estética dialética, a estética brechtiana, é ultrapassada; a história mostrou que isso acaba sendo proselitismo; não faz mais sentido porque o engajamento é uma atitude superada”. Então, existe um esforço de desqualificação estética para não assumir que a diferença de fato é política – o que gera textos patéticos. Quase sempre as críticas ao teatro do Latão e às peças do Brecht são toscas do ponto de vista intelectual. Elas não se sustentam porque são baseadas num esforço de mistificação do crítico. Tanto que procuro responder a algumas delas, principalmente quando são muito violentas e quando reforçam o estereótipo de que toda atitude politizante em arte é chata, racionalista, sem vida, que mata a emoção, mata a subjetividade. Quando esses preconceitos são reforçados – e isso acontece desde os anos 1930, porque o Brecht já convivia com eles na Alemanha – procuro responder e mostrar que existe um falseamento da perspectiva histórica. Dizer que isso está superado pela história significa não entender de fato os movimentos contemporâneos da história.
Quais os caminhos para levar o espectador a ter a atitude crítica proposta por Brecht?
Sérgio de Carvalho – São muitos os caminhos. Num primeiro nível, esse caminho passa por trazer temas aos quais o espectador não está habituado a ver. Ele está acostumado a consumir um tipo de assunto: sempre as mesmas e velhas histórias familiares, histórias de dificuldades amorosas, desencontros, as crises de subjetividade etc. Os temas dominantes da representação têm um conteúdo de classe muito forte. Para mim, a simples presença de um tema novo, de um lugar e um tempo social com os quais o espectador não está habituado, já estimula um prazer diferente. Depois, a forma: o espectador tem prazer em encontrar jeitos diferentes de ouvir e ver histórias ou pedaços de história. Quando mostramos não ser preciso sempre criar a emoção convencional, o medo exagerado ou o desejo sexualizado para se despertar interesse pelo que está sendo visto, o espectador participa daquela construção formal. Ele deixa de ter uma relação passiva com a arte. Eu sinto que o trabalho formal tem de ser renovador a ponto de, inclusive, deixar espaço para o espectador trabalhar. O espectador precisa se sentir produtivo dentro das obras, ser co-responsável pela narrativa. A boa história não vem pronta para ele. Ele precisa participar da sua construção, desconfiar daquela narrativa, atuar sobre os materiais, trabalhar seus sentidos. Portanto, é uma história que não pode vir moralizada, porque no fundo a questão importante acontece fora do teatro: no trabalho dele na rua, na sociedade. Na indústria cultural o espectador está acostumado a consumir imagens prontas. Ele tem explicação para a imagem, ela já vem com legenda moral. Ele já conhece sua resolução, já sabe o desejo que vai nela projetar. Além disso, um trabalho de arte interessante desautomatiza a relação com o sistema produtivo. Ele mostra que em algum nível a arte precisa se atirar para fora do sistema das mercadorias. Aquilo não foi produzido para ser trocado, mas para ser útil. É uma utilidade às vezes da ordem do inútil – a utilidade estética. Ela não é imediata, não está ligada à sobrevivência imediata, não está ligada à apropriação do objeto. Ela está ligada a campos amplos do imaginário, do intelecto. Para mim, portanto, é preciso descobrir um jeito de alienar o valor de troca em favor do valor de uso, o que pede mudança das relações de trabalho e uma inserção diferente no sistema produtivo, algo que vá contra a expectativa desse sistema produtivo. Quer dizer, se alguém vai ao teatro para ver uma peça essa peça de alguma maneira tem de ir contra a expectativa que a instituição teatral tem sobre ela, contrariar o ambiente burguês com o qual dialoga…
Deve apresentar contradição…
Sergio Carvalho – Alguma contradição em relação àquele ambiente em que ela está inserida. Tem de ter algum nível de perturbação em relação à instituição. Sinto que ela tem de revelar um desacerto: o da produção cultural na sociedade capitalista. Questão da qual não temos como fugir. Assim, o espectador pode chegar a vislumbrar atrás da mercadoria um produto. E atrás do produto um processo. Por trás dos véus de coisificação, ele pode perceber que existe gente ali que gastou parte da sua vida para fazer o melhor naquilo, que se está tentando fazer algo diferente naquele trabalho, nem que seja um testemunho desesperado sobre a desumanização. Tenho certeza de que muito da qualidade do Latão tem a ver com uma atitude de trabalho que transparece para além do espetáculo. Não é só a qualidade formal: é uma atitude de processo coletivizado que fala junto com a história. Essa atitude talvez seja uma impressão da beleza e da dificuldade de se trabalhar numa perspectiva desalienante, para superar o trabalho alienado. O espectador pressente que naquele momento fugidio do teatro tentou-se romper o ciclo da alienação do trabalho, a falta de liberdade do mundo capitalista.
A atitude que está além do discurso…
Sérgio de Carvalho – Acredito que sim… Não acredito em militância política pelo discurso. Acredito em militância política pelo exemplo prático, pelo modelo, pela atitude, pela construção de formas novas e pelas relações de trabalho igualitárias. Não se modifica ninguém puramente pelo discurso. É impressionante a habilidade do capitalismo em desorganizar a sua contestação. É até maior do que a capacidade dele em não se desorganizar – porque ele entra em crises sucessivas e no mesmo movimento desorganiza a contestação, controlando-a por novas ordens perversas. E esse controle não é só ideológico. A indústria cultural ganhou uma força enorme na nossa era, mas ela seria nada sem as relações de trabalho precarizadas que facilitam a ideologia do individualismo. Não é porque alguém diz para as pessoas salvarem a própria pele, atingirem suas metas como se fossem todos empresas ambulantes, se tornarem sujeitos livres pelo consumo cego, que elas vão de fato fazer isso. As pessoas fazem isso porque precisam sobreviver autonomamente no mundo do trabalho precarizado. Elas passam a ser patrão de si mesmas, se tornam pequenos funcionários do capital. E então a ideologia floresce. A ideologia do individualismo viceja onde ela encontra uma pessoa abandonada ao Deus dará. A pessoa está desgarrada de uma força coletiva. Portanto, para mim, o discurso político também tem de criar base política das relações de trabalho e dos exemplos e modelos ativadores, capazes de criar uma co-responsabilidade na mudança. Do contrário é pura ideologia. Agora em 2006, ano dos 50 anos de morte de Brecht, a Companhia do Latão encena O círculo de giz caucasiano, outra importante peça do autor, que levanta a questão de “a quem deve caber as coisas” – a exploração da terra, quem deverá cultivá-la? Na montagem da Companhia há uma clara ligação deste debate com a luta dos sem terra no Brasil. É necessário para o seu trabalho a investigação e a ligação com o momento histórico atual?
Sérgio de Carvalho – Muitas vezes o Brecht fazia uma peça que se passava no século XVII para discutir a Alemanha contemporânea. É possível isso. Não é preciso atualizar diretamente uma peça para fazê-la dialogar com o tempo atual. Entretanto, um artista crítico seleciona os materiais à luz de sua situação histórica. No Círculo de Giz existe um prólogo que se passa na União Soviética. Como é histórico, datado no bom sentido, resolvi criar um segundo nível narrativo contemporâneo. Fizemos um prólogo em vídeo que passa num assentamento do MST no Brasil de hoje. Até para mostrar a diferença histórica. Na situação socialista de Brecht, os camponeses discutem a ocupação da terra de forma amigável. No Brasil de hoje não existe debate amigável na hora da ocupação. Ao contrário, o direito à terra depende do conflito. A situação amigável é aquela posterior à conquista, quando, por exemplo, o grupo de jovens que entrevistamos no assentamento nos mostra que sua capacidade cultural depende do fato de morar perto, numa agrovila. É por terem conquistado uma nova situação de trabalho que podem inventar o novo, imaginar uma vida melhor, sonhar com coisas diferentes. . Num país em que a reforma agrária nunca foi feita, de absurda desigualdade no que se refere à questão da propriedade da terra, usamos o texto de Brecht de um modo posicionado. É como se estivéssemos dizendo aos espectadores “essa fábula que os senhores vão ouvir trata, na verdade, do tema do direito à propriedade. E ela nos lembra que a manutenção dos privilégios relativos à propriedade tem sido uma importante tarefa da justiça burguesa”.
Ao pensar o atual desenvolvimento do capitalismo e a realidade brasileira, a partir de um dramaturgo alemão, a Companhia faz um exercício de reinventar a poética de Brecht. Como Brecht tem sido tratado no Brasil?
Sérgio de Carvalho – No caso do Latão, sempre senti que era preciso mudar Brecht no que se refere ao tratamento das figuras burguesas. Nossa elite tem rostos e padrões diferentes daquelas que aparecem no teatro europeu. E ao longo da nossa história, ela se comportou de modo diferente da burguesia francesa, inglesa e norte-americana (das quais copiava aspectos) porque ela nunca foi revolucionária. Ela não fez a revolução nacional, ou a fez muito tardiamente. Ela não fez revolução democrática. Mal fez a revolução industrial. Então, ela não assumiu as tarefas históricas assumidas pela burguesia quando chegou ao poder em oposição ao antigo regime. Aqui, pelo fato de ser uma burguesia ambígua e rarefeita, a dominação burguesa sempre assume formas muito diferentes em relação à européia. Então, no Latão isso virou um tema forte. Quase todas as peças escritas pelo Latão discutem a ambigüidade da elite nacional, a sonegação dos padrões burgueses convencionais, uso torto da ideologia liberal. A ideologia liberal na Europa tinha sentido de oposição ao velho regime, ela afirmava liberdade, era ideológica, era falsificadora. Aqui no Brasil ela esteve a serviço de coisas arcaicas, a serviço da própria escravidão. Alguns textos do século XIX de senhores escravos, utilizando todo o pensamento liberal, justificam que o escravo deveria continuar escravo porque afinal isso preservaria mais sua sanidade psicofísica. Quer dizer, o discurso liberal – que lá era ideologia – aqui virou farsa, veio pateticamente. Então, nosso teatro tem de ser outro. Nossas figuras teatrais têm de ser outras. Ao mesmo tempo, o ambiente da luta de classes no Brasil atual é diferente. Ele está em estágio diferente. Portanto, Brecht precisa ser reinventado. No Latão nós sempre tivemos esse cuidado teórico de usá-lo como modelo, como inspiração. A base do método brechtiano – a perspectiva dialética de uma ativação histórica – continua forte no nosso trabalho. Procuramos sempre representar de modo a mostrar contradições históricas do processo. Esse gosto brechtiano pelas contradições, por tudo que é contraditório, por tudo que gera movimento, continua na Companhia do Latão, com ênfases e usos diferenciados.
Qual o papel do artista de esquerda hoje?
Sérgio de Carvalho – A meu ver, artista de esquerda nenhum pode esquecer que a arte não dá conta das transformações revolucionárias, que a melhor e mais radical das obras de arte não isenta ninguém da necessidade de uma participação política, de sair às ruas, construir coisas boas coletivamente etc. No entanto, a arte tem poder de agregação simbólica. No mundo da indústria cultural esse poder aumentou. À medida que a indústria cultural atua na massa, a arte pode ter um papel crítico de oferecer modelos alternativos contra as formas dominantes atuantes no imaginário coletivo. Quer dizer, a maioria das populações pobres e trabalhadoras do mundo consome uma produção ideológica e de imagens gerada pelas elites. Para mim, um artista de esquerda precisa trabalhar para modificar isso. Ele pode produzir modelos de representação alternativos e, com o tempo, fazer com que esses modelos apareçam, se disseminem, interfiram no processo de produção social do imaginário. Logicamente, é preciso conquistar meios de produção simbólica em grande escala. Mas enquanto isso não é possível é preciso dar padrões diferentes, nem que seja para pôr mensagens na garrafa, como disse o Brecht quando morava nos Estados Unidos. Ali, ao perceber a violência da dominação burguesa no que se refere à indústria cultural, violenta, ele escreveu em seu diário de trabalho “talvez numa sociedade como essa só dê para pôr mensagens na garrafa”. Mas, as mensagens que ele pôs em garrafa continuam atravessando oceanos e estimulando outras formas de organização de trabalho, uma produção do real diferente. Assim, temos de trabalhar para o presente e para o futuro, enquanto uma situação histórica mais progressista não aparece. O pensamento socialista está numa fase de acúmulo de forças. Ele sofreu perdas históricas muito grandes nas últimas décadas e tem reconquistado espaços. E é o momento de aumentar isso. Na parte que nos cabe – a produção simbólica – isso deve ser feito com muita radicalidade. Por isso, desde o início, tive a preocupação de afirmar o sentido marxista do trabalho do Latão. Talvez isso nem apareça muito diretamente nos espetáculos, mas o método é influenciado pela dialética materialista.
E por isso quebra preconceitos…
Sérgio de Carvalho – No trabalho teórico que acompanha nossa produção sempre procurei afirmar isso. E quebra preconceitos porque nós mostramos que o marxismo pode gerar grande arte, à medida que ele radicaliza o senso de realidade. O espectador sente que aquilo tem qualidade artística porque tem a ver com o mundo real. Não se apresenta a vida como é, mas também como não deveria ser. Ele aprende a ter um olhar nas diferenças históricas. Ele vê na vida construída pela cena sua possibilidade de mudança. A meu ver, esse é um princípio do marxismo aplicado à arte: ver a realidade na sua perspectiva da mudança. E isso para qualquer espectador, mesmo o mais despolitizado, é animador, é transformador.
Ana Cristina Petta (Tininha) é atriz da Companhia São Jorge de Variedades.
EDIÇÃO 87, OUT/NOV, 2006, PÁGINAS 37, 38, 39, 40, 41, 42, 43