Fazendo uma comparação do contexto internacional entre o início do primeiro mandato de Lula e este segundo, quais as principais mudanças e possíveis conseqüências para o novo governo que assume em janeiro?
Luis Fernandes – Há um conjunto de diferenças, evidentemente. Eu chamaria a atenção para dois desenvolvimentos principais: o acentuado isolamento internacional e desgaste doméstico da agressiva agenda externa do governo Bush; e a inédita eleição de uma safra de governos progressistas encabeçados por distintas forças de esquerda na América Latina.
O contexto internacional do início do primeiro governo Lula, em 2003, estava dominado pela ofensiva política interna e externa dos Estados Unidos para atacar e ocupar o Iraque, a despeito de forte oposição e repúdio no restante do mundo. O presidente Lula prontamente se alinhou com as forças de oposição à guerra do Iraque. Nos Estados Unidos, no entanto, a adoção de uma agenda externa mais agressiva, belicista e unilateral como resposta aos atentados de 11 de setembro de 2001 serviu para recompor a abalada legitimidade interna da administração Bush. Esta fora fortemente questionada no seu início, em função de não ter alcançado a maioria dos votos populares nas eleições de 2000, e de só ter confirmada a sua eleição para presidente em processo duvidoso na Suprema Corte, em meio a graves acusações de fraude e manipulação eleitoral no Estado da Flórida, governado por seu irmão. Após o trauma dos atentados em Nova Iorque, a sociedade norte-americana se alinhou, pelo menos temporariamente, com a guinada política empreendida pela administração Bush, condensada na fórmula da “guerra global contra o terrorismo”. Este alinhamento se expressou no apoio majoritário inicial da opinião pública dos Estados Unidos às guerras no Afeganistão e no Iraque, e se desdobrou na própria reeleição de Bush em 2004, desta vez com maioria do voto popular.
O contexto em que Lula inicia seu segundo mandato já é bem diferente. O quadro, hoje, é de acentuado isolamento, desgaste e defensiva do governo Bush. O grande marco disso é o fracasso da guerra e a ocupação do Iraque. Apesar da esmagadora superioridade bélica das forças ocupantes, a situação no país está inteiramente fora do controle e sem solução à vista. Após três anos e meio de guerra, as baixas nas forças de ocupação não param de escalar, e o número de soldados americanos mortos já se aproxima de 3 mil (sem falar no massacre de 50 mil civis iraquianos). Fica cada vez mais claro que os Estados Unidos se meteram em um atoleiro militar e político semelhante ao da sua derrota histórica na Guerra do Vietnã. Antes considerado um tema “tabu”, essa comparação já começa a ser feita até mesmo em discursos oficiais do presidente Bush.
Na sociedade americana, o desgaste da política externa agressiva que havia recomposto a base de apoio do governo, agora abre nova crise de legitimidade interna. A administração Bush encontra-se isolada internacionalmente e na defensiva política dentro do seu próprio país. É um governo questionado pelo custo humano, político e financeiro da guerra do Iraque e que se defronta com uma crescente oposição à guerra na opinião pública doméstica. Esta oposição se torna ainda mais veemente pelo repúdio ao uso de uma mentira – a da posse de armas de destruição em massa pelo regime de Saddam Hussein – para justificar a sua deflagração. Esta guinada na opinião pública americana se materializou politicamente no avanço da oposição democrata nas recentes eleições para o Congresso, o que aponta um cenário desfavorável para o Partido Republicano nas eleições presidenciais de 2008. Portanto, há um quadro externo em que a agenda agressiva da principal potência mundial está claramente na defensiva, tanto interna quanto externa. Isso amplia o campo de manobra e o leque de alternativas de ação do segundo governo Lula. Vale destacar, aqui, a questão da Área de Livre Comércio das Américas (Alca). O primeiro governo Lula se deparou, logo de início, com uma disputa muito árdua em torno da Alca. Havia uma ofensiva muito forte do governo norte-americano para a sua criação, o que representava uma autêntica agenda neocolonial para América Latina. Vista criticamente pelo governo Lula, o Brasil optou por fazer um contramovimento que esvaziasse a ofensiva de Washington, remetendo os pontos que mais interessavam aos Estados Unidos na Alca para discussão no âmbito da OMC. Foi um movimento vitorioso. Hoje a Alca é um tema enterrado, pelo menos na sua versão original. Ao invés de uma ofensiva global sobre o continente, os Estados Unidos manobram para firmar acordos comerciais bilaterais e minar o projeto de integração sul americana em torno do Mercosul. Essa evolução evidencia, na nossa região, como os Estados Unidos tiveram de refluir de uma agenda ofensiva para uma postura defensiva e reativa.
O segundo desenvolvimento mais marcante, e que está entrelaçado com o primeiro, é a guinada política ocorrida na América do Sul ao longo do primeiro mandato do governo Lula. Junto com a eleição de Hugo Chávez na Venezuela, a primeira eleição de Lula no Brasil marcou o início de um novo ciclo político na região, com a eleição de governos progressistas liderados por variadas forças de esquerda. Estes governos são representativos de novas forças sociais e políticas, eleitos com base em uma agenda de crítica às reformas liberalizantes implantadas na região nos anos 1990. O presidente Lula, ao ser eleito em 2002 e ao assumir em 2003, foi uma espécie de ponta-de-lança desse ciclo. Mas ele agora é reeleito no contexto de ascensão de vários governos na América do Sul com feição político-ideológica semelhante. Já mencionei a eleição do Chávez, que antecedeu a primeira eleição do Lula. Tivemos, ainda, a eleição do Kirchner na Argentina; do governo da Frente Ampla no Uruguai; a “mudança de guarda” no governo encabeçado pelo Partido Socialista no Chile (apesar das nuances e de certa proximidade com a política norte-americana para a região); a vitória de Evo Moralez na Bolívia; e de Alan Garcia no Peru (com a derrota do governo Toledo, que tinha uma feição marcadamente neoliberal na sua política econômica). É possível, ainda, um desfecho político semelhante nas eleições presidenciais do Equador; bem como na Nicarágua (na América Central). Conforma-se, assim, uma nova espinha dorsal política na América do Sul, muito mais distante da influência dos Estados Unidos sobre a região e muito mais propícia, apesar das diferenças e dos obstáculos existentes, a avançar no projeto de integração regional a partir do próprio Mercosul.
Com isso, abre-se uma nova perspectiva para o tema prioritário da agenda externa do governo Lula, já implementado no seu primeiro mandato, mas que reúne, agora, condições políticas muito propícias para o seu êxito e aprofundamento: o da integração regional sul-americana, como embrião de um pólo contra-hegemônico na América Latina.
Essa segunda evolução está entrelaçada com a primeira porque ela também expressa o isolamento político da agenda do governo dos EUA na região e um distanciamento dos nossos governos em relação à agenda liberalizante que predominou aqui nos anos 1990. Isto cria um ambiente muito mais favorável para se avançar na integração regional com base em uma agenda de integração física, produtiva e política. Em outras palavras, nos marcos de uma agenda de convergência de políticas de desenvolvimento e, portanto, crítica da agenda da privatização e da desregulamentação econômica. Trata-se de ambiente muito favorável para a evolução do governo Lula no seu segundo mandato.

Concomitantemente a esse movimento de integração sul-americana, há o movimento em busca de parcerias estratégicas com grandes países em desenvolvimento…
Luis Fernandes – Além dos fatores antes comentados, o cenário que se apresenta mais favorável para a ação do segundo governo Lula refere-se à consolidação de um conjunto de parcerias estratégicas. Isso também se entrelaça com o crescente isolamento internacional da agenda externa agressiva da administração Bush. Mas, ao longo dos últimos quatro anos, vimos o avanço da consolidação de lideranças regionais, em diferentes partes do mundo, com agendas, em geral, contra-hegemônicas em relação ao poder exercido pelos EUA no sistema internacional. O que se apresenta como perspectiva agora para o segundo governo Lula é a possibilidade efetiva de consolidação de parcerias estratégicas com esses pólos regionais.
Que pólos regionais se destacariam neste horizonte? Em primeiro lugar, os dos grandes países em desenvolvimento, três deles em particular. O primeiro é a consolidação da parceria estratégica com a China, já que ela se consolida cada vez mais como um grande pólo em desenvolvimento no mundo, com o qual o Brasil conseguiu desenvolver um amplo relacionamento econômico e político, com a consolidação de uma parceria estratégica. Apesar da crítica expressa na própria campanha eleitoral (vinda do campo do PSDB-PFL), caracteriza-se claramente como uma parceria estratégica do ponto de vista político-estratégico, mas baseada também em forte complementaridade econômica: o Brasil é parceiro da China em diversas áreas. Essa é uma parceria econômica que se consolida, conjugada com a parceria estratégica entre dois importantes polos regionais.
A segunda parceria muito importante é com a Índia, também um pólo regional asiático. A agenda da consolidação dessa parceria estratégica foi facilitada pela mudança de governo nesse país, com a derrota do governo fundamentalista baseado no BJP, e a eleição de um governo agora dirigido pelo Partido do Congresso, com um acordo de apoio da esquerda dirigida pelo Partido Comunista Marxista no Congresso Nacional. Isso configurou um quadro mais favorável para a consolidação da parceria estratégica da Índia, como liderança regional, com o Brasil. Ela vai se consolidando e seu horizonte se apresenta, no início de segundo governo Lula, mais favorável para a sua consolidação.
A terceira parceria estratégica com países em desenvolvimento é com a África do Sul, que se consolida como principal parceiro brasileiro na África, e também se insere no esforço de ampliação dos laços brasileiros com a África com um todo. A ofensiva empreendida no primeiro governo Lula para ampliar e diversificar as relações econômicas, comerciais e políticas do Brasil com a África tende a dar seus maiores frutos, precisamente, no seu segundo mandato.
Essas três grandes parcerias estratégias com países em desenvolvimento enfrentam condições mais favoráveis para sua consolidação no segundo mandato Lula. Vale dizer que essas parcerias estratégicas com Índia, África do Sul e China são perseguidas em linhas paralelas na nossa política externa. Trata-se de uma política própria de parceria estratégica com a China. No caso da Índia e da África do Sul ela se insere na iniciativa do IBAS (Índia, Brasil e África do Sul) como um segundo campo de articulação estratégica. O que mostra também a vantagem do Brasil, pois há tensões entre a Índia e a China que dificultam uma ação comum de parceria estratégica entre elas. Mas o perfil do Brasil, muito explorado no primeiro mandato Lula, de ser um ator mundial com relações diversificadas para além da sua liderança na integração da América do Sul, permite uma articulação de parcerias estratégicas mais amplas. O aprofundamento da nossa relação estratégica com a Índia não se torna contraditório com o aprofundamento da nossa relação estratégica com a China. Essa é uma das vantagens da agenda de diversificação das nossas relações externas desenvolvida nos últimos anos.

Como ficam as relações com a Europa neste contexto?
Luis Fernandes – No caso da Europa, na medida em que se intensificaram as diferenças e tensões entre os EUA e a países importantes da União Européia (que se opuseram à parte importante da agenda externa do governo Bush) abre-se um campo favorável para a intensificação de relações do Brasil.
O problema em relação à Europa é que o projeto de integração da Europa vive certa crise de identidade. Qual o perfil exato de integração européia? Houve um movimento para a sua ampliação, mas esse movimento de ampliação veio acompanhado da derrota do projeto de constituição européia, que daria à União Européia um formato embrionário de Estado multinacional. Isso gerou uma espécie de paralisia e crise de perspectivas no processo de integração. Não se sabe muito bem como isso vai evoluir, embora haja um potencial para o Brasil ampliar sua margem de manobra nas relações com a Europa, explorando as crescentes diferenças entre ela e os EUA. No que concerne às relações entre os Estados Unidos e a Europa, a evolução mais importante registrada ao longo do primeiro mandato do presidente Lula foi a ruptura da “Aliança Atlântica” que havia coesionado o bloco ocidental durante a Guerra Fria, e cujos defensores pensavam que iria continuar a comandar em parceria os destinos do mundo após o colapso do bloco socialista.

Qual o papel do Brasil nos fóruns multilaterais?
Luis Fernandes – Nos fóruns multilaterais a agenda que se apresenta é de consolidação da presença brasileira como um dos países líderes do mundo em desenvolvimento na crítica ao comportamento dual e restritivo dos países centrais. Isso se expressa, sobretudo, na rodada de Doha de negociações da OMC. O papel do Brasil (junto com Índia, China e outros grandes países em desenvolvimento) tem sido decisivo na construção do G-20 e na crítica aos subsídios praticados pelos países centrais.
A tendência é o Brasil assumir cada vez mais um papel de liderança do mundo em desenvolvimento na crítica às posições e práticas restritivas, monopolistas e reprodutoras de assimetrias internacionais que têm marcado a posição negocial dos países centrais. A disputa nesse terreno tende a se intensificar. Temos, ainda, a negociação na Conferência da Convenção sobre Mudanças Climáticas, em novembro de 2006 no Quênia, onde também se retomará a discussão sobre os desdobramentos do Protocolo de Quioto. Mais uma vez o Brasil assume papel de liderança contra as pressões dos EUA, não-signatários desse protocolo, e também dos países europeus signatários dele, mas que procuram recuar em relação a compromissos estabelecidos.
O Brasil está em posição de liderança nessas negociações em defesa dos países em desenvolvimento contra a lógica de dualidade e assimetria que os países centrais procuram imprimir ao formato desses grandes acordos multilaterais. Essa é outra tendência que deve não só se manter, mas se intensificar no segundo mandato do presidente Lula. Mas essa liderança é fruto do papel positivo desempenhado no seu primeiro governo. Uma vez mais, o Brasil colhe os frutos da liderança que plantou, regada pela ousadia e altivez da política externa implementada no primeiro governo Lula.

Fale um pouco das condicionantes econômicas externas e suas possíveis implicações internas.
Luis Fernandes – Em linhas gerais, a meu ver, na medida em que se afastaram do receituário neoliberal dominante dos anos 1990, os grandes países em desenvolvimento conseguiram, no início do século XXI, sustentar índices de desenvolvimento econômico mais significativos. O grande exemplo disso, evidentemente, é a China, que sustenta os maiores índices de crescimento econômico do planeta há um quarto de século. Mas há também o desempenho da Índia, que preservou uma posição muito crítica em relação a pontos centrais da política neoliberal, por exemplo, no que se refere à abertura de conta de capital. O controle de fluxos de capital para a sua economia é um elemento central da sua agenda de desenvolvimento. Na América Latina o principal exemplo é a Argentina, que adotou uma política corajosa para lidar com sua crise de endividamento e, contra as expectativas pessimistas oferecidas por todas as vozes dominantes da comunidade financeira internacional e do próprio FMI (Fundo Monetário Internacional), conseguiu re equacionar em bases favoráveis o perfil da sua dívida, impondo condições mais favoráveis para o próprio desenvolvimento da economia argentina e mantendo, com isso, já por quatro anos, índices de crescimento econômico bastante elevados. O processo recente desses países citados se contrapõe ao caso dos EUA e da Europa, que mantém uma tendência a índices medíocres de crescimento econômico, que configuram uma tendência estagnacionista do centro do sistema.
No primeiro governo Lula, o Brasil, conseguiu produzir índices de crescimento mais elevados do que nos oito anos de governo FHC, mas ainda muito longe de representar a retomada de um ciclo sustentado de desenvolvimento nacional. Isto se deve à dualidade da política econômica do próprio governo Lula, com políticas desenvolvimentistas importantes implementadas no seu primeiro mandato – mas tolhidas no seu impacto pleno, por uma política macroeconômica muito conservadora, sobretudo, na dimensão monetária. Essa dualidade não permitiu que o Brasil pudesse sustentar índices de crescimento econômico comparáveis aos que foram sustentados por outros grandes países em desenvolvimento, que se distanciaram desse receituário neoliberal. É precisamente essa a perspectiva que se aponta para o segundo mandato Lula, em que talvez essa dualidade seja superada, ou pelo menos enfrentada, retirando os constrangimentos que operaram no primeiro mandato a uma política desenvolvimentista mais eficaz, de maior impacto. Contudo, também nesse terreno o cenário é muito mais favorável para 2007 do que foi em 2003. Basta ver alguns elementos básicos: o Brasil zerou sua dívida com o Fundo Monetário Internacional, não está mais subordinado às condicionalidades explícitas da condução da sua política econômica pelo FMI. O país está menos vulnerável hoje do que estava em 2003. Esse é um resultado positivo da política econômica do governo Lula. O Brasil tem reservas cambiais extremamente fortalecidas, sendo, pela primeira vez, superiores ao valor líquido da dívida externa do próprio governo federal. Ele reverteu o déficit crônico que mantinha anteriormente no seu balanço de pagamentos. E ampliou seu superávit comercial e sua participação no comércio mundial e manteve, no âmbito da redução dessa vulnerabilidade externa, a inflação sob controle. Portanto, há um contexto muito mais favorável para estruturar um ciclo sustentável de desenvolvimento econômico com índices de crescimento mais significativos no seu segundo mandato.
Mas, do ponto de vista das condicionantes externas, o mais importante é que houve significativa redução da vulnerabilidade externa do Brasil. Lula inicia seu segundo mandato com o país muito menos vulnerável a flutuações e turbulências nos mercados financeiros internacionais do que estava em 2003. O Brasil recompôs suas defesas, e essa é uma condição decisiva para que possamos nos aproximar do desempenho de outros grandes países em desenvolvimento.

Há condições para o Brasil estruturar um ciclo de desenvolvimento mais acentuado? Qual o papel da C&T neste processo?
Luis Fernandes – A meu ver, um segundo ponto importante nesse esforço de estruturar um ciclo sustentável de desenvolvimento da economia nacional, com índices mais elevados de crescimento econômico e redução mais acentuada da miséria e da desigualdade na sociedade brasileira, envolve, justamente, a Política Industrial Tecnológica e de Comércio Exterior, lançada pelo governo em 2004, e que se constitui, na verdade, em espinha dorsal de um novo projeto de desenvolvimento nacional.
Como mencionei antes, a eficácia dessa política foi em parte tolhida pelas restrições da política macroeconômica no primeiro mandato do governo Lula. Esperamos que, diante da efetiva redução da vulnerabilidade externa que marcou a evolução do primeiro governo Lula, neste segundo governo a plena potencialidade de desenvolvimento inserido nessa política possa se realizar. Essa política busca situar o esforço do desenvolvimento nacional do Brasil no contexto das condições criadas pelo advento da sociedade do conhecimento – entendida como a sociedade em que a ciência ocupa um papel cada vez mais central nos processos de geração de riqueza e agregação de valor.
Portanto, constituiu-se um novo apartheid no sistema internacional. Ou seja, no contexto da sociedade em que o conhecimento ocupa papel central na geração de riqueza e agregação de valor, a distribuição desigual da capacidade de geração de conhecimento no mundo se torna um dos principais pilares – talvez o principal – de produção e reprodução de assimetrias no mundo. Os países centrais se esforçam por preservar a todo custo a condição monopolista adquirida por suas empresas na fronteira de desenvolvimentos tecnológicos da chamada “era do conhecimento”. E procuram fazê-lo de duas maneiras: em primeiro lugar subsidiando pesadamente com recursos públicos as atividades de pesquisa e desenvolvimento das grandes empresas transnacionais sediadas nesses países. Em segundo lugar, impondo uma normatividade no sistema internacional por meio de regimes internacionais de proteção à condição monopolista do conhecimento gerado por essas empresas. Isso se traduz, sobretudo, nas ações restritivas à disseminação de conhecimento, ou de capacidade de geração de conhecimento, via, por um lado, o regime internacional de proteção da propriedade intelectual, que se torna, na verdade, um bloqueador da disseminação de capacidade de geração de conhecimento no mundo. Por outro, políticas explicitamente restritivas de transferência de tecnologia, ou de disseminação de capacidade de geração de tecnologia – considerada sensível em função da agenda dominante de “guerra global ao terrorismo”.
Portanto, dada a dualidade de grande parte do conhecimento científico e desenvolvimento tecnológico de fronteira, tenta-se impor medidas abertamente restritivas da disseminação da capacidade de geração de conhecimento e desenvolvimento tecnológico no mundo. Exemplo disso é a evolução em curso no Tratado de Não-Proliferação. Os países centrais defendem a adoção de um Protocolo Adicional ao Tratado que estende a abrangência da não-proliferação para além das armas nucleares (finalidade constitutiva do Tratado) para abranger, também, o domínio da tecnologia nuclear (mesmo que para fins pacíficos). Trata-se de uma tentativa explícita de congelar o atual desnível de acesso à tecnologia nuclear no mundo. Não apenas as potências nucleares não cumprem os compromissos assumidos no âmbito do Tratado no que se refere ao desarmamento, como tentam, por outro lado, ampliar o regime de não-proliferação para bloqueios explícitos da transferência de tecnologia ou da disseminação de capacidades tecnológicas aplicadas à área nuclear.
A política industrial estruturada e lançada pelo governo, e que tende a ser o carro-chefe da agenda de desenvolvimento do segundo governo Lula, procura trazer para o centro a compreensão de que, na era do conhecimento, a promoção da inovação nacional é o carro-chefe do desenvolvimento. E a inovação nacional tem de estar associada ao desenvolvimento de tecnologia nacional, à promoção da Ciência e Tecnologia nacionais, como carro-chefe do esforço de desenvolvimento. Isso implica, evidentemente, procurar estruturar o desenvolvimento da economia brasileira, e re-situar a própria economia brasileira na economia mundial, sobre a agregação de valor no território nacional (ou, em sentido mais amplo e preciso, no contexto da nova integração sul-americana).
Na política industrial, isso se desdobra na identificação de quatro setores prioritários (bens de capital, fármacos, software e micro-eletrônica) e três áreas portadoras de futuro (biotecnologia, nanotecnologia e biomassa). Na área de biomassa se insere o esforço para explorar plenamente o desenvolvimento tecnológico pioneiro do Brasil em energias renováveis, sobretudo, em agroenergia. Isso abarca a nossa liderança mundial na economia do etanol, no nosso caso usando álcool como fonte para a geração de energia baseada no etanol, bem como o programa do biodiesel. Iniciativas como essas permitiram ao Brasil ter uma das matrizes energéticas mais limpas – possivelmente a mais limpa – do mundo. Trata-se de grande contribuição do Brasil para o esforço mundial de combate ao aquecimento global.
Nesse terreno, portanto, o esforço de desenvolvimento nacional se apóia na promoção do avanço da ciência e do desenvolvimento tecnológico, associado a setores prioritários para o desenvolvimento nacional. Na área de C&T aponta-se um novo patamar para o desenvolvimento da ciência e tecnologia nacional, vinculado não só aos objetivos da política industrial como também a grandes objetivos nacionais, em que a soberania e a liderança do país está em jogo. Isto abarca áreas estratégicas, como o programa espacial e o programa nuclear, bem como ações que mobilizam a ciência e tecnologia como instrumento para reduzir a desigualdade e a exclusão social no âmbito do próprio esforço de desenvolvimento nacional. Isto contempla variadas ações de inclusão social, dentre as quais se destaca, evidentemente, a inclusão digital. Nos dias atuais, não há cidadania plena, no Brasil ou no mundo, sem domínio da tecnologia da informação. Atributos fundamentais da sociabilidade humana, não só da produção econômica, estão associados, hoje, ao domínio da tecnologia da informação.
São estas áreas que, resumidamente, estruturam um novo projeto de desenvolvimento nacional. Um dos importantes legados do primeiro mandato do governo Lula foi não só ter ampliado os investimentos públicos nesses eixos estratégicos, mas ter constituído um novo marco legal-regulatório para a área de Ciência e Tecnologia, dando bases para a estruturação de um sistema nacional de C&T capaz de cumprir a função de carro chefe do novo esforço de desenvolvimento nacional. Tivemos a aprovação da Lei de Inovação – talvez o marco mais importante dentro desse processo –, mas também a aprovação da Lei de Biossegurança, da Lei de Informática, da Lei de Incentivos Fiscais para atividades de pesquisa e desenvolvimento nas empresas nacionais. E, por último, o Projeto de Regulamentação Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), que se consolidou, no primeiro governo Lula, como o principal mecanismo de fomento da ciência e tecnologia nacional, focado no apoio aos eixos estratégicos a que me referi anteriormente.
O segundo mandato do governo Lula vai poder colher os frutos do novo marco legal regulatório. Pela primeira vez o governo vai poder apoiar diretamente, através de subvenção pública, atividades de Pesquisa e Desenvolvimento em empresas nacionais. Este é o mecanismo concreto, amplamente adotado pelos países centrais, através do qual o poder público nacional pode alavancar a inovação nas empresas, agregando valor em território nacional para, gradativa e progressivamente, fazer com que produtos de maior valor agregado também ocupem maior proporção da sua pauta de exportações. No caso do Brasil, trata-se de um esforço para, junto com a ampliação da participação brasileira no mercado mundial, ampliar também a participação na nossa pauta de exportações de produtos com maior valor agregado. Um esforço, enfim, para nos tornar menos dependentes dos humores variáveis dos mercados mundiais de commodities.
Tendo enfrentado no primeiro mandato o problema da vulnerabilidade externa; tendo estruturado um eixo estratégico para o desenvolvimento nacional; e tendo construído um novo marco legal regulatório para o fomento da inovação no país, o segundo governo Lula poderá se focar no pleno aproveitamento das condições favoráveis criadas. Isso aponta para uma gradativa, progressiva e importante redução da vulnerabilidade externa do Brasil, com base em uma política nada liberal, pelo contrário, é uma política estruturada sobre princípio da promoção do desenvolvimento pelo poder público. É este que estrutura a nova agenda de desenvolvimento para o país, assentada sobre a valorização do conhecimento e da ciência e tecnologia nacionais.
Isso nos permitirá, inclusive, reduzir um custo, que é a conta da dependência tecnológica. Os gastos do Brasil com importação de tecnologia se situam na faixa entre US$ 1.500 bilhão e US$ 2 bilhões anuais. Nos marcos da nova Política Industrial, poderemos diminuir a dependência tecnológica do país, promovendo a tecnologia nacional como eixo estruturante do novo projeto de desenvolvimento nacional. Isso nos permitirá reduzir gastos com importação de tecnologia, o que representa, por um lado, um ganho econômico financeiro imediato. Mas o mais importante é o que nós estruturamos em termos de tecnologia: é a redução de dependência tecnológica propriamente dita, e o que isso representa em termos de autonomia nacional. Significa que vamos garantir a ampliação da economia do país, reduzindo a vulnerabilidade que o Brasil ainda enfrenta nesse terreno. Tomemos, por exemplo, o episódio da venda de aviões de treinamento militar da Embraer para a Venezuela. Em função de a patente de um dos componentes utilizados nesse avião ser de uma empresa fornecedora americana, essa empresa sofreu pressão por parte do Departamento de Estado dos EUA para vetar a venda de aviões que usassem essa tecnologia para a Venezuela. Trata-se de uma ação sem qualquer amparo legal, porque não há qualquer regra ou tratado no comércio internacional que restrinja o direito de venda desse avião da Embraer para a Venezuela. No entanto, a dependência tecnológica na constituição desses aviões, em função do direito de monopólio exercido sobre essa tecnologia por uma empresa americana, se transformou em elemento bloqueador de uma ação soberana de uma empresa brasileira na venda de um avião para um país vizinho e amigo do Brasil.
Portanto, reduzir o componente da dependência tecnológica em setores estratégicos é também um fator de redução de vulnerabilidade do país e fortalecimento da sua economia diante das restrições monopolistas existentes no sistema internacional.

Edvar Luiz Bonotto é doutor em direito e membro da Comissão Editorial de Princípios.

EDIÇÃO 87, OUT/NOV, 2006, PÁGINAS 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23