Houtart, um católico marxista engajado na luta dos povos
É também testemunha da luta política e social desenvolvida desde o final da II Guerra, da qual tomou parte, na resistência. Houtart esteve no Brasil há pouco tempo, onde presidiu, no Fórum Social Brasileiro realizado em Recife (PE), o Tribunal Antiimperialista organizado pelo Cebrapaz (Centro Brasileiro de Solidariedade aos povos e Luta pela Paz) e pelos movimentos sociais brasileiros. É autor, dentre dezenas de obras, de Mercado e religião e O outro Davos – mundialização de resistência e lutas. Para ele, “a religião pode ser incentivo para um compromisso social”
Conte-nos um pouco sobre sua trajetória.
François Houtart – Sou belga, de Bruxelas. Após meus estudos secundários, já em 1944, fiz Seminário para preparar-me para o sacerdócio. Quando jovem, participei da Juventude Operária Católica (JOC) porque tinha interesse pelos assuntos sociais e políticos. Nessa época participei também da resistência armada (à ocupação nazista da Bélgica). De modo que não foi possível completar o primeiro ano do seminário porque os alemães queriam enviar os seminaristas para trabalhar nas fábricas em substituição aos jovens alemães recrutados para a guerra. Mas os seminaristas escaparam dessa. E entrei para a resistência armada no último ano da guerra. Eu me interessava por política também pelo fato de meu avô ter sido primeiro-ministro na Bélgica e fundador da Democracia-cristã no século XIX contra o partido católico conservador de então. Quando terminei o curso de teologia decidi estudar ciências sociais. Comecei a perguntar-me como a classe operária que lutava por justiça acreditava na Igreja que se diz portadora de um evangelho identificado com os pobres e como historicamente se construiu a contradição entre a classe média e a Igreja. Completei os estudos de sociologia na Universidade de Chicago (EUA) e em Bruxelas fiz urbanismo. Depois continuei esses estudos na América Latina. Minha primeira pesquisa foi em Havana, onde participei de um congresso da JOC. Na Universidade de Chicago tive contato com muitos estudantes de ciências sociais e meu sonho era conhecer a América Latina. Esse período acabou em 1954 e quando retornei fui nomeado secretário da Cúria – o que não estava em minhas perspectivas. Mas, imediatamente, fundei o Centro de Pesquisas em Sociologia da Religião, dentro do quadro da Conferência episcopal visando a continuar o trabalho da América Latina. Depois de quase dois anos comecei novamente a trabalhar na América Latina – desta vez com um plano geral de estudos de toda a situação sócio-religiosa latino-americana. Finalmente, iniciei esses estudos que duraram quatro anos. Meu trabalho sobre os diferentes aspectos da vida religiosa e social latino-americana foi publicado em 43 volumes – que só terminou em 1962. Esses estudos terminaram justamente quando o papa João XXIII anunciou o Concílio Vaticano. Trabalhei muito com o Centro Episcopal Latino-americano (Celam). Nessa época, fui informado de que o Vaticano havia enviado mensagem a todos os núncios para tomarem cuidado com esse projeto, com o qual não estava de acordo. Dom Hélder, então, disse-me “encontrei uma solução. Eu, como secretário da Conferência, encomendarei a você um estudo para mim”. E isso foi fundamental para mim porque foi o que me permitiu realizar esse trabalho. Foi muito importante porque se tratava de conscientizar o episcopado mundial em relação à situação latino-americana, não apenas eclesiástica como também social. Fui indicado, então, no Concílio como especialista para ajudar os bispos e trabalhei apenas com Dom Hélder durante 4 anos. Da minha subcomissão participava também o Carlos (Karol Voitila) – meu amigo durante 30 anos –, que depois se tornou Papa.
Fale um pouco sobre seu engajamento na luta política.
François Houtart – Durante todo esse tempo entrei em contato com os movimentos políticos sociais da América Latina. Fui amigo de Camilo Torres porque já o conhecia antes de ser sacerdote. Convidei-o para vir a Louvain para estudar e, então, ele foi adotado pela minha família. Fomos grandes amigos durante 10 anos. Trabalhei muito com ele, até sua morte. Quando aconteceu a guerra do Vietnã os amigos do Partido Comunista, e outros, me pediram para tomar uma posição e me engajei a esse movimento. Fui nomeado vice-presidente, e depois presidente, da Associação Bélgica-Vietnã e tive grande envolvimento em toda a ação contra essa guerra, tanto na Bélgica quanto em outros países. Nos Estados Unidos organizei uma grande manifestação em Washington. Ao mesmo tempo, pouco a pouco me envolvi na luta contra as colônias portuguesas da África e o Apartheid e participei de muitas reuniões em Angola, Moçambique e África do Sul. Nessa época fiquei amigo de Amilcar Cabral, Agostinho Neto e Eduardo dos Santos com os quais trabalhei muito até o momento da independência. Isto evidentemente provocou reações porque não era normal um sacerdote envolver-se em tais movimentos. Depois recebi um convite do sacerdote de Sri Lanka para fazer um estudo sócio-religioso. Aceitei porque tinha praticamente terminado minha etapa de trabalho na América Latina e já havíamos formado muitos sociólogos e alguns grupos. Durante aproximadamente 15 anos trabalhei muito mais na Ásia e fiz meu doutorado sobre sociologia do budismo em Sri Lanka. Em seguida fiz esse mesmo trabalho no sul da Índia, e, finalmente, no Vietnã. Como estive lá e testemunhei os bombardeios, os vietnamitas me convidaram para ajudá-los a iniciar a disciplina Sociologia. Para mim foi extraordinário iniciar sociologia num país socialista. Eu tive muitos contatos com a Academia de Ciências de Moscou, devido a vários convites que me fizeram. Havia debates porque os regimes comunistas quando chegaram ao poder a sociologia já estava no fim – porque com o marxismo obtinham todas as respostas para todos os problemas. Quando começaram a re-historiar a Sociologia adotaram a sociologia funcionalista norte-americana e não uma perspectiva marxista. Dessa forma, quando iniciei meu trabalho estava de acordo com a equipe em relação à necessidade de desenvolver uma sociologia marxista. Por dois anos (durante minhas férias da universidade) fiz uma formação teórica e metodológica no Vietnã porque não tinham sociólogos. Todos os jovens eram historiadores, filósofos, economistas. Após esse período um colega e eu concluímos “sociólogos não se fazem em uma oficina”. Então, eles elegeram uma comuna do delta para um exercício prático de sociologia. Fomos para lá com 30 jovens pesquisadores para estudar todos os aspectos – históricos, culturais, sociais e econômicos – da vida de uma comuna rural. Hoje, após 22 anos pediram-me para retomar esse estudo para observar o impacto da introdução do mercado sobre a vida da comuna em nível local. Portanto, trabalhei durante 25 anos no Vietnã para realizar conferências e cursos. Quando retornei à Universidade de Louvain, após a explosão dos protestos em 1968, fundei o Centro Tricontinental (Cetri) que começou a trabalhar com assuntos relativos a Ásia, África e América Latina. Fale-nos um pouco de sua trajetória mais recente.
François Houtart – Organizamos as primeiras reuniões do que ficou conhecido como anti-Davos. Em 1999 editamos um pequeno livro com cinco movimentos sociais importantes no mundo: sem-terra, sindicatos operários da Coréia do Sul, movimento de mulheres e movimentos de desempregados. Reunimo-nos durante três dias por ocasião do Fórum Econômico Mundial de Davos em 1999. No último deles, demos uma entrevista coletiva. Foi muito difícil entrar, mas conseguimos – a 300 metros do local em que se reuniam os maiorais do mundo. Essa foi uma das origens do Fórum Social Mundial. Desde então estamos no Centro Tricontinental trabalhando muito, tentando fazer a cada dois anos – e agora talvez, com o desenvolvimento da informática, a cada ano – uma análise crítica do antimundialismo e da globalização das resistências ao neoliberalismo e ao capitalismo.
Como você analisa uma possível contradição entre cristianismo e marxismo?
François Houtart – Na verdade, eu não era marxista no início. Descobri o marxismo na universidade, por ocasião de uma palestra. Mas minha aproximação aconteceu em duas partes: primeiro, com os comunistas no movimento contra a guerra do Vietnã, pela descolonização das colônias portuguesas e na análise do imperialismo norte-americano e de seus aspectos econômicos. Segundo, quando fiz meu doutorado em Sri Lanka sobre budismo. Nessa época comecei a estudar Weber, mas a teoria desse filósofo não me satisfazia e fui buscar outras fontes. Comecei a ler sistematicamente as obras de Marx na biblioteca da Universidade. Descobri o valor da análise marxista para estudar as sociedades pré-capitalistas. Isso me ajudou a desenvolver depois, em Sociologia da Religião, uma metodologia de análise marxista. Para alguns, alguém começa a usar a análise marxista e acaba, evidentemente, em ateísmo. Para mim, isso é totalmente falso porque o marxismo é um método de análise e também de ação, e é o melhor tipo de análise que temos no momento para explicar a dinâmica social e a estrutura de classes. No entanto, na doutrina social da igreja clássica não há análise em termos de classes, mas de raças. Existem vários estratos sociais chamados de classes, mas toda análise tem como conseqüência que a solução é a colaboração de todos os estratos para construir o bem comum sem criticar a estrutura de classes. Desse modo, também vi a contradição com essa visão clássica – na qual eu acreditava antes – ao adotar a marxista para desenvolver esse estudo. Trabalhei bastante em Cuba e, em 1986, fui convidado para ensinar Sociologia da Religião para 30 quadros do partido, professores de teologia e um militar, num curso de 15 dias. Esse foi o resultado de alguns anos de debates com intelectuais marxistas cubanos que percebiam como insuficiente a idéia contida em seus manuais (de origem soviética, de que a religião é o ópio do povo e, então, deveria ser simplesmente banida). E, ainda, que havia a teologia da libertação e o compromisso dos cristãos nas revoluções de Nicarágua, El Salvador e Guatemala. Por isso, como eles sabiam que eu usava a análise marxista para estudar os fenômenos religiosos, pediram-me para ministrar esse curso. E, pela minha posição, não devemos ser marxistas, primeiro devemos analisar a realidade, não apresentar um dogma. Quando terminamos estávamos de acordo porque depois publicaram meu livro. Nele, afirmo que a religião, em alguns casos, pode ser o ópio do povo, mas, em outros, também incentivo ético para um compromisso social. Não é um problema de dogma, mas um problema de análise.
Explique sua visão acerca da Sociologia da Religião.
François Houtart – No contexto geral em que as religiões existem hoje, especialmente o de uma fase nova do capitalismo, o neoliberalismo, como conseqüência há o fato de todos os grupos humanos de hoje – não apenas a classe operária – estarem afetados pela lei do valor. Marx usou um conceito interessante e eu o reutilizo agora num sentido um pouco diferente: a distinção entre submissão real e submissão formal do trabalho ao capital. A submissão real é a submissão do trabalho ao capital dentro do próprio processo de produção e isso foi feito com a industrialização e com a divisão do trabalho. Marx usou esses conceitos para explicar a transição da manufatura para a fábrica industrial. Se retomamos esse conceito podemos dizer que, sim, a classe operária estendeu a submissão real com o fenômeno da máquina nas economias emergentes – onde há pólos de economia de assalariados, mas a grande maioria do povo não é de assalariados. Para mim, o fundamental dessa fase neoliberal foi a submissão de todos os grupos humanos em uma submissão formal mediante não o salário, mas outros meios financeiros ou jurídicos. Por exemplo, a dívida externa, os preços das matérias-primas ou dos produtos agrícolas, os paraísos fiscais, ou as fortunas; ou jurídicos, como as regras do FMI, do Banco Mundial, da OMC que têm como resultado todos serem afetados pela lógica do capital.
Ou seja, com a primazia da mercantilização como regra da vida humana…
François Houtart – Exatamente, pela mercantilização. E que sejam as mulheres as primeiras vítimas da informatização da economia ou das privatizações da eletricidade, da água ou da educação, da saúde. Que sejam os povos autóctones a perder seu território pela exploração das florestas ou de bosques, que sejam os pequenos camponeses as vitimas…
Como você vê o protagonismo dos movimentos sociais na luta contra a globalização?
François Houtart – Esse novo protagonismo de grupos sociais relaciona-se ao fato de estes estarem afetados pela lógica da mercantilização. E ao fato de, um pouco casualmente, em fins de 1999, terem se juntado zapatistas, ecologistas, sem-terra, sindicatos norte-americanos etc contra um inimigo comum. Isso significa que pouco a pouco aumenta a consciência de que existe um inimigo comum maior. Para mim, as lutas sociais tiveram como êxito principal tornar maior uma consciência coletiva que, apesar de ser muito diferente conforme os diversos movimentos, está efetivamente aumentando. O grau de consciência do perigo comum chama a atenção. Por isso, segundo a Carta de Princípios do Fórum Social Mundial, nele reúnem-se os que combatem o neoliberalismo e a hegemonia mundial do capital. E já é uma plataforma bem forte, embora todos os componentes não tenham os mesmo grau de análise. Mas reli um pouco a história da II Internacional. É bastante parecida. Os sindicatos praticamente não existiam nessa época e Marx e Engels tiveram a idéia de formá-los. Havia uma série de organizações de todo tipo com um grau de consciência muito diferente. Mas Engels, nos primeiros anos, sempre dizia ser melhor chegar a uma decisão da base que correspondesse ao grau de consciência em vez de uma que viesse de cima. Esse processo foi bastante parecido ao deste momento, como um espelho do grau de consciência. É um êxito, mas é preciso enfrentar muitos desafios. O grande desafio para construir um sujeito histórico novo é como passar da elaboração de uma consciência coletiva à construção de atores coletivos. Não estou dizendo que não existam atores coletivos. Eles existem em nível global, como a Via Campesina, as Internacionais dos sindicatos operários. O problema fundamental é como chegar à possibilidade de mais ações comuns.
Em janeiro, no FSM de Caracas, o presidente Chávez chegou a propor uma organicidade maior do movimento antiglobalização…
François Houtart – Concordo, precisamos dizer sim diante da urgência dos problemas e não podemos esperar por séculos. Mas é preciso mais ação comum, mais peso, mais vinculação com o campo político. De qualquer forma, li o discurso de Chávez novamente. Ele não disse que o Fórum é que deve se transformar, mas ser necessário esse tipo de ação. Com isso, sim, concordo. Mas não estou de acordo que os fóruns devam se transformar em um órgão de ação. Não há possibilidade de 4500 movimentos associados chegarem a um acordo em relação a um texto. A diversidade cultural não o permite nem a diversidade ideológica. Ainda mais que a maioria dos fóruns está mais para a social-democracia do que para os revolucionários. Mas, na conjuntura atual é essencial permanecerem unidos.
A realidade também opera no sentido da maturidade dos movimentos sociais…
François Houtart – Veja um pouco a idéia de John Holloway, segundo a qual as sociedades podem ser transformadas sem a tomada de poder: “mudar o mundo sem tomar o poder”. É uma atitude antipolítica e antiestatal, que, no entanto, existe. Mas já mudou. Os (movimentos sociais) africanos estavam contra os partidos, mas com a consciência de que deve ser reconstruído um novo campo político. E, para mim, essa é a linha atual: como reconstruir o novo campo político e, eventualmente, de baixo para cima. Vimos isso na América Latina.
Como você observa o ressurgimento da unidade dos países do Sul e da luta Norte-Sul proclamada pelo imperialismo e os neoliberais como anacrônica? Recentemente, inclusive, relembrando a conferência de Bandung de 1955, você ajudou na organização de uma reunião em Bamako.
François Houtart – Vemos isso em vários sentidos. Primeiro como um contrapeso ao Norte e como possibilidade de alianças pontuais sobre pontos estratégicos. Segundo, porque é uma referência a Bandung que, evidentemente, foi a região de recentes descolonizações, de povos dominados por uma burguesia nacional. Elas foram um passo muito importante e desenvolveram a idéia de progresso nacional ou de desenvolvimento cepalino, que não era a última palavra da revolução, mas certa associação popular no projeto de desenvolvimento – associação de grupos populares da classe operária. É preciso retomar o projeto de Bandung. Ou seja, podem ser criados outros pólos de desenvolvimento, definindo eles próprios os objetivos sem depender dos objetivos definidos pelas multinacionais dos Estados dominantes. Essa idéia me parece extremamente importante e toca no problema das alianças entre Estados. O exemplo mais importante disso é Cancun (Conferencia da OMC em 2003) com a organização do Ocidente e com a oposição de grandes países, como Brasil, Índia, África do Sul e China às políticas da OMC.
A América Latina é uma grande novidade no quadro mundial deste início de século?
François Houtart – Pode ser que sim, porque o panorama político latino-americano se transformou. E isso teve influências. Evidentemente, existe uma potencialidade importante, mas não estou em condições de dizer se significa passos reais. Todo passo em favor da integração latino-americana – mesmo dentro do sistema capitalista deste momento – é positivo porque significa o início de um contrapeso para encontrar um mundo unipolar. Isso me parece sério na política de Brasil, Argentina, Uruguai, Venezuela, mas precisa se institucionalizar. Há muita esperança no restante do mundo em relação a isso.
Como você percebe a experiência de um governo progressista no Brasil?
François Houtart – Para mim, nas circunstâncias concretas atuais, a única alternativa possível é apoiar o Brasil. Isso está totalmente claro. A responsabilidade é muito grande e é preciso uma transformação de fundo. No governo Lula é preciso considerar a relação de forças e entender que é necessário ter paciência, não é possível fazer tudo de uma só vez. São duas realidades: a realidade de fato, com certa coalizão de forças e a realidade dos excluídos que não têm em sua vida cotidiana a possibilidade de atuar politicamente nem economicamente. E se um governo não afirma sua identidade com este setor não passará para a história como um passo para o movimento revolucionário.
Você vê um ressurgimento, em novas bases, da luta pelo socialismo nesse momento histórico?
François Houtart – Para mim isso está claro. No entanto, num contexto em que o socialismo é uma palavra ambígua pode significar stalinismo, maoísmo, social-democracia. Tentei descrever o conteúdo. Depois, sim, seria socialismo. Então, estamos lutando pelo socialismo, uma sociedade de igualdade econômica, com democracia completa e cultural generalizada. Por isso meu livro termina assim: “sim, é a isso que chamamos socialismo, já”. Entretanto, este é o momento de sabermos o que queremos.
Ronaldo Carmona e Lejeune Mato Grosso são sociólogos e diretores do Cebrapaz.
EDIÇÃO 87, OUT/NOV, 2006, PÁGINAS 54, 55, 56, 57, 58, 59