A reeleição de Lula, como presidente do Brasil para o período de 2007 a 2010, é uma expressiva vitória. Após um primeiro mandato em que se procurou “colocar a casa em ordem” estão sendo criadas condições para que o país ingresse em um novo ciclo de desenvolvimento, soberano, democrático e voltado para a elevação das condições de vida do povo brasileiro. Fator destacado de tais condições é o novo programa de governo para o período 2007-2010, aprovado pelos partidos que apoiaram Lula na campanha eleitoral, que deverá constituir a base de sustentação política de seu segundo mandato e com o qual o próprio Lula se comprometeu.

A importância de um programa orientador progressista não pode ser subestimada. Nem durante a campanha eleitoral e nem durante o exercício do mandato. Podem ser recordadas, por exemplo, as dificuldades de 2002 – muitas das quais hoje superadas. Naquela ocasião o país estava na iminência de uma crise financeira e cambial o que obrigou a que os principais candidatos do páreo presidencial se comprometessem com o FMI, organismo multilateral ao qual os tucanos recorreram sucessivamente no sentido de fechar as contas brasileiras com o restante do mundo.

É amplamente sabido como este mecanismo funciona: o socorro emergencial implica na aceitação de uma série de condicionalidades que são exatamente a política econômica que deve ser seguida pelo país que toma os empréstimos e cuja aplicação vai sendo monitorada por equipes técnicas do Fundo Monetário. Se o governo faz o “dever de casa” conforme a cartilha daquela instituição as parcelas dos empréstimos vão sendo liberadas aos poucos. Nestas circunstâncias é que o candidato Lula de 2002 e alguns de seus próximos assessores de então tiveram de elaborar o documento Carta ao Povo Brasileiro que, impregnado de orientações conservadoras, prendia as ações do governo em matéria de macroeconomia aos interesses do sistema financeiro. Isto deu margem para diversos representantes de forças políticas e sociais progressistas reclamarem – com razão – de uma nitidez maior de projeto ou do hibridismo que caracterizou as orientações econômicas do primeiro mandato.

Agora, gesta-se uma outra situação. Contrariando as avaliações precipitadas – falsamente de esquerda – de que seu governo estaria fadado ao fracasso, por estar irremediavelmente enredado na teia dos preceitos ortodoxo-liberais, Lula lançou seu novo programa de governo. Um programa avançado para o atual nível da batalha política que se dá nas terras brasileiras, comprometido com a construção de uma nação independente, democrática que busca permanentemente melhorar a vida de seus cidadãos.

O desdobramento da situação brasileira reservou surpresas para muito mais gente. A direita – partidos como PSDB e PFL e os monopólios midiáticos – tentou fazer com que a história se repetisse. Afinal, Vargas acabou por suicidar-se acossado e isolado por uma campanha oposicionista de igual teor moralista e golpista no início dos anos 1950. Juscelino Kubitschek que adotou o desenvolvimentismo e construiu Brasília – e a mesma oposição insistiu em classificar como fruto da corrupção – não conseguiu fazer seu sucessor na virada da década de 1950 para a de 1960. Jango Goulart que queria transformações com um amplo e progressista programa de reformas foi prontamente derrubado por um golpe militar em 1964. Agora, ao contrário, Lula se reelegeu com ampla maioria, compôs ao longo da crise de 2005 e 2006 uma equipe ministerial mais comprometida com o desenvolvimento nacional e adotou um programa mais avançado que o do primeiro governo. Entre os fatores que colaboram para este desfecho ir se consolidando pode-se destacar a mudança de postura política das Forças Armadas brasileiras e a vontade popular que não se deixou manipular pelos famosos formadores de opinião midiáticos.

A Comissão que elaborou a proposta de Programa de Governo 2007-2010, composta por representantes do Partido dos Trabalhadores e do Partido Comunista do Brasil, se referenciou em dois documentos que haviam sido recentemente aprovados por estes dois partidos; a saber, Diretrizes para a Elaboração do Programa de Governo emanadas do 13º Encontro Nacional do PT e Reeleger Lula, renovar os compromissos com as mudanças e eleger os candidatos do Partido Comunista do Brasil, aprovado pela Convenção Nacional Eleitoral dos comunistas. Além destes também o PRB do vice-presidente José Alencar protagonizou sua elaboração. Visando a aprofundar o caminho progressista para o Brasil o Programa de Governo faz uma clara demarcação com o neoliberalismo, parte de uma avaliação bastante positiva do primeiro mandato para concluir que se vive um momento propício a mudanças maiores e mais profundas.

Estabelece os seis compromissos básicos do novo governo: 1) Combate à exclusão social, à pobreza e à desigualdade; 2) aprofundamento do novo modelo de desenvolvimento: crescimento com distribuição de renda e sustentabilidade ambiental; 3) Brasil para todos. Educação massiva e de qualidade. Cultura, comunicação, ciência e tecnologia com instrumentos de desenvolvimento e democracia; 4) ampliação da democracia; 5) garantia da segurança dos brasileiros e das brasileiras; e 6) inserção soberana no mundo. Estes compromissos significam a própria essência do programa e são desdobrados ao final em uma série de orientações setoriais, metas mais precisas e obras prioritárias de governo.

Na busca de uma perspectiva claramente desenvolvimentista partiu-se da constatação de que o primeiro governo Lula desvencilhou-se do FMI, criando assim as condições para o país traçar sua política econômica sem ingerência externa; afastou o perigo da Alca que ameaçava qualquer perspectiva de desenvolvimento soberano; diversificou os parceiros comerciais; diminuiu a dívida externa; e conseguiu com base nos superávits comerciais acumular reservas internacionais de cerca de US$ 80 bilhões. Tais fatos fazem com que o país esteja hoje menos vulnerável. Ademais, o governo preservou e avançou na reestruturação das empresas estatais produtivas e financeiras – BNDES e Petrobras são exemplos destacados – e na diversificação das matrizes energéticas, ambos pressupostos fundamentais ao desenvolvimento nacional.

O ambiente externo também contém elementos que podem ajudar a um programa desenvolvimentista. Os EUA, progressivamente, vão se isolando na cena internacional. Passam por um processo de desindustrialização, de grande endividamento e déficits gigantescos. As guerras que perpetram são repudiadas por todo o mundo. Sua vontade de manter o status quo de um mundo unipolar por eles hegemonizado choca-se crescentemente com a tendência objetiva à multipolaridade. Dessa forma, a realidade mostra haver, mesmo contrariando interesses e em meio a profundos desequilíbrios, mais espaço para manobras comerciais e diplomáticas, assim como para a unificação das lutas dos países em desenvolvimento e de seus povos.

Fato inusitado é que alguns destes países passam a ter posição credora em relação aos países desenvolvidos. Outros concentram em suas mãos parte significativa das reservas mundiais de energia, fator absolutamente indispensável a qualquer projeto de desenvolvimento sustentável. Assim, vários países em desenvolvimento, de diversas partes do mundo, buscam emparceirar-se – comercial e diplomaticamente – para continuar a se desenvolver de forma alternativa, fugindo ao hegemonismo das grandes potências. E estas experiências internacionais não enquadradas no receituário neoliberal têm se avolumado e alcançado sucesso, oferecendo ensinamentos valiosos.

As condições políticas brasileiras também são outras. Em primeiro lugar criou-se em nível nacional um clamor pelo desenvolvimento. Pode-se dizer que as forças progressistas, desenvolvimentistas, ganharam o debate ideológico até aqui. No segundo turno da disputa de Lula com Geraldo Alckmin (PSDB/PFL/PPS), o debate programático ganhou mais espaço e tornou mais nítidas as diferenças e compromissos dos candidatos. Os tucanos foram encurralados e obrigados, contra sua própria vontade, a recuar temporariamente de seu ideário tradicional. Procuraram, por irônico que possa parecer, pousar como antiprivatistas. Em segundo lugar, as convicções desenvolvimentistas dentro da equipe governamental se fortaleceram diversificadamente. A substituição de Palocci por Mantega é só um exemplo. Por fim, a correlação de forças em plano nacional também sofreu variações. Lula se elegeu com quase 21 milhões de votos de vantagem sobre seu adversário, encostando em 61% dos votos válidos. Parte importante do centro político configurado no PMDB apoiou Lula e pode participar do esforço de um segundo mandato governamental.

No Congresso Nacional não houve grandes modificações em relação às bancadas dos partidos considerados de esquerda e de direita. Mas os de centro tiveram boa performance, sobretudo o PMDB que poderá ser força decisiva na conformação de um governo de coalizão voltado para o desenvolvimento e para a distribuição de renda. Quanto aos governos dos Estados houve variações bastante positivas. O Nordeste vivencia significativa renovação política. O PT e o PSB ganharam em três Estados cada um, o PDT ganhou no Maranhão; por isso boa parte dos governadores desta região poderá apoiar Lula. No sul destaca-se a vitória de Requião no Paraná, assim como no sudeste a
eleição de Sérgio Cabral no Rio de Janeiro. No norte, após 12 anos, desgarra-se do ninho tucano o Pará com a vitória de Ana Júlia Carepa. No cômputo geral dos Estados o apoio ao esforço desenvolvimentista do segundo mandato de Lula poderá se aproximar de vinte governadores.

Não que se deva pensar já ter sido vencida a luta pela aplicação do novo programa no segundo governo Lula. Seria ingenuidade imaginar que as forças conservadoras de direita representadas por PSDB e PFL renunciariam a seus propósitos liberais e a seus métodos de ação política. A oposição tem força no Congresso Nacional, em grandes Estados da federação onde se destaca a vitória obtida pelo PSDB aos governos de São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul, tem influência no Judiciário, na mídia etc. Em síntese, tem considerável força política, econômica e ideológica. No entanto, o balanço do conjunto de fatores objetivos e subjetivos internos e externos permite que se tenha uma perspectiva mais otimista.

O novo Programa estabelece como meta a taxa média de investimento anual acima dos 25% do PIB a fim de garantir um crescimento muito maior que o atual. E mais: os investimentos “públicos e nacionais, bem como privados e estrangeiros” devem se voltar, sobretudo, para as obras de infra-estrutura e essas devem visar especialmente a transformar o Brasil numa potência energética de primeira grandeza. Em todo este processo – preconiza o Programa –, estará presente o Estado, sua iniciativa e sua capacidade indutora do desenvolvimento, em contraposição aos preceitos neoliberais.

Reconhece-se no documento programático a necessidade de enfrentar os entraves vigentes do atual padrão de financiamento, o elevado e caro endividamento público – cujo montante atingiu R$ 1,061 trilhão em setembro – e a pesada carga tributária que ultrapassa os 37% do PIB sem aceitar, entretanto, que se façam quaisquer cortes relativos aos dispêndios sociais do governo. Dessa forma o Programa propõe a continuidade da diminuição das taxas reais de juros a fim de diminuir a dívida pública e ampliar o crédito às empresas produtivas e aos trabalhadores. A taxa a ser praticada, diz o documento, deve aproximar-se daquela dos países em desenvolvimento. Tais propostas superaram a situação anterior quando só se estipulavam metas de inflação e de superávit primário.

Na concorrida entrevista coletiva concedida pela Comissão de Programa de Governo à imprensa por ocasião do lançamento do Programa, estes foram os pontos que mais interessaram aos jornalistas. Alguns profissionais da grande imprensa, com o pensamento preso aos esquemas ortodoxos, não conseguiam entender como o Programa pôde estabelecer a meta de investimento de 25% anuais do PIB. Perguntavam eles: de onde sairia o dinheiro e como esta conta fecharia? Segundo o pensamento conservador isto só poderia ser alcançado de duas maneiras, ou elevando ainda mais o superávit primário ou fazendo cortes nas despesas correntes do governo. Entretanto, foi feita a opção por um outro modelo, com compromissos desenvolvimentistas mais nítidos, com uma opção social mais definida.

O novo Programa está sendo compartilhado por vários partidos como PSB e setores importantes do PMDB que não integraram formalmente a coligação Lula de novo com a Força do Povo. Da mesma forma houve sintomaticamente uma boa aceitação das propostas programáticas por destacados setores da intelectualidade que até então se colocavam em posição crítica em relação à política econômica adotada pelo governo Lula. Desta forma há indícios de que o novo Programa poderá servir de instrumento de unidade progressista, democrática e popular em torno do qual poderá ser construída a governabilidade e impulsionadas as mudanças.

O sentido geral do desenvolvimento proposto pelo Programa é que este se volte ainda mais para o bem-estar dos brasileiros e das brasileiras, combatendo a exclusão social, a pobreza e a desigualdade para minorar graves problemas estruturais de concentração de renda e riqueza, de profundas desigualdades regionais que afetam o Brasil. Procura dar aí um destaque todo especial à questão da educação, da cultura, da informação e da ciência e tecnologia como elementos sem os quais não se pode construir uma nação desenvolvida. Uma visão mais ampla dos elementos subjetivos que constituem a integralidade de um projeto nacional de desenvolvimento que procurará ao mesmo tempo preservar os avanços conquistados nesta área, como a continuidade do Prouni e a implantação do Fundeb. Além disto o Programa propõe manutenção e ampliação de políticas sociais exitosas, tais como elevação do salário-mínimo acima dos índices de inflação – fator fundamental de valorização do trabalho –, a geração crescente de empregos formais, a ampliação do Programa Bolsa Família, a consolidação do SUS, do Programa Nacional de Reforma Agrária, do processo de Reforma Urbana, o compromisso com um Sistema Único de Segurança para o combate à violência e ao crime, entre vários outros.

Na questão da ampliação democrática terá prioridade, compromete-se o Programa, “uma Reforma Política a ser definida por meio de amplo diálogo entre o Congresso Nacional, os partidos e a sociedade brasileira. Ela deverá assegurar a pluralidade de partidos, a fidelidade partidária, o financiamento público de campanhas eleitorais e o voto proporcional, preferencialmente por lista pré-ordenada, além de incentivar a construção de maiorias necessárias à governabilidade”. No bojo da discussão da Reforma Política democrática que deverá ser levada à frente logo no início da próxima Legislatura estará em pauta sem dúvida o problema da cláusula de barreira, entulho autoritário herdado do neoliberalismo tucano. Aborda, ainda, vários outros itens deste tema entre os quais pode-se destacar, pela atualidade, a democratização dos meios de comunicação, “permitindo a todos o mais amplo acesso à informação, que deve ser entendida como um direito cidadão”.

Na questão relativa à política externa brasileira o Programa procura dar seqüência à política de afirmação crescente da soberania nacional até aqui adotada e conseqüentemente conduzida pelo Itamaraty. Preconizando a presença soberana do Brasil no mundo, a luta pelo multilateralismo, por uma ordem econômica, financeira e comercial que possa reduzir as assimetrias mundiais. A prioridade continua sendo o processo de integração sul-americana, o Mercosul e a Comunidade Sul-americana de Nações.

Decidiu-se manter a rota. De nada adiantou a cantilena dos tucanos e setores reacionários da diplomacia brasileira de que o Brasil estaria abandonando seus grandes e tradicionais parceiros e privilegiando uma política terceiro-mundista de isolamento. De outra parte, o Programa procurou adotar uma linha brasileira, sem procurar copiar práticas e modelos adotados por outros países, por atraentes que possam parecer.

O novo Programa de Governo é um documento de fôlego ao qual devem se apegar as forças políticas e sociais progressistas posto que ele poderá possibilitar a transição para um novo Brasil, soberano, democrático e de bem-estar para seu povo.

Dilermando Toni, é membro do Comitê Central do PCdoB, representou junto com Renato Rabelo o Partido na Comissão de Programa de Governo Lula Presidente 2007/2010.

EDIÇÃO 87, OUT/NOV, 2006, PÁGINAS 11, 12, 13, 14, 15