No primeiro livro Contra-história do liberalismo reconstruí a história dos Estados Unidos em particular. Observei que, contrariamente aos mitos correntes, propaga-se que os EUA seriam a mais antiga democracia do mundo. Na realidade, nos Estados Unidos nos primeiros decênios de sua vida todos presidentes eram proprietários de escravos. Isso vale para Washington, para Jefferson – o autor da Declaração de Independência – para Maddison, o principal autor da Constituição. E não apenas os EUA são fortemente marcados pelo regime de escravidão em seus primeiros decênios de vida, como também procederam a uma expansão desse regime de escravidão. Por exemplo, restabeleceram a escravidão no Texas no período em que o arrancaram do México ao longo de uma guerra.

Talvez para a América Latina possa interessar um capítulo em particular desse acontecimento histórico que reconstruí. Ela deveria ficar orgulhosa do fato de o primeiro país a abolir a escravidão ter sido
o Haiti. O segundo grande capítulo, do qual a América Latina deveria ficar orgulhosa, é o apoio dos ex-escravos negros, dado, em seguida a Simon Bolívar, para conduzir a guerra de independência contra a Espanha e para a abolição da escravidão, à qual procede também Simon Bolívar. A América Latina pode se orgulhar, enquanto, ao contrário, nos EUA a sua política de opressão dos negros, de um lado, e de aniquilamento dos índios, do outro, permaneceu em cada caso ao longo do final do século XIX e o início do século XX.

Coisa interessante é diferentes historiadores estadunidenses terem escrito que, na realidade, a história dos EUA é uma democracia para a classe dos senhores. Isto é, o governo da lei no âmbito de a comunidade branca se desenvolver contemporaneamente às práticas de opressão dos negros e de genocídio dos índios.

Assim se explica o problema que, porém, trato em Liberalismo: entre civilização e barbárie (Anita Garibaldi): o nazismo teve grande simpatia e admiração pela divisão racial realizada no sul dos EUA. Nesse segundo livro mostro que Alfred Rosenberg, teórico principal do III Reich, fala dos Estados
Unidos com particular atenção como um esplêndido país do futuro. Segundo ele, os EUA têm o mérito de extinguir, de violar o princípio de igualdade racial e, uma vez violado esse princípio, diz como os Estados Unidos fizeram valer a superioridade dos brancos nos confrontos com os negros.
Dito isso, seria errado pensar que não tenha mudado nada.

O processo de emancipação dos povos coloniais iniciou-se exatamente com a revolução de Outubro de 1917 e, além disso, foi um grande passo adiante. Como a derrota lançada pela humanidade – com a contribuição decisiva da URSS – sobre o nazismo, esse processo de emancipação dos povos coloniais não pode ser extinto. No entanto, ainda hoje no imperialismo estadunidense encontramos pelo menos
duas tendências perigosas. Primeira, permanece intacto o princípio da hierarquização dos povos, como fala Bush, mas também como falava Clinton, nos EUA como o povo eleito por Deus com a tarefa de guiar o mundo. Diante da hierarquização dos povos encontramos a crise da desigualdade dos povos, por meio da qual um povo é destinado a governar para sempre e os outros destinados a ser governados.

O outro aspecto que deve chamar a nossa atenção é o horror de Guantânamo (base militar dos EUA em Cuba) ou de Abu Grhaib (prisão no Iraque) e também de outras prisões semelhantes no Afeganistão, ou em Israel. Nesses locais, pessoas são condenadas sem processo e agora, freqüentemente, torturadas e humilhadas. São, sobretudo, árabes, islâmicos; de qualquer modo, indivíduos que fazem parte dos povos coloniais ou dos povos de origem colonial.

Nesse sentido, a despeito do grande avanço, alguma coisa da democracia para a classe dos senhores continua a incitar nos EUA, continua a incitar em Israel e continua a existir em geral na relação do Ocidente com os outros povos. Nesse sentido, a luta contra a democracia da classe dos senhores e por uma verdadeira democracia, seja no plano interno seja no plano externo, ainda continua.
Essa luta, se também conseguiu uma grande vitória a partir da revolução de Outubro, não está acabada, mas tende a continuar.

Domenico Losurdo

EDIÇÃO 87, OUT/NOV, 2006, PÁGINAS 80