A arte como instrumento na construção da cidadania
Sabemos todos agora, sem exceção, que existem milhões de brasileiros que têm fome de tudo, e que foram ao longo dos anos sistematicamente excluídos de toda e qualquer política pública e de toda e qualquer ação governamental planejada e efetiva. Proliferou no Brasil um tipo de homem público que virou sinônimo de larápio, bandido, fraudulento, corrupto, cínico e outras designações menos nobres. Agora pela primeira vez em nossa história elegemos um indivíduo, com todas as contradições de qualquer um de nós, mas com dignidade e valores suficientes para iniciar esse processo de mudança de paradigmas e de metas. Dentre elas, uma está correndo o mundo: inverter a lógica da exclusão – não apenas dar um prato de comida a quem tem fome, mas trabalhar objetivamente para que os quase oitenta milhões de brasileiros que vivem à mingua tenham também acesso àquilo que consideramos essencial para o desenvolvimento humano e a construção de um cidadão: o acesso a uma boa educação, à assistência médica básica, a uma infraestrutura mínima no tocante à moradia, em suma à cultura. Hoje já se tornou lugar-comum a expressão “inclusão cultural”.
Bem, naturalmente existem inúmeros programas que pretendem num prazo mais ou menos curto dar conta de todas essas tarefas, levando o Estado finalmente a assumir de fato suas obrigações constitucionais. Dentre as inúmeras formas de inclusão, de atividades que visam a socialização do indivíduo, uma das mais efetivas, das mais prazerosas, das mais agregadoras, é sem dúvida a atividade artística.
A razão é simples: a prática artística pressupõe fundamentalmente a expressão dos sentimentos, o uso da imaginação e a expansão da criatividade. Por meio da arte, o ser humano recria e apreende o mundo dando-lhe uma dimensão que ultrapassa a mera lógica cotidiana, tendo, assim, acesso a experiências que transcendem a linearidade do pensamento discursivo. A arte incentiva a descoberta – algo de suma importância no processo de aprendizagem – e estimula a sensibilidade, levando o indivíduo à compreensão mais profunda do mundo que o cerca e de si mesmo. Ela desenvolve, portanto, a auto-estima e cria condições para que o indivíduo possa escolher conscientemente o seu próprio caminho.
Uma das principais características da experiência estética é que, nela, o indivíduo apreende o mundo de maneira direta, total e una. E aí ele se descobre enquanto ser único e criador.
Num processo de aprendizagem que dê primazia à criatividade em detrimento da memorização mecânica de fatos acabados, o indivíduo amplia a sua visão de mundo e exercita a sua capacidade de entendimento da realidade circundante, ao invés de desperdiçar todo o seu tempo decorando frases feitas e fórmulas vazias.
Certa vez, Bertolt Brecht lançou uma proposta para educar os jovens “por meio do jogo teatral”, no qual eles seriam simultaneamente atuantes e espectadores. Desse modo, a sociedade poderia retrabalhar os impulsos anti-sociais, canalizando-os para atividades criativas e grupais. O indivíduo poderia então reorganizar suas experiências interiores e ver-se “de fora”, o que lhe possibilitaria uma maior autocompreensão e facilitaria a criação de relações sociais sadias.
Brecht, aliás, ambicionou fazer do teatro uma das formas mais eficazes para a educação crítica e social do homem, não só nos espaços destinados aos espetáculos teatrais, mas também nas escolas e em instituições similares. Num ensaio defendendo o teatro amador, Brecht afirma: “Muitas vezes, esquecemos o quanto é teatral a educação do homem. A criança, muito antes de estar munida de argumentos, experimenta de maneira totalmente teatral como deve se portar.(…) São processos teatrais que formam o caráter. O homem copia gestos, mímica, falas.(…) O adulto não é diferente. Sua educação não pára nunca. Só os mortos não são transformados por seus semelhantes. Isso explica o significado do jogo teatral para a formação do caráter.(…) A arte do teatro é a mais humana e difundida de todas as artes, aquela que é a mais praticada, ou seja, aquela que não é exercida apenas no palco, mas também na vida.”
De qualquer modo, sabemos que ser criativo significa estabelecer novas conexões entre as coisas e aproximar símbolos diversos de uma maneira nova, recombinando-os para depois expressá-los de maneira única e original, seja na Ciência, na Arte ou na vida.
Sabemos também que no fundo, como já disseram os gregos e inúmeros filósofos, o conhecimento maior é conhecer a si mesmo. E mais ainda: ao ato de conhecer os gregos associaram o prazer. Aristóteles, na Poética, disse que o maior dos prazeres é aprender. Constatação marcante para quem dá valor à sensibilidade. Pois bem, a arte – dentre as criações humanas – , talvez possua o instrumental mais rico para concretizar uma tal combinação: o conhecimento de si mesmo e o prazer, a seriedade e a diversão, o obrigatório e o espontâneo, a imposição das regras e a liberdade absoluta, o individual e o social. Na sua origem na Grécia antiga, o teatro, por exemplo, acarretou um avanço decisivo no processo civilizatório.
Os escritores românticos alemães no século XIX, a seu modo, também perseguiram objetivos similares: fazer da arte (da literatura, no caso) um instrumento de formação do indivíduo, juntando a formação do caráter com o conhecimento do mundo. Goethe, na Alemanha criou o chamado Bildungsroman (romance de formação), no qual o herói “aprende a viver” num mundo sempre adverso. Schiller reivindicou a ästhetische Erziehung (educação estética), que almejava ensinar através da arte as noções básicas da existência, ou seja, a verdade, o bem e o belo. Os românticos tentaram assim resgatar as origens culturais gregas e em parte, também latinas. Para os latinos também, a arte era bem mais que simples entretenimento. Era uma forma de educação do espírito e da sociabilidade. Vale lembrar neste sentido a função social da comédia nos teatros romanos, cujo lema era ridendo castigat mores. Aliás, os iluministas e os românticos sonhavam com um indivíduo autônomo e tinham a esperança de atingir tal objetivo com o auxílio da arte. Acreditavam que uma existência assim iluminada, esclarecida fosse capaz de transformar a mediocridade da vida. Uma utopia, sabemos, mas muito atraente.
Todas essas concepções e realizações resgatam o sentido de totalidade subjacente à arte. Por isso, a aprendizagem através da prática artística pressupõe o acesso a todas as esferas da vida humana. Para praticá-la é preciso aprender a pensar a criação como um todo, onde tudo já existe, tudo está dado, podendo-se apenas descobrir novas combinações.
Uma de nossas maiores riquezas, reconhecida sempre por todos os estrangeiros que nos visitam, é a nossa capacidade de improvisação, nossa criatividade à flor da pele, que se manifestam, sobretudo, na arte e no esporte. Se na política e na administração pública, a improvisação pode gerar por exemplo a irresponsabilidade e o ”serviço mal feito”, na arte e no esporte ela é a base para criações raras e sublimes. Por que não aproveitar todo esse potencial para organizar grupos sociais, gerar empregos e dar um sentido mais belo à vida de milhares de indivíduos?
A aprendizagem tendo a arte como instrumento pode levar o homem a ver o mundo de fato como uma unidade, como um todo orgânico, onde todos somos interdependentes. A Ecologia, por exemplo, tenta a todo momento convencer os poderosos do mundo com esta verdade básica: tudo está associado a tudo. Obviamente, isso não significa dizer que todos deveriam ser artistas de profissão, ou qualquer utopia semelhante.
Evidencia apenas que a arte desenvolveu ao longo da história os instrumentos mais eficazes para a descoberta e o desenvolvimento das habilidades humanas individuais, para a educação estética e a socialização. Além disso, como sua aprendizagem está centrada no potencial do próprio indivíduo, na ação, na autoconsciência e no autoconhecimento, sua valorização dará sem dúvida uma relevante contribuição para o advento de um mundo mais humano e dotado de valores éticos mais profundos.