Ainda há poucos instantes (dez instantes, dez minutos, que tanto gastei num fiacre desolador desde a nossa Torre de Marfim), eu sentia o rumor de teu coração junto ao meu, sem que nada os separasse senão uma pouca de argila mortal, em ti tão bela, em mim tão rude – e já estou tentando recontinuar ansiosamente, por meio deste papel inerte, esse inefável estar contigo que é hoje todo o fim da minha vida, a minha suprema e única vida. É que, longe da tua presença, cesso de viver, as coisas para mim cessam de ser – e fico como um morto jazendo no meio de um mundo morto, Apenas, pois, me finda esse perfeito e curto momento de vida que me dás, só com pousar junto de mim e murmurar o meu nome – recomeço a aspirar desesperadamente para ti, como para uma ressurreição!

      Antes de te amar, antes de receber das mãos de meu Deus a minha Eva – que era eu, na verdade? Uma sombra flutuando entre sombras. Mas tu vieste, doce adorada, para me fazer sentir a minha realidade e me permitir que eu bradasse também triunfalmente o meu – “Amo, logo existo!” E não foi a minha realidade que me desvendaste – mas ainda a realidade de todo este universo, que me envolvia como um ininteligível e cinzento montão de aparências. Quando há dias, no terraço de Savran, ao anoitecer, te queixavas que eu contemplasse as estrelas estando tão perto de meus olhos, e espreitasse o adormecer das colinas junto ao calor de teus ombros – não sabias, nem eu te soube então explicar, que essa contemplação era ainda um modo novo de adorar, porque realmente admirando, nas coisas, a beleza inesperada que tu sobre elas derramas por uma emanação que te é própria, e que, antes de viver ao teu lado, nunca eu lhes percebera, como se não percebe a vermelhidão das rosas ou  verde tenro das relvas antes de nascer o Sol! Foste tu, minha bem-amada, que alumiaste o mundo. No teu amor recebi a minha iniciação. Agora posso afirmar: “Também fui a Elêusis; pela larga estrada pendurei muita flor que não era verdadeira, diante de muito altar não era divino; mas a Elêusis cheguei, em Elêusis penetrei – e vi e senti a verdade!…”

      E acresce ainda, para meu martírio e glória, que tu és tão suntuosamente bela e tão etereamante bela, de uma beleza feita de Céu e de Terra, beleza completa e só tua, que eu já concebera – que nunca julgara realizável. Quantas vezes, ante aquela sempre admirada e toda perfeita Vênus de Milo, pensei que, se debaixo da sua testa de Deusa, pudessem tumultuar os cuidados humanos; se os seus olhos soberanos e mudos se soubessem toldar de lágrimas; se os seus lábios, só talhados para o mel e para os beijos, consentissem em tremer no murmúrio de uma prece submissa; se sob esses seios, que foram o apetite sublime dos Deuses e dos Heróis, um dia palpitasse o amor com ele a Bondade; se o seu mármore sofresse, e pelo seu sofrimento se espiritualizasse, juntando ao esplendor da Harmonia a graça da Fragilidade; se ela fosse do nosso tempo e sentisse os nossos males, e permanecendo Deusa do Prazer se tornasse Senhora da Dor – então não estaria colocada num museu, mas consagrada num santuário, porque os homens, ao reconhecer nela a aliança sempre almejada e sempre frustrada do Real e do Ideal, decerto teriam aclamado in aeternum, como a definitiva Divindade. Mas quê! A pobre Vênus só oferecia a serena magnificência da carne. De todo lhe faltava a chama que arde na alma e a consome. E a criatura incomparável do meu cismar, a Vênus Espiritual, Citeréia e Dolorosa, não existia, nunca existiria!… E quando eu assim pensava, eis que tu surges, e eu te compreendo! Eras a encarnação do meu sonho, ou antes de um sonho que deve ser universal! – mas só eu te descobri, ou, tão feliz fui, que só por mim quiseste ser descoberta!

      Vê, pois, se jamais, te deixarei escapar dos meus braços! Por isso mesmo que és a minha Divindade – para sempre e irremediavelmente estás presa dentro da minha adoração. Os sacerdotes de Cartago acorrentavam às lajes dos Templos, com cadeias de bronze, as imagens dos seus Baals. Assim te quero também, acorrentada dentro do templo Avaro que te construí, só Divindade minha, sempre no teu altar – e eu sempre diante dele rojado, recebendo constantemente na alma a tua visitação, abismando-me sem cessar na tua essência, de modo que nem por um momento se descontinue essa fusão inefável, que é para ti um ato de Misericórdia e para mim de Salvação. O que eu desejaria na verdade é que fosses invisível para todos e como não existente – que perpetuamente um estofo informe escondesse o teu corpo, uma rígida mudez ocultasse a tua inteligência. Assim passarias no mundo como uma aparência rutilante. Vê quanto te amo – que te queria entrouxada num rude, vago vestido de merino, com ar quedo, inanimado… Perderia assim o triunfal contentamento de ver resplandecer entre a multidão maravilhada àquela que em segredo no ama. Todos murmurariam compassivamente: “Pobre criatura!” E só eu saberia, da “pobre criatura”, o corpo e a alma adoráveis!

      Quanto adoráveis! Nem compreendo que, tendo consciência do teu encanto, não estejas de ti namorada como aquele Narciso que treme de frio, coberto de musgo, à beira da fonte, em Savran. Mas largamente te amo, e por mim e por ti! A tua beleza, na verdade, atinge a altura de uma virtude – e foram decerto os modos tão puros da tua alma que fixaram as linhas tão formosas do teu corpo. Por isso há em mim um incessante desespero de não te saber amar condignamente – ou antes (pois desceste de um Céu superior) de não saber tratar, como ela merece, a hóspede divina do meu coração. Desejaria, por vezes, envolver-te toda uma felicidade imaterial, seráfica, calma infinitamente como deve ser a Bem-Aventurança – e assim deslizarmos enlaçados através do silêncio e da luz, muito brandamente, num sonho cheio de certeza, saindo da vida na mesma hora e indo continuar no Além o mesmo sonho extático. E outras vezes desejaria arrebatar-te numa felicidade veemente, tumultuosa, fulgurante, toda chama, de tal sorte que nela nos destruíssemos sublimemente, e de nós só restasse uma pouca de cinza sem memória e sem nome! Possuo uma velha gravura que é um Satanás, ainda em toda a refulgência da beleza arcangélica, arrastando nos braços para o Abismo uma freira, uma Santa, cujos derradeiros véus de penitência se vão esgaçando pelas pontas das rochas negras. E na face da santa, através do horror, brilha, irreprimida e mais forte que o horror, uma tal alegria e paixão, tão intensas – que eu as apeteceria para ti, oh minha santa roubada! Mas de nenhum destes modos te sei amar, tão fraco ou inábil é o meu coração, de modo que por meu amor não ser perfeito, tenho de me contentar que seja eterno. Tu sorris tristemente desta Eternidade. Ainda ontem me perguntavas: “No calendário de seu coração, quantos dias dura a Eternidade?” Mas considera que eu era um morto – e que tu me ressuscitaste. O sangue novo que me circula nas veias, o espírito novo que em mim sente e compreende, são o meu amor por ti – e se ele me fugisse, eu teria outra vez, regelado e mudo, de reentrar no meu sepulcro. Só posso deixar de te amar – quando deixar de ser. E a vida contigo, e por ti, é tão inexprimivelmente bela! É a vida de um deus. Melhor talvez: – se  eu fosse esse pagão que tu afirmas que sou, mas um pagão do Lácio, pastor de gados, crente ainda em Júpiter e Apolo, a cada instante temeria que um desses deuses invejosos te raptasse, te elevasse ao Olimpo para contemplar  a sua ventura divina. Assim não receio – toda minha te sei para todo o sempre, olho no mundo em torno de nós como um paraíso para nós criado, e durmo seguro o réu peito na plenitude d glória, oh minha três vezes bendita, Rainha da minha graça.

      Não penses que estou compondo cânticos em teu louvor. É em plena simplicidade que deixo escapar o que está borbulhando na alma…Ao contrário! Toda a Poesia de todas as idades, na sua gracilidade ou na sua majestade, seria impotente para exprimir o meu êxtase. Balbucio, como posso, a minha infinita oração. E nesta desoladora insuficiência do Verbo humano, é como o mais inculto e o mais iletrado que ajoelho ante ti, e levanto as mãos, e te asseguro a única verdade, melhor que todas as verdades – que te amo, e te amo, e te amo, e te amo!…
 
Fradique

 

Cartas d’Amor – Eça de Queiroz
Editora Garamond.
Seleção Adalberto Monteiro
Digitação Camila Ferreira.