Brecht está morto?
Nasceu em 1898 e morreu em 1956; viveu duas grandes guerras e presenciou a degeneração do convívio humano em proporções até então inimagináveis. Passados cinqüenta anos de sua morte, vemos que as relações entre os homens – foco de toda a sua obra teatral e poética – evoluíram pouco no sentido de se criar uma sociedade mais justa e igualitária. Atrocidades, chacinas, corrupção e genocídios compõem o cotidiano do homem do século 21 de uma maneira tão implacável quanto no período em que Brecht produziu a maior parte de seus textos. Sua arma era estimular a reflexão através do prazer de se assistir a um bom espetáculo teatral, e apelar incessantemente ao bom senso.
Criador de uma nova pedagogia, calcada na experiência, Brecht dá relevo em seus textos didáticos aos conflitos comuns em nosso dia-a-dia, chamando a atenção do espectador para as verdades subjacentes ao comportamento hipócrita que fundamenta a nossa ordem social, mediante a argumentação lúdica e lógica e de uma estruturação cênica na qual tudo adquire um significado, até mesmo o local escolhido no palco para se colocar uma cadeira. Desse modo ele estimula o público a “ler” a realidade a partir do exemplo dado pelo teatro, onde tudo é estético, e onde de tudo emana um sentido. Nessa busca pelas significações de tudo aquilo que nos envolve, seus espetáculos utilizam técnicas que estimulam o espectador a observar o passado e o presente de um ponto de vista “distanciado”, como se estivesse “de fora”, analisando o comportando e julgando as atitudes dos personagens, em muito semelhantes às da vida real.
Brecht ambicionou fazer do teatro uma das formas mais eficazes para a educação crítica e social do homem, não só nos espaços destinados aos espetáculos teatrais, mas também em escolas e instituições similares: um sonho irrealizável ou um otimismo exagerado? Exercitou no palco as suas idéias, compartilhando-as com seus contemporâneos, sempre acreditando na transformação do humano e de suas relações sociais. Lutou contra a hegemonia ditatorial da palavra no dito teatro pequeno-burguês, postulando uma linguagem abertamente teatral, gestual, uma “fala” característica do palco, na qual o significado de uma cena advém de um conjunto de ações e de recursos técnicos, e não somente do texto. Indagou-se até à morte sobre a função e o significado social do teatro num mundo submetido a rápidas e constantes transformações. Por acontecer no presente e na presença do público, o teatro é tão perturbador, tornando o presente ainda mais real do que o fluxo normal da consciência. Afinal, no teatro os personagens são sempre modelares, perceptíveis em seus diversos ângulos, diferentemente do cotidiano. Para ele, o teatro deveria abandonar a sua função meramente decorativa, “culinária”, para tornar-se essencial, popular, humano e transformador. Outra de suas utopias?
A própria escolha dos temas na maioria de seus textos visava a confrontar o espectador com uma situação cotidiana comum e, ao mesmo tempo, emblemática, questionável: a selvageria da guerra, em Mãe Coragem e seus filhos; o sentido da bondade humana num mundo dividido por um fosso entre ricos e pobres, em A alma boa de Setsuan; a amizade possível (?) entre patrões e empregados em O Sr. Puntila e seu criado Matti; a trajetória de um dirigente despótico cujo poder se apóia no roubo e no crime, em A resistível ascensão de Arturo Ui; o significado da justiça ou a denúncia da injustiça e da opressão, em O círculo de giz caucasiano; o fato de que os líderes políticos seriam dispensáveis para o progresso de uma sociedade, em Coriolano; os maiores pecados da humanidade transformados em virtudes pelo capitalismo, em Os sete pecados capitais dos pequenos-burgueses; a utilização negativa da capacidade intelectual, a bajulação e o descaso dos governantes pelo povo, em Turandot ou o congresso dos intelectuais; o soldado estúpido que se torna uma ameaça, em Schweyk na Segunda Guerra Mundial; o julgamento, por pessoas comuns, dos feitos de um grande herói, em O julgamento de Luculus e os significados e benefícios do progresso científico e a necessidade de heróis, em A vida de Galileu, são alguns exemplos.
Explorando o humor e a beleza, Brecht invoca o prazer e a alegria – tão familiares a nós, brasileiros, para quem a alegria é a prova dos nove – para justificar a busca incessante, em suas encenações, de uma linguagem fortemente presente no comportamento social. Certa vez afirmou: “Nada do que fazemos representa um esforço feito com alegria, e para justificarmos os nossos atos não invocamos o prazer que tivemos ao executá-los, mas sim o suor que nos custou”. Os ingredientes básicos de sua prática teatral são portanto a ruptura, a ironia, o exercício de uma linguagem gestual comunicativa e a primazia da encenação em detrimento do uso estático da palavra, sem jamais ignorar que o público foi ao teatro para se divertir e que isso pressupõe o prazer tão essencialmente humano de pensar, de refletir, de compreender. O teatro seria então o espaço da celebração social, do compartilhamento lúdico de idéias e sensações. A possibilidade de transformação inerente a ele contagia os espectadores e exalta a sua percepção de ser social.
Hoje, assolado por tantas mídias e excesso de informação, saturado de palavras de ordem, de slogans os mais diversos e de conceitos vazios propagados pelas grandes redes de notícias, o público tem, naturalmente, uma disposição diferente ao se dirigir a um local de espetáculos. Ele convive com as aparências e simulacros da realidade com total desenvoltura e pouco ou nenhum senso crítico. Não está mais interessado em mudar o mundo, talvez nem sequer a si mesmo. Para alguns vivemos o fim da história, o que pode significar a mais absoluta resignação. Para outros, as utopias sociais são coisa do passado e o que importa é a trajetória e a realização individual, a capacidade de adequação às constantes necessidades do mercado e a aceitação das guerras e da injustiça como fatos inevitáveis.
Nestas últimas décadas as idéias de Brecht continuaram evoluindo e estimulando a reflexão e a prática dos criadores teatrais, e sem dúvida fornecem um instrumental útil para quem pretende fazer do teatro algo mais que a simples glorificação da vaidade fútil. Para Brecht, indagar, reconstruir, reinventar caminhos é próprio do homem e essa crença, além de sua vasta obra, é seu grande legado. Como disse certa vez em um poema, propondo que inscrevessem em sua lápide: “Ele deu sugestões, nós as aceitamos”.