Um retirante às avessas
Isso pouco importa às comunidades do Sul do País, que se beneficiaram de circunstâncias favoráveis para alcançar um nível razoável de emancipação civil. A decantada unidade nacional simplesmente não existe. Lá embaixo está a casa-grande, enquanto aqui em cima está a senzala, invertendo a topografia do poder de antigamente.
Uma demonstração gritante desta divisão geopolítica pode ser colhida no primeiro turno da recente eleição para presidente. Ideologias à parte – que, aliás, nunca prevaleceram nas decisões eventualmente eleitorais no Brasil – o pessoal do Sul preferiu votar em um candidato amorfo do que confirmar o cargo para um sujeito que, afinal, não passa de um retirante nordestino, filho de analfabetos; nada significando a admiração dos representantes de países super-civilizados que cometeram, há pouco, até a afronta de diplomá-lo como “Estadista do Ano”. O que que é isso? Retirante nordestino está aí para lustrar os sapatos de gente bem, assim como os hispânicos que vivem tolerados nos Estados Unidos estão lá para lavar os pratos após os banquetes nos quais os democratas que são republicanos e os republicanos que são democratas confraternizaram, comemorando a coincidência de suas ideologias (?) de senhores do mundo (só não se sabe até quando).
Agora só falta explicar por que cargas d’água eu decidi, consciente do que estava fazendo, me tornar um retirante no sentido inverso, ou seja, emigrante da Itália para o Brasil, estacionando em São Paulo durante vários anos, onde exerci diversas atividades de cunho criativo, emigrar novamente para o pedaço mais sofrido do eterno “País do Futuro”. É o seguinte: Durante a Segunda Guerra quando, ainda adolescente, fui estafeta esporádico, em Milão, dos Partigiani que lutavam contra as infâmias do poder nazifascista, ocupei aqueles anos cuidando ao mesmo tempo dos meus estudos e me deslocando entre o Teatro Alla Scala, onde assistia a ensaios da minha mãe, cantora lírica, e, à distância de poucas quadras, acompanhando algumas aulas de meu pai, escultor, na Accademia di Belle Arti di Brera. Daí, entrei no mercado de trabalho, começando como técnico em artes gráficas, e, logo mais, abraçando uma profissão que, a rigor, ainda não existia. Criava marcas e fazia programação visual. Até que, aos 25 anos de idade, embalado por diversos motivos, mas, sobretudo, por convicções ideológicas, resolvi me mudar para um país subdesenvolvido, que tivesse, no entanto, notáveis perspectivas de amadurecimento. Foi assim que, com um empurrãozinho de Stefan Zweig, escolhi o Brasil.
Deixando de lado as coisas que pude realizar em S. Paulo e as primeiras tentativas profissionais na cidade eleita (Recife), talvez minha investida mais bem sucedida tenha sido a fundação da Italo Bianchi Publicitários Associados, devendo muito a um sócio cearense inteligente, leal e competente, Alfrízio Melo, que soube administrar desde o começo (faz 35 anos) uma proposta tão inovadora quão arriscada e perturbadora, mas que, apesar ou graças a isso, conquistou clientes de dimensão nacional e se espalhou por aí. De minha parte, o maior prazer emocional e intelectual foi, durante anos, de contar com colaboradores de criação (redação e arte) geralmente jovens, talentosos, aplicados, que eu instigava o tempo todo, graças aos papos à propósito ou à margem dos trabalhos, para que ampliassem constantemente suas bagagens culturais. Trata-se de dezenas de pessoas que hoje são donos de agências ou profissionais que trabalham por aqui, ou em São Paulo, ou no Rio, ou até no Exterior. Sendo que alguns deles migraram para atividades emparentadas com a criação publicitária, como o teatro, o cinema, a tevê e a literatura. São filhotes de criação – no sentido figurado, por um lado, e concreto por outro – com os quais falo, vez por outra, quando nos alegramos, reciprocamente, com as lembranças de mancadas cometidas de parte a parte e com as piadas infâmes inventadas naqueles momentos.
Post scriptum
Parece que este ano eu terei que sublinhá-lo, devido a umas coincidências comemorativas próprias para uma autobiografia que nunca escreverei:
1) 50 anos do lançamento do Suplemento Literário do jornal “O Estado de S. Paulo” – 06 de outubro de 1956 – para o qual criei o projeto gráfico (vide caderno Cultura do Estadão, páginas 1 e 2 + fac-símile encartado na mesma edição, em 08.10.2006).
2) 35 anos da fundação da Agência Italo Bianchi.
3) Lançamento da minha segunda coletânea de crônicas (ainda neste mês de outubro).