Drummond e as eleições II
“Confidência do Itabirano”
Absoluta, categórica, plena, rigorosa, sincera. São adjetivos que poderia apor à vitória que, com 58.295.042 votos, renova o fôlego da agenda de esquerda do projeto nacional de modo bastante auspicioso. “Confidência do Itabirano”, breve poema de Sentimento do mundo (1940), nesse contexto, ganha uma nova dimensão, se o tomarmos como texto que dá fatura estética aos impasses de nossa formação nacional.
Vejamos, então, se é possível enxergar, a partir da leitura do poema, dilemas do projeto nacional que permanecem ou que foram superados nesses mais de sessenta anos entre sua publicação e a reeleição de Lula, momento em que, para muitos, a idéia de nação já está superada. Recordemos os versos do poeta mineiro:
Confidência do Itabirano
Alguns anos vivi em Itabira.
Principalmente nasci em Itabira.
Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.
Noventa por cento de ferro nas calçadas.
Oitenta por cento de ferro nas almas.
E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação.
A vontade de amar, que me paralisa o trabalho,
vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem horizontes.
E o hábito de sofrer, que tanto me diverte,
é doce herança itabirana.
De Itabira trouxe prendas diversas que ora te ofereço:
esta pedra de ferro, futuro aço do Brasil,
este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval;
este couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas;
este orgulho, esta cabeça baixa…
Tive ouro, tive gado, tive fazendas.
Hoje sou funcionário público.
Itabira é apenas uma fotografia na parede.
Mas como dói!
Para não enfarar o leitor com literatismos, detenho-me apenas em dois aspectos principais da estrutura do poema: a sua dinâmica de enunciação dual (uma voz que se estabelece entre o pessoal e o coletivo) e a convivência contrastante do moderno com o antigo.
Quem fala, em “Confidência do Itabirano” é uma voz muito pessoal, muito íntima. Entretanto, o eu, aos poucos, vai revelado seu lugar de classe. Durante a leitura, vamos percebendo, então, a quem pertence a voz não apenas individualmente, mas em termos coletivos. O contraste está já no próprio título. Se o termo “confidência” designa um gênero discursivo individual, ele é caracterizado por um adjetivo que revela pertencimento a uma coletividade. O poema, portanto, não aponta apenas para as dores íntimas ou para os segredos invioláveis da subjetividade. As dores são aqui as dores da coletividade, as dores do movimento histórico dessa coletividade, e os segredos invioláveis são os do processo modernizador. Por isso, Itabira dói no peito do poeta e no Brasil que se desejava, àquela altura, moderno. A situação de aporia é individual e, ao mesmo tempo, nacional.
Itabira dói porque revela os limites do projeto nacional brasileiro e também os limites do próprio exercício modernista da poesia. A reflexão que o poeta faz, muito embora se timbre pela liberdade métrica, pela fala “desengomada” que contraria, em certa medida, os manuais da tradição poética, não alcança na totalidade a poética modernista. Coisas antigas emperram essa vivência moderna da subjetividade e da poética. Uma delas está no próprio discurso: a caracterização romântica do eu com expressões como “noites brancas”, “hábito de sofrer”, “triste, orgulhoso”. Os tons não são os do Modernismo e sim de um arcaico romantismo. Igualmente arcaicos são certos elementos que cercam o poeta, como o “couro de anta” e “o São Benedito”. O que se vê é o contraste entre o velho e o novo. Ainda que a modernização transforme “a pedra de ferro” em “futuro aço do Brasil”, o atraso não passará, nem no discurso do poeta, nem na realidade que o cerca.
Do que se constata na forma do poema, podemos tirar duas conclusões. A primeira é a de que está clara a reorganização das elites para bem se reposicionarem no poder diante do avanço modernizador. Diz o poeta, que inegavelmente pertence à classe dirigente: “tive ouro, tive gado, tive fazendas/ hoje sou funcionário público”. A permanência do arcaico no contexto do moderno, como traduz imagem final da fotografia na parede, entretanto, mostra grão de anomia e desagregação que macula o progresso capitalista.
Será assim, por meio do poema, fácil entender que a dinâmica da modernização capitalista é muito peculiar nas condições da periferia do mundo. Nesse sentido o que parece moderno pode representar atraso; o que parece antigo pode carregar avanço, especialmente se o foco estiver voltado para o desenvolvimento humano e não o desenvolvimento meramente econômico. A fotografia na parede do funcionário é o dado moderno que fixa o atraso, impedindo-o de passar.
Esses dilemas da modernização brasileira se revelaram ao país no segundo turno das eleições de 2006. A coligação PSDB/PFL, cujo slogan “Por um Brasil decente” evidenciou seu conteúdo segregacionista hipócrita e conservador, tratou de vestir-se das cores do desenvolvimento, pregando o Estado mínimo, defendendo as privatizações, sonhando com o retorno da subserviência mercantil e ideológica aos EUA, repetindo a cantilena do corte de impostos e chamando de pífio o crescimento promovido pelo primeiro governo Lula. Nessa perspectiva, não só as ações, mas especialmente o ideário geral da proposta da coligação “A força do povo”, seriam coisa do passado. Segundo os neoliberais, embora isso nunca tenha sido dito explicitamente, mantendo o ritmo das preocupações sociais, jamais nos sintonizaríamos com o primeiro mundo.
O combate se deu nesse segundo turno entre certa visão segundo a qual a idéia de nação é coisa do passado e outra que compreende que o processo de formação do país ainda não se completou. A análise miúda dos números da eleição mostrou que, de fato, Alckmin venceu entre os mais ricos do país e Lula foi de longe o preferido entre os mais pobres. A elite tentou garantir a reproposição da agenda modernizadora, que, com mais facilidade, garantir-lhe-ia o quinhão de privilégio. Entretanto, a agenda vitoriosa foi a do projeto nacional à esquerda, com todas as contradições que ele invariavelmente apresenta. Nesse projeto nacional, a voz que fala mais alto é a dos excluídos, é a daqueles que foram silenciados, que permaneceram anônimos e coadjuvantes na história. O que os setores explorados da sociedade ganharam foi, principalmente, espaço para a luta de transformação e pela formação nacional de fato.
Nesse sentido, o resultado das urnas também foi uma “confidência”, como aquela do poema de Drummond. A vitória de Lula deixou claro que o ideário modernoso dos tucanos representa retrocesso para as classes populares. Foram elas que se manifestaram no dia 29 de outubro revelando o desejo de se tornarem protagonistas da narrativa de seu país. O desejo de serem mais do que apenas uma fotografia na parede.