Com pontualidade britânica, às cinco horas da manhã, quando começa a despontar o dia nesta época do ano, o bem-te-vi, que mora em uma árvore em frente ao meu apartamento, canta. E é com aquela frase sonora, inconfundível, curta, límpida e repetida sempre no mesmo tom, como se fosse um eterno aprendiz de um instrumento musical, que ele me acorda de fato e prazerosamente, já que eu tenho o hábito de levantar da cama um pouco antes do seu trinado. Começa aí a vivência de mais um dia com suas rotinas e seus imprevistos, com suas alegrias e suas mágoas, pautado pelo constante instinto dionisíaco e a vulnerável disciplina cartesiana, enfim fazendo jus àquela velha história do confronto entre os sentimentos da razão e da emoção que administram os nossos saberes e o nosso comportamento, definindo assim nossas diferentes personalidades.  
       
      O que que é isso, gente? Mal comecei a escrever esta matéria encantado com o cantar do bem-te-vi e já estou filosofando? Nada disso. Hoje eu quero falar de bichos, dos animais todos que aprendi a amar e a me aproximar deles o mais possível desde pequeno, apesar das dificuldades implícitas por ter nascido e ter sido criado como indivíduo urbano. Isto, em um país europeu que acabou com os animais  selvagens há muito tempo e que os poucos que ainda existiam eram objeto do esporte ignóbil da caça até recentemente; assim como os bichos exóticos eram encarcerados em jáulas de tamanho ínfimo nos cruéis zoológicos para serem exibidos a um público que nada sabia sobre a vida deles em liberdade.  
      
      Até que há bem pouco tempo, e com muito atrazo, os povos ditos civilizados foram impelidos por um punhado de intelectuais a começar a criar uma consciência ecológica. Os zoológicos foram humanizados (se é que esta expressão faz sentido) e as formas de caça quase todas proibidas. Mas ainda é permitido judiar dos bichos nas touradas, nos rodeios e na exibição de animais amestrados até em números televisivos. E por falar em TV, parece que descobriram que há vida no planeta além das novelas, do futebol e das bisbilhotices, pois estão começando a ser exibidos, timidamente, alguns programas sobre ecologia, alguns de excelente qualidade. No entanto, é inacreditável que no Brasil, um país que possui a maior floresta virgem, sobrevivente do processo civilizatório, e que preserva, ainda que involuntariamente, a maior variedade de espécies animais do mundo, não se ensine, nas escolas, quase nada de substancial sobre flora e fauna. E, sobretudo – o que é mais grave – não se cultive um relacionamento afetivo com a natureza. Eu disse relacionamento afetivo, que é uma coisa bem diferente do que as meras referências livrescas que devem ser decoradas para fingir, nas provas escolares, um certo conhecimento de uma matéria secundária.  

      A esse propósito, não vale a desculpa que a aproximação de bichos com gente é muito difícil para quem vive no meio urbano. Certamente o é, mas é também superável quando pais e educadores estão preparados cultural e emocionalmente para essa nobre missão. E aqui vou citar um exemplo de iniciativa que me é familiar. Minha filha Silvana, cuja formação humanista e educação da sensibilidade vão além do diploma de pedagogia, dirige uma escola de educação infantil e ensino fundamental que funciona segundo uma metodologia elaborada por ela. Isso inclui a manutenção de um espaço ecológico nas dimensões adequadas para criar animais de pequeno porte que, na prática cotidiana, se transforma em modesta mas emotiva sala de aula. Sendo que seu prolongamento acontece quando as crianças, devidamente autorizadas pelos pais, levam para casa um bichinho para tratar dele nos fins de semana. Assim, enquanto contam aos pais como funciona biologicamente um minhocário mantido na escola, ficam alimentando um cágado com folhas de alface e acariciando seu casco composto por uma seqüência lógica de formas geométricas. Talvez a criança se lembre disso mais tarde, quando tiver que aprender o teorema de Pitágoras.