A leitura como escavação (1)
Nesta pequena série de artigos, que se inicia hoje, esboçaremos a exposição de uma leitura da literatura a partir de duas fontes: em primeiro lugar o raciovitalismo do filósofo espanhol José Ortega y Gasset (1883-1955), e em segundo, como pano de fundo, a fenomenologia do filósofo alemão Edmund Husserl (1859-1938). Tentaremos argumentar em favor da idéia de que uma leitura “comum”, de fruição, do fenômeno literário, ou seja, uma leitura mais vital, não técnica, feita por especialistas, mas aquela feita pelo leitor comum, em casa, na rua, fora dos muros da escola, resulta em uma escavação e se aproxima da que é possível fazer a partir da perspectiva raciovital (o que significa aquela que utiliza uma razão vital, em vez da razão em sua dimensão instrumental, físico-matemática do especialista) – para saber mais sobre raciovitalismo ler o verbete José Ortega y Gasset em www.wikipedia.org.
Nessa escavação, os leitores comuns retirariam do texto, ao nosso ver, exatamente aquilo que as tendências mais contemporâneas compreendem como o fundamental… E jogam fora. A escavação feita pelo leitor comum selecionaria precisamente o que a maioria das leituras da academia considera o necessário. E, como Ortega, em “O que é Filosofia?”, quando diz que em se tratando de humano, “o supérfluo é o necessário”, ficam com o supérfluo. Também queremos dizer que, a partir de certa leitura da filosofia de Ortega, é possível pensar na literatura como uma ação de um sujeito eu-circunstância, não só eu (no sentido cartesiano), nem só circunstância, menos condicionada que este ao espaço, ao tempo e ao econômico, que o de certa tradição, em que o sujeito já nem existe, virando quase que um conjunto aleatórrio de circunstâncias, sem vontade, sem inteligência, sem espírito, numa oposição impetuosa ao sujeito cartesiano, solipsista. E já morto.
Quero utilizar, como exemplo, uma leitura da peça “As Três Irmãs”, do escritor russo Anton Tchecov. A Rússia é gelada a maior parte do ano. Um lugar distante e com uma língua certamente incompreensível para a maioria de nós. Vivemos nos trópicos, onde se fala português e se ouve samba. Aquele país continente, maior até mesmo que o nosso, certamente não tem muito o que ver com o Brasil do futebol, das praias paradisíacas, do Pantanal e da Amazônia. Nem com a miscigenação que produziu o povo brasileiro.
Foi lá que Anton Tchecov escreveu e publicou uma de suas mais bonitas peças. As Três Irmãs foi escrita no final do século XIX e publicada em 1901, um tempo muito diferente do nosso. Um século e um ano atrás! Não havia televisão, naquela época, nem computador, e o homem não tinha ido à Lua. Decididamente, um outro tempo, um outro mundo.
Pois naquele mundo e naquele tempo, Tchecov escreve em sua peça uma comovente passagem em que Macha diz, a sua irmã Olga, que se dera conta de que já estava esquecendo o rosto da mãe, morta algum tempo antes. Olga também se surpreende. Vê o mesmo vazio que a irmã. Então, um terceiro personagem intervém, melancólico e sem perder a elegância. Lembra que o esquecimento seria o destino de todos eles, os que estavam naquela casa a centenas de quilômetros de Moscou, e inclusive o do tempo em que viviam. Todos serão esquecidos um dia, pois estamos indo para um nada. Um grande e deserto nada. É essa a mensagem principal da peça.
Hoje talvez fique mais difícil, em pleno início do século XXI, imaginar esta parte da história narrada por Tchecov – Macha e Olga terem esquecido o rosto da mãe – mas podemos pensar que, em milhares de anos, somente nos últimos cem temos registros mais abundantes dos rostos de nossas pessoas queridas, e que, antes do século XX, era bem mais fácil alguém morrer para sempre, inclusive da memória de alguém. Nem nos túmulos iam fotos. Porque elas não existiam. Hoje, gravamos tudo, Mas o que quero dizer com isso? Bom, As Três Irmãs foi escrita em uma sociedade determinada, passa-se em uma aldeia a centenas de quilômetros de Moscou, retrata uma certa família, três irmãs, e uma época que não existe mais. No entanto, a lemos através dos tempos, inclusive hoje.
Rio, 40 graus
Rio de Janeiro, outubro de 2002, 35º a sombra, parte do comércio da cidade fechado pelo tráfico de drogas, clima de espera pelas eleições presidenciais, trânsito nervoso, som de disparos de armas, um brasileiro lê As Três Irmãs. Depara-se com o diálogo de Macha e Olga. Poderia entendê-lo? Qual a operação que ele faz no momento de ler este texto, que o possibilite um contato com algo tão estranho a sua cultura, seu espaço e seu tempo? Forma um túnel ao seu redor, ligando-o com tão estranha cultura? Mas como? Coloca o mundo entre parênteses e separa o que é exterior do que seria a “essência” do que está escrito (essência, mas já não no sentido da razão cartesiana, físico-matemática, e sim de essencial em oposição ao desnecessário)? O presente artigo pretende afirmar que é um tipo de redução fenomenológica o que o leitor faz para ler o texto.
Muito provavelmente faça, mas de maneira lateral, outras leituras, dependendo de sua formação (de seu maior grau de racionalidade técnica), e que focalizam elementos menos importantes, do ponto de vista da razão vital, para quem está disposto a ler o horror a que Tchecov está se referindo, e que é o mesmo horror no Rio de Janeiro de 2002, em Tóquio de 1975, Pequim da década de 80, Buenos Aires nos anos 30, Nova York de 1998, Atenas de 1920. Ou seja, em qualquer tempo ou lugar o essencial de As Três Irmãs é o mesmo. Ler esse essencial é algo que exige um tipo de razão: a razão vital.
O mundo entre parênteses
O que é uma redução fenomenológica? A grosso modo, é um método do filósofo alemão Edmund Husserl, criador da famosa, influente e hoje fora de moda “fenomenologia”. Para simplificar as coisas, a redução fenomenológica consiste em pôr em parênteses o mundo exterior à consciência, que Husserl chamava de “transcendente” para buscar a “essência” dos fenômenos.
Mas queremos fazer a aplicação de uma redução especial para ler a passagem sobre Olga e Macha. Retiramos o fato de que o livro foi escrito em outra língua, num país distante, numa história específica, a muitos graus abaixo de zero, e que está sendo lido mais de um século depois num país que em nada tem a ver com a Rússia, nem geográfica, nem historicamente, climaticamente ou o que seja. Pois retirando-se todo este “entulho”, tudo o que não interessa, chega ao leitor uma essência. Talvez seja essa a própria essência da literatura.
É o mesmo que acontece com a tragédia grega, que nos é trágica porque trata da nossa sinuca de bico existencial, e não apenas da sinuca dos gregos. Não parece plausível que os latino-americanos, africanos ou asiáticos tenham tragédias “essencialmente” (e não apenas circunstancialmente) tão diferentes das tratadas por Sófocles, Eurípedes ou Ésquilo. Ora, é a condição humana que nos faz participar do drama da humanidade e não o tempo, a cultura, a raça, o país ou as condições econômicas em que nascemos. Também acontece o mesmo com os personagens de Shakespeare ou Dante, com Borges e Machado de Assis, em seus países e culturas próprios. Eles não têm pátria, nem tempo, não porque sejam etéreos, ou por algum misticismo que se costuma fazer, mas porque a essência do que disseram sobrevive ao circunstancial, ao temporal, ao espacial, ao econômico e ao psicológico.