A tendência do jornal
As eleições de 2006 provocaram intenso debate sobre o papel e as características da imprensa brasileira. A cobertura jornalística dos principais veículos de comunicação foi considerada tendenciosa por diversos instrumentos de aferição, como o Laboratório Doxa-Iuperj e o Observatório de Imprensa. Além de diversos especialistas e jornalistas que cobriram e participaram do processo de investigação das notícias e elaboração das informações.
O episódio do Dossiê Tucano, evento crucial que levou a eleição presidencial para o segundo turno e enterrou a possibilidade de vitória petista em São Paulo, foi um dos momentos de acirramento do debate sobre a cobertura tendenciosa da imprensa nas eleições. As matérias publicadas por Raimundo Pereira na revista Carta Capital, demonstrando o conluio entre jornalistas ligados aos principais meios de comunicação – em especial, a Rede Globo e o delegado da Polícia Federal que vazou as principais informações e imagens da operação das prisões dos petistas envolvidos – são uma demonstração do funcionamento das grandes redações. A partir da trapalhada dos petistas envolvidos, a mídia acabou por beneficiar o candidato tucano de forma decisiva, às vésperas das eleições presidenciais, com a divulgação das fotos do dinheiro e a ocultação de informações cruciais nas reportagens do escândalo do dossiê. À parte o reconhecimento de o dossiê ter sido importante para a geração de notícias, portanto, não se tratando da crítica de sua divulgação, a mídia acabou por transformar o fato em campanha, oferecendo dimensão desproporcional ao que se pode considerar como cobertura equilibrada.
Através do Doxa (Laboratório de Pesquisa em Comunicação Política e Opinião Pública, grupo de estudos do Iuperj) foram feitos extensos monitoramentos dos principais jornais do país sobre a cobertura jornalística das eleições presidenciais em primeiro e segundo turnos. Foram analisados Folha de S.Paulo, O Estado de São Paulo, O Globo e Jornal do Brasil. A pesquisa teve por base os registros de visibilidade (quantas vezes cada candidato foi citado em cada jornal) e valência (relação de matérias positivas, negativas e neutras dos principais candidatos). A definição de valências é o efeito potencial para cada candidatura, se beneficia ou prejudica com ou sem viés de parcialidade.
Foram consideradas matérias positivas as reproduções de programa de governo; promessas; declarações do candidato, do autor da matéria ou de terceiros, resultados de pesquisas ou comentários favoráveis ao candidato. As matérias negativas estão nas mesmas condições de análise, desfavoráveis ao candidato. Neutras são citações de candidatos sem avaliação moral, política ou pessoal dos candidatos.
A análise dos gráficos apresentados pelo Doxa são números aproximados considerando a cobertura de 17 quinzenas no primeiro turno e duas no segundo turno (exceção de Cristóvam Buarque que passou a ser acompanhado a partir de 12 de março), com cobertura a partir de 1º de fevereiro. É importante destacar que as quantidades de matérias publicadas são desiguais dadas à importância de cada candidatura na disputa. Os candidatos do PT e PSDB tiveram a maior quantidade de aparições, justificados pela polarização da campanha já verificada na análise anterior.
Os números apresentados pelo Laboratório Doxa não podem ser analisados de forma isolada ou descontextualizada em relação ao conteúdo de suas publicações, mas são uma pista de como foram tratados os candidatos durante a eleição. De maneira geral, podemos tirar por conseqüência que os candidatos da oposição obtiveram destaques positivos maiores que o candidato Lula, em especial, a candidatura de Heloísa Helena, insuflada pela imprensa para crescer.
Podemos verificar um segundo elemento: a comparação do percentual de matérias entre os jornais no que diz respeito aos candidatos Lula e Alckmin, visivelmente favorável ao candidato tucano, principalmente no 2º turno da eleição. A concentração inversamente proporcional entre Lula e Alckmin, com o maior número de matérias negativas para Lula entre o final do 1º turno e início do 2º e como positivas para Alckmin neste mesmo período, num claro esforço da imprensa em forçar nova disputa e a conseqüente virada da oposição que não aconteceu.
A análise do conteúdo das matérias dos quatro principais jornais também oferece sinais de clara preferência pelo candidato do PSDB, tendo em vista as opiniões de seus colunistas e as matérias publicadas favoráveis às idéias, os projetos e as críticas da oposição a Lula.
Os jornais no Brasil não têm a tradição de declaração de apoio a candidaturas, diferentemente de outros países, como os EUA onde jornais tradicionais como New York Times defendem em seus editoriais as opiniões favoráveis tradicionalmente aos democratas. Ainda assim não se justifica a tendência de publicar notícias favoráveis a um ou outro candidato. O jornal tem o direito de emitir opinião e até apoiar candidaturas, mas a credibilidade jornalística, maior patrimônio do veículo de comunicação, pode ser questionada a partir dessas condições tendenciosas.
A análise estatística baseada no critério estabelecido pelo núcleo de pesquisa do Iuperj pode ser questionada, mas o comportamento político e o histórico destes veículos de comunicação dão razão para os números apresentados. Portanto, os jornais impressos não são isentos na produção de notícias. O que está em jogo em suas posições? Poderíamos considerar a produção da notícia como uma influência de composição de classe? Qual o impacto destas questões para a vida democrática do país?
A tendência do jornal
O jornal nasceu com o capitalismo e acompanhou o seu desenvolvimento, inclusive no seu processo produtivo. A notícia é o produto do jornal, já definido por diversos pensadores da comunicação e das ciências sociais. No Brasil, a sua característica é a oligopolização com poucos veículos capazes de ter ressonância regional ou nacional.
Para identificar a tendência de um jornal buscaremos a concepção estruturalista a partir da definição do jornal, e mais extensivamente da imprensa, como aparelhos ideológicos de Estado. Segundo Louis Althusser, a explicação do Estado enquanto agente repressivo de uma classe sobre outra (a burguesia sobre o proletariado) lançando mão da justiça, da polícia e outros instrumentos jurídicos-legais não são suficientes para explicar a submissão de uma maioria sob uma minoria.
Os “Aparelhos Ideológicos de Estado” (AIE’s) surgem para explicar uma nova forma de submeter uma classe à outra, através do convencimento de idéias, ou seja, pela disputa ideológica. Portanto, teremos nesta definição, além do aparelho repressor tradicional das classes dominantes, dados pelas leis e pela força, também uma estrutura de manutenção do sistema econômico e social a partir da educação, da religião, da cultura etc. Entre estes AIE’s formulados por Althusser, está a comunicação (baseado na imprensa, rádio, tv etc). Portanto, “todos aparelhos ideológicos de Estado, sejam quais forem, contribuem para um mesmo resultado: a reprodução das relações de produção, isto é, das relações capitalistas de exploração. Cada qual contribui para este resultado único da maneira que lhe é própria” (Athusser, 1999, p. 121).
Os jornais assim como outros diversos veículos de informação, como aparelhos ideológicos de Estado, se renderam à ideologia neoliberal. Para o estudo de caso apresentado neste trabalho, a cobertura jornalística dos principais jornais brasileiros é tendenciosa para defender um determinado ponto de vista ideológico e entram na disputa política apoiando, mesmo indiretamente, uma candidatura mais identificada com seus ideais. Na disputa política os jornais funcionaram como instrumento de luta de idéias.
A defesa do mercado enquanto instrumento eficiente na regulação social faz com que eles tenham a defesa de posições políticas como as privatizações e a menor intervenção do Estado na economia. Enquanto empresas de comunicação, estes jornais também estão comprometidos com a defesa irrestrita da propriedade privada e têm interesses específicos que em algumas ocasiões podem interferir na notícia publicada.
Eles são veículos de comunicação tradicionais, acumularam ao longo dos anos muito prestígio na sociedade e hoje cumprem papel relevante na formação de opinião, e conseguem pautar outros veículos de comunicação de maior abrangência como rádios e tv’s. O principal patrimônio continua sendo a credibilidade de suas notícias, mesmo que o receptor da informação detecte a tendência do jornal.
Para Eugênio Bucci – mesmo considerando que a imprensa seja um negócio e a notícia uma mercadoria e com freqüência transformadas em instrumentos do poder político e econômico – é a credibilidade o principal patrimônio desta empresa e sua perda fatalmente será o fim de seus negócios. “A independência editorial, portanto, tornou-se pressuposto obrigatório para quem, em nome do cidadão, se investigue, se escreva e se publique as notícias. Quem entra no ramo de informar o público tem que oferecer informação independente, isto é, informação voltada exclusivamente para atender o direito à informação. De sorte que, embora a imprensa seja um negócio comercial e a notícia seja mercadoria, e embora jornais, revistas, emissoras de televisão e rádio e os sites jornalísticos na internet sejam rotineiramente transformados em instrumentos do poder econômico ou do poder político, a expectativa da sociedade continua a exigir, ainda que tacitamente, a independência editorial” (Bucci, 2000, p. 58).
Os jornais tentam demonstrar independência na produção da notícia e conseguem passar confiabilidade pelo corpo de profissionais que atuam nas redações, muito embora haja críticas severas à condução editorial apresentada entre esses profissionais, porque mesmo com todo esforço ético e profissional a decisão e a opinião emitidas pelos editoriais, principais colunistas e artigos de opinião são reflexos da opinião da empresa jornalística.
Nenhum destes jornais define claramente suas posições ideológicas preferindo utilizar o argumento do compromisso com a verdade. Ocorre que a verdade tem fatos e versões e sua interpretação incorre numa forma de visão que, em última instância, estará dirigido por uma concepção ideológica. Em referência aos manuais de redação – documentos que orientam o estilo e a conduta dos jornais, jornalistas e projeto gráfico e editorial – todos se identificam sem caráter ideológico ou defendem a pluralidade de pensamento. A Folha orienta assim, sobre questões ideológicas em seu manual de redação:
“Em documentos anteriores a este, a Folha cristalizou uma concepção de jornalismo definido como crítico, pluralista e apartidário. Tais valores adquiriram a sua característica doutrinária que está impregnada na personalidade do jornal e que ajudou a moldar o estilo da imprensa brasileira nas últimas décadas. Cabe questionar, porém, à luz das transformações sumariadas acima, se a implementação desses valores não deveria passar por uma revisão também, até com a finalidade de sacudir o automatismo fixados de hábito. Se a premissa destas notas está correta – ou seja, se o jornalismo atravessa um período de qualificação, que ultrapassa a ênfase normativa do período anterior, a decorrência é que aqueles valores devem ser tomados, também eles, de modo mais qualificado. Isso não significa que o jornalismo deva aplacar a sua disposição crítica, mas refiná-la e torná-la mais aguda num ambiente que não é mais dicotômico, no qual o debate técnico substituiu, em boa medida, o debate ideológico” (Manual de Redação, 2001, p. 17).
Com este entendimento cria-se uma falsa idéia de um jornal que não se influencia por critérios ideológicos, sendo superados por critérios técnicos da informação. Isto se deve, provavelmente, a uma visão da Folha de que as estruturas ideológicas tais como conhecemos estão superadas, em uma franca adesão ao pensamento pós-moderno do fim das matrizes iluministas.
Os jornais aqui estudados são instrumentos importantes para a defesa dos princípios do liberalismo econômico, inclusive em sua fase atual, o neoliberalismo, cumprindo um papel de formar opinião na sociedade, na emissão da mensagem a partir deste conceito ideológico. O mercado concentra os veículos de comunicação nas mãos de poucos grupos ou famílias enquadrando a verdade em interesses privados muito específicos.
Portanto, os jornais analisados têm compromissos político e ideológicos definidos, fazem uma opção de classe muito clara. Cumprem um papel de aparelho ideológico de Estado fazendo com que as opiniões emitidas e mesmo notícias publicadas tenham uma tendência de apoio à ideologia dominante.
Não significa, contudo, que estes jornais estejam vinculados a todo e qualquer governo, partido ou personalidade política. Ao contrário, há compromisso com o sistema econômico e social, mesmo com pontuais críticas republicanas à corrupção, à miséria social ou a outros assuntos relevantes. Estas críticas e posições próprias de cada veículo de comunicação fazem parte das características das lutas de idéias no seio do próprio liberalismo.
Os jornais aqui estudados estão comprometidos com a aplicação do neoliberalismo no Brasil por entenderem não haver alternativa no momento, considerarem o mercado como o mais eficiente mecanismo de regulação social.
O neoliberalismo, porém, proporcionou em pouco mais de duas décadas (1980-90) o completo desmonte de serviços estatais de proteção à sociedade: o desmonte de sistemas de distribuição de renda, previdência pública, compensações para desempregados e a desestruturação de serviços essenciais como saúde e educação. Tudo sob a alegação de tais responsabilidades não serem do Estado e de ser a sociedade que deve dar conta de regular essas demandas; quando muito, os governos devem aplicar modelos de assistência às camadas mais desfavorecidas com as chamadas políticas focalizadas.
Ele realizou o processo de privatização das empresas estatais para que o Estado não tivesse intervenção econômica de regulação de preços e estímulo ao desenvolvimento. Com a bandeira da globalização pressionou os países para uma abertura desregulada de seus mercados internos para a competitividade internacional, provocando a falência e a desnacionalização de muitas empresas nacionais. Tudo isto em favor da idéia auto-regulatória do mercado. Esta concepção existe pela cultura dos poderosos reproduzida por diversos instrumentos entre os quais a mídia.
A comunicação se transformou ao longo deste último século e é um dos principais elementos estratégicos na chamada luta de idéias. A mídia, enquanto estrutura econômica, necessita de abertura, sobretudo para não permitir o “monopólio da verdade”. Entre as alternativas para a construção de uma sociedade mais democrática é o amplo desenvolvimento dos veículos de comunicação de massas com maior flexibilidade e oportunidade da constituição da pluralidade social na exploração do espaço mídia.
Outro elemento fundamental para uma mudança no comportamento tendencioso dos jornais é a pressão popular, ou seja, os seus leitores, a sociedade organizada através de suas representações e organizações, personalidades e intelectuais têm capacidade de fazer críticas capazes de alterar o pensamento editorialista desses veículos contaminados pela entidade empresarial.
É preciso resgatar o sentido iluminista do direito inalienável à informação, garantindo a amplitude e a pluralidade social, necessárias para a construção de uma sociedade mais democrática capaz de dar respostas alternativas ao pensamento único do neoliberalismo.
Rodrigo de Carvalho é sociólogo e mestre em Comunicação Social.
Referências
Althusser, Louis. “Ideologia e Aparelhos Ideológicos de Estado”, in Um Mapa da Ideologia, Contraponto, 1a reimpressão, Rio de Janeiro, 1999.
Bahia, Juarez. Jornal, História e Técnica, vol. 2, Ática, 4a edição, São Paulo, 1990.
Bucci, Eugênio. Sobre Ética e Imprensa, Companhia das Letras, 1a reimpressão, São Paulo, 2002.
Manual de Redação. Folha de S.Paulo, Publifolha, 6a edição, São Paulo, 2001.
Marcondes Filho, Ciro. O Capital da Notícia, Ática, 1a edição, São Paulo, 1998.
Moraes, Denis. “O capital da mídia na lógica da globalização”, in Por uma outra comunicação, Record, São Paulo, 2003.
Motta, Luiz Gonzaga. “Ideologia e processo de seleção de notícias”, in Imprensa e Poder, Editora UnB e Imprensa Oficial de São Paulo, 2002.
Sodré, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil, Mauad, 4a edição, Rio de Janeiro, 1998.
Laboratório de Pesquisa em Comunicação Política e Opinião Pública do Iuperj sobre a eleição presidencial 2006. Disponível para download em http://doxa.iuperj.br/eleições2006.htm
EDIÇÃO 88, FEV/MAR, 2007, PÁGINAS 74, 75, 76, 77, 78