As eleições presidenciais na França
A França entra na reta final da sua eleição para um novo presidente. O primeiro turno será em 22 de abril. E o segundo – se houver –, em 6 de maio, enfrentarão os que obtiverem os primeiros lugares na contenda.
Desde 1981 os eleitores franceses vêm sistematicamente entregando a vitória aos partidos da oposição, com exceção da reeleição de François Mitterrand, em 1988. Não se trata de uma opção patente dos franceses pela alternância, mas de uma manifestação de descontentamento: no governo, os partidos – tanto de esquerda, quanto de direita – acabaram por decepcionar. E, como resultado desse descontentamento, observa-se aumento das abstenções e de votos na extrema-direita.
Os franceses esperam por respostas a suas aspirações e aos problemas do país.
Depois de um longo período de domínio da direita, a esquerda governou a França de 1981 a 1984. Socialistas, comunistas e radicais de esquerda nacionalizaram uma parte considerável da economia e realizaram reformas importantes para os direitos dos trabalhadores. No entanto, a partir de 1983 a decisão de preparar o país para a criação de uma moeda única européia impôs políticas de austeridade e de reestruturações industriais que levaram ao desemprego e criaram desilusões. Os comunistas saíram do governo em 1984, em desacordo com o rumo tomado, e não retornaram até a formação do governo de Lionel Jospin, em 1997. Nesse meio tempo, o Partido Socialista governou com parte da direita e acabou sofrendo uma derrota sem precedentes para a direita, em 1993. O período de 1993 a 1997 caracterizou-se pelo retorno das mobilizações populares contra as leis racistas e as tentativas do governo direitista de acabar com os sistemas de proteção social.
Em 1997 a esquerda chegou ao governo do país graças a uma forte dinâmica popular, que depositou toda a sua confiança no Partido Socialista, no Partido Comunista, nos partidos Verde e radicais de esquerda, esperando uma mudança real nas políticas reacionárias e antipopulares da direita.
O governo do socialista Lionel Jospin realizou algumas reformas, mas sem fazer modificações estruturais que indicassem mudança de rumo em benefício das classes populares. Em 2002 a esquerda foi varrida numa eleição em que os menos favorecidos se abstiveram, deixando de fora do segundo turno um candidato de esquerda. E, então, Jean Marie Le Pen, herdeiro das piores tradições petanistas e de extrema-direita, concorreu com Jacques Chirac. No primeiro turno, nenhum dos candidatos obteve 20% dos votos. O próprio Lionel Jospin conseguiu apenas 16% e o representante do Partido Comunista não chegou nem a 4% – o pior resultado na história desse partido que um dia foi o primeiro da França. A extrema-esquerda, que não apoiava o governo, conquistou 10% se somarmos os votos das duas candidaturas trotsquistas.
O trauma deixado por esses resultados está, todavia, vivo no eleitorado francês e sem nenhuma dúvida influenciará nas eleições deste ano. A necessidade de uma crítica às estratégias daquele momento e a maneira de a esquerda governamental relacionar-se com o movimento popular e os movimentos sociais não podem ser ignoradas.
Essa última derrota deveu-se à ausência de reformas profundas que pudessem ter ocasionado mudanças na vida do povo francês. O governo teve uma postura muito conciliadora com os grandes capitalistas e, dentre a maioria, o Partido Socialista adotou uma conduta hegemônica que levou muito pouco em consideração as posições de seus aliados da “esquerda plural”. Não foi feito o necessário para organizar mobilizações populares capazes de impor uma correlação de forças favorável às reformas.
Naturalmente, seria injusto afirmar que a política de esquerda é a mesma que a praticada pela direita. Existe uma diferença de fundo, mas o alcance das reformas adotadas foi, nas experiências passadas, insuficiente para ser política e economicamente eficaz. O número de desempregados diminuiu, é fato. No entanto, isso ocorreu com a criação de postos de trabalho não correspondentes ao nível de formação de quem os ocupava. Exemplo disso é a criação de empregos em escolas. Os cargos de assistentes de professor foram ocupados por jovens que, apesar de diplomados, viram-se obrigados a aceitar esses postos de trabalho que desvalorizavam o nível de sua educação. Ao mesmo tempo, isso impediu que os professores auxiliares – preparados para isso – pudessem trabalhar.
Outro exemplo é a lei das 35 horas semanais, que respondia a uma das principais reivindicações dos trabalhadores. Essa lei que reduzia o tempo de trabalho sem redução de salário não teve caráter nacional, e sua aplicação tinha de ser negociada por todos os ramos de atividade separadamente; além disso, os salários foram congelados. Em contrapartida, os patrões obtiveram maior flexibilização anualizando o tempo trabalhado e, como resultado, não foram criados os empregos previstos. No entanto, a produtividade exigida de cada assalariado, sim, aumentou.
Ainda outro exemplo: o setor público. O governo, seguindo as decisões adotadas na Cúpula Européia, de Lisboa, abriu as portas à privatização ao conceder capitais da Air France e da France Telecom, violando assim o compromisso de interromper as privatizações em curso, firmado entre PS e PCF em 29 de abril de 1997. O retorno da direita
Com a eleição de Jacques Chirac em 2000, a direita revanchista e agressiva voltou decidida a implementar o programa coordenado pelo MEDEF – organização dos donos de empresas – com o objetivo de destruir as conquistas sociais obtidas pelo povo francês. Tais políticas estão acabando com o modelo social criado pelo Conselho Nacional da Resistência após a derrota do nazismo e, como conseqüência, aproximam a França do modelo liberal anglo-saxão.
O processo de privatização total da maior parte das empresas públicas continua avançando e os últimos exemplos são as companhias de eletricidade e de gás. O sistema de reforma da previdência e o código trabalhista estão sendo aniquilados; a precariedade prossegue. Atualmente 71% dos contratos de trabalho firmados são temporários e o Contrato de Novas Contratações implementado permite ao empregador, nas pequenas empresas, despedir os novos funcionários sem justificativa durante um período de dois anos.
Ao lado disso, as cotizações fiscais patronais diminuíram a ponto de em dois anos o Estado ter deixado de receber 29 bilhões de euros, enquanto os lucros do capital aumentaram em 33% em 2005. A baixa dos salários é tal que 85% dos trabalhadores recebem menos de dois salários mínimos; o número de pobres não pára de aumentar, chegando de 7 a 11 milhões, segundo as fontes.
Nicolas Sarkozy, candidato da coligação por um Movimento Popular – entusiasta da direita no poder – anunciou sua intenção de, no entanto, ir mais longe: prometeu acabar de uma vez por todas com o modelo social francês. A França corre o risco – caso esse candidato ganhe – de adotar uma política exterior atlantista próxima às orientações de George Bush.
Nicolas Sarkozy apresenta-se como homem de autoridade, decididamente favorável aos métodos repressivos, e intolerante com a imigração, mas sempre disposto a aprovar aos representantes do capital todas as liberdades necessárias. O representante da direita se autodenomina candidato daqueles que “acordam cedo, trabalham duro e amam a liberdade de trabalhar”. Maneira confusa e desonesta de se dizer favorável ao fim das 35 horas semanais – que os assalariados, apesar de tudo, preferiram conservar. Nicolas Sarkozy é o candidato do liberalismo selvagem.
Já o candidato da direita veicula suas proposições – todas realizáveis graças à magia do mercado – com um discurso populista, buscando atingir um eleitorado de direita radicalizado que vota em candidato de extrema-direita.
Diante disso, o Partido Socialista propõe a candidatura de Segolene Royale, governadora da região Poitou-Charentes e ex-ministra. Ela iniciou sua campanha mostrando suas afinidades com o modelo social-liberal aplicado por Tony Blair no Reino Unido. A reação contrária a esse anúncio, mesmo dentro de seu partido, a fez renunciar a tal discurso. No entanto, no momento suas intenções continuam vagas. Ela nem sequer retomou o programa adotado por seu partido há alguns meses. É angustiante ver como Segolene Royale trata de invadir o terreno da direita ao se referir em seus discursos a temas como “ordem justa”, “família” e ao se autoproclamar “candidata da moral”.
O debate europeu na campanha eleitoral
Os franceses, e os setores populares, novamente esperam a contingência de um governo que detenha a ofensiva da direita. A esquerda é capaz de impor uma mudança real que responda às expectativas populares? Qual seria a configuração dessa esquerda? Os êxitos eleitorais da esquerda não representam por si mesmos garantia de mudança, mas acabam demonstrando que a esquerda é capaz de apresentar uma alternativa real às políticas liberais. Cada vez que a esquerda, no governo, frustra as esperanças populares deixa a impressão de que afinal não há muita razão para nela se votar. E, desse modo, a extrema-direita avança.
Segundo pesquisas, emprego, salário, pobreza, precariedade, educação e proteção social são os temas que mais interessam ao eleitorado nestas eleições. Todos eles foram determinantes para o resultado do referendo de 29 de março de 2005 em que foi rejeitado o projeto do Tratado Constitucional Europeu. Dessa forma, o respeito ao voto, emitido pelos franceses, deverá fazer parte da campanha eleitoral.
Nesse referendo o “Não” venceu com 54,68%, com grande participação dos setores populares. O “Não” foi um voto popular (79% de operários, 71% de desempregados, 70% de agricultores, 67% de trabalhadores) e de esquerda (59% do eleitorado socialista, 64% dos Verdes e mais de 80% dos comunistas). Foi uma recusa não à União Européia, mas às orientações que marcaram sua organização: privatizações e fim dos sistemas de proteção social. Foi uma recusa ao reinado da “concorrência livre e deturpada” entre empresas, territórios, sistemas de proteção social e entre os trabalhadores.
Ainda hoje, autoridades européias e governos nacionais queriam impor novamente uma Constituição, ignorando o voto da França e dos Países Baixos. Segundo José Manuel Barroso, presidente da Comissão Européia, o essencial é fazer avançar os conteúdos reais, as políticas previstas: privatização dos serviços de correio, da energia e das telecomunicações.
Ângela Merkel, chanceler alemã, presidente da UE, admitiu como objetivo ter uma Constituição em 2009. Nicolas Sarkozy é favorável a um novo tratado que seria legitimado não mediante referendo, mas pelo parlamento francês. Já Segolene Royale declara-se a favor da idéia de um novo texto em 2009. Por isso, as eleições deste ano na França também terão repercussão no futuro da UE.
Uma perspectiva política
A vitória de 2005 foi possível graças a uma dinâmica popular, criada a partir da base local pelos “Coletivos pelo Não” abertos a toda a população. Nesses coletivos, militantes oriundos de diferentes organizações da esquerda política e social discutiam os conteúdos do TCE e a estratégia comum. Apesar da posição favorável ao “Sim” da direção de seus partidos, militantes socialistas e verdes participaram ao lado de comunistas, trotsquistas, de sindicalistas e defensores dos direitos humanos, de feministas e de outros cidadãos, na construção de tal dinâmica.
Após a vitória do “Não” foi elaborada a questão de como fazer o voto ser respeitado e como transformar as aspirações expressas durante a batalha pelo “Não” em alternativa política de esquerda antiliberal majoritária.
As lutas destes últimos anos reforçaram essa aspiração popular e questionam a esquerda em seu conjunto. Já em 2004 a direita foi derrotada nas eleições regionais sem que isso significasse que a esquerda tivesse uma proposição claramente alternativa. A vitória do “Não” indicou quais podiam ser os conteúdos de uma alternativa vencedora.
A esquerda do “Não” decidiu concorrer nas eleições de 2007 a partir dos Coletivos Unitários locais onde foram elaborados uma estratégia e um programa. Foi criado um Coletivo Nacional com representantes das forças políticas e com militantes cidadãos com a missão de coordenação. Como em 2005 foi perseguida a criação de uma dinâmica participativa cidadã, a diversidade de autores contribuiu em muito para envolver toda a sociedade.
Deliberou-se por funcionar com um duplo consenso na tomada de decisões: o dos coletivos unitários locais e o das organizações participantes. Ou melhor, tratou-se de dar prioridade à busca ativa da concordância.
Decidiu-se por não aceitar uma participação em governo social-liberal, que seria incoerente com as aspirações populares, sem descartar o voto no segundo turno contra a direita. No entanto, a direção da Liga Comunista Revolucionária (trotsquista) não aceitou nem a estratégia definida nem tampouco foi suficiente o compromisso firmado em relação à questão governamental. A Liga apresentou seu próprio candidato, embora representantes de sua minoria pró-unitária continuasse a participar dos coletivos unitários locais e do nacional.
Os coletivos unitários adotaram um programa de 125 pontos e o debate sobre a candidatura – que havia sido adiado, dando-lhes prerrogativas para buscar um acordo sobre os conteúdos e proposições – que, então, foi lançado.
O Partido Comunista, que fez da questão do reagrupamento da esquerda antiliberal e cidadã o centro da sua estratégia a partir do seu congresso de 2003, após votação interna decidiu propor a pré-candidatura de Marie Georges Buffet, sua secretária nacional.
Surgiram, ainda, outras quatro candidaturas: José Bové, dirigente camponês; Yves Salesse, da Fundação Copernic; Clementeine Autain, independente, membro do grupo de conselheiros comunistas da prefeitura de Paris; e Patrick Braouzec, prefeito comunista de Saint Denis.
Então, os velhos fantasmas, que se escondem na história da esquerda francesa, apareceram: a desconfiança em partidos políticos – que parecia superada pela ação comum – e as divergências entre os agrupamentos políticos em relação a quem poderia representar essa esquerda antiliberal. Esses fantasmas impediram que se chegasse ao consenso buscado. Houve também um enfoque diferente sobre a perspectiva pós-eleitoral. Para alguns, seria criada uma nova organização política em curto prazo, quando no PCF pensava-se mais na configuração de uma união popular e majoritária em que a diversidade não fosse assimilada numa nova estrutura.
Tratando de desobstruir a situação, os coletivos realizaram um voto indicativo que permitiria perceber qual dos candidatos tinha a preferência dos militantes. Marie Georges Buffet obteve o maior número de votos, mas os membros do Coletivo Nacional permaneceram em desacordo.
Ao constatar essa situação, os militantes do Partido Comunista, em votação interna, confirmaram sua preferência por Marie Georges Buffet, e o Conselho Nacional do PCF decidiu lançar sua candidatura. O tempo se consumia em intermináveis discussões, deixando o campo livre para as candidaturas da direita e do social-liberalismo – e se fazia urgente lançar-se na batalha pelo rompimento de fato com o bipartidarismo que se impõe na França.
O PCF levou adiante uma reflexão coletiva que levava em consideração a crise atual da democracia representativa e a dos partidos e adotou uma linha baseada na relação de igual para igual com os movimentos sociais, sem a pretensão de posicionar-se como um tipo de vanguarda autoproclamada. Para os comunistas, a transformação social significa a construção comum popular e cidadã, e não uma justaposição de organizações e militantes. Por isso, a candidatura de Marie Georges Buffet não podia ser rejeitada a pretexto de que se tratava da primeira responsável do principal partido da esquerda do “Não”.
Marie Georges Buffet apresentou sua candidatura como a do PCF, mas colocando-a à disposição de um reagrupamento de toda a esquerda antiliberal, levando em consideração que as 125 proposições são um bem comum que deve ser defendido nesta campanha. Não se trata de ajustar uma candidatura, ou um programa, mas de continuar o esforço pela união popular majoritária. Esta eleição é uma primeira etapa; a segunda será a eleição legislativa de junho. Por esse motivo, a unidade da esquerda popular e antiliberal continua a ser um desafio. Sem ela a transformação progressista da sociedade francesa não será possível.
A França de hoje não é a mesma da que viu nascer a esquerda socialista e comunista no início do século XX. A classe operária, a de trabalhos manuais, já não é majoritária. O setor terciário ocupa uma massa crescente de assalariados e, ao mesmo tempo, o capitalismo financeirizado cria precariedades e marginalização. A esquerda compreendeu a necessidade de união hoje com todos aqueles que sofrem as diferentes formas de dominação, que podem se transformar em atores da mudança. Sem dúvida, o próximo capítulo, a se viver nestes meses, não é o último. Outras batalhas comuns ainda estão por vir…
Obey Ament é membro do departamento de Relações Internacionais do Partido Comunista Francês (PCF). Traduzido por Maria Lucilia Ruy, mestre em Letras Clássicas.
EDIÇÃO 88, FEV/MAR, 2007, PÁGINAS 58, 59, 60, 61, 62