As vitórias de quatro candidatos situados à esquerda – Lula, Rafael Correa, Daniel Ortega e Hugo Chávez, respectivamente em Brasil, Equador, Nicarágua e Venezuela – encerraram o alargado calendário eleitoral que, entre novembro de 2005 e dezembro de 2006, viu realizadas quatorze eleições nacionais na América Latina e no Caribe (ver quadro anexo), na maior concentração de eleições num mesmo período em décadas (1).

Segundo os resultados, a América Latina segue girando à esquerda, se materializando numa maioria quantitativa – e, sobretudo, qualitativa – de vitórias de candidaturas situadas do centro para a esquerda no espectro político. Com isso, afirma-se um novo ciclo – tendência com sentido e características progressistas, democrática e nacional – que se espraia por toda a região.

Essa tendência avança sobre o declínio do movimento contrário, o neoliberalismo, que passa a ser repudiado amplamente pelos povos. Exemplo vigoroso desse declínio é o repúdio às privatizações e a conseqüente defensiva dos ideólogos do neoliberalismo no segundo turno das eleições presidenciais brasileiras. Tal desprestígio das teses neoliberais – todavia hegemônicas no mundo –, contrasta com uma (re)emergência da questão nacional, ou melhor, de embriões de projetos nacionais de soberania e independência, baseados num novo protagonismo do Estado, como marca principal desses novos governos na América Latina. Registra-se também um declínio da influência dos Estados Unidos em diversos planos: político, ideológico e econômico. Aliás, este último tem como exemplo marcante o estancamento e a agonia de seu projeto hemisférico de “livre comércio”, a Alca.

Em síntese, o novo quadro latino-americano registra a ascensão de forças políticas e sociais novas que buscam, em oposição às tradicionais dependência e subordinação às potências exógenas, a afirmação de caminhos próprios.

O quadro latino-americano atual é permeado de singularidades, ineditismos. Pela primeira vez na história, três das quatro maiores economias da região são governadas, concomitantemente, por forças posicionadas do centro para a esquerda. É o caso de Brasil, Argentina e Venezuela, núcleos-duros e motores desse ciclo novo. Também é um ciclo democrático: partidos comunistas participam em nível ministerial de quatro governos (Brasil, Venezuela, Bolívia e Uruguai) – e apóiam um outro (Equador) – dentre dez países sul-americanos. Além disso, nunca houve um ciclo de governos progressistas na América Latina, pelo menos nas proporções atuais (2).

De conjunto, são fatos novos que tornam a América Latina um importante pólo na cena internacional de resistência à globalização neoliberal e ao mundo unipolar. Junto a países do Oriente Médio, alvo de brutal ofensiva, inclusive no plano militar, por parte do imperialismo norte-americano – que busca redesenhar o seu mapa e o da China que, apoiada no socialismo, passa por um período de transformações aceleradas – a América Latina é parte principal da luta de resistência no mundo.

Além disso, o atual ciclo progressista traz em seu germe um caráter antiimperialista, pois a afirmação de caminhos nacionais, de autonomia, contrasta, objetivamente com as pretensões do imperialismo norte-americano de estender no tempo seu domínio sobre esses países. A autonomia regional, portanto, é antípoda do domínio geopolítico, econômico e ideológico pelo imperialismo.
Não obstante esse quadro novo há a atuação de travas e condicionantes que buscam incidir em seu desenvolvimento. É um fator de primeira grandeza, que condiciona as mudanças à tendência, dominante e hegemônica no mundo: o capitalismo em sua fase neoliberal, sua forma contemporânea.

Dessa forma, a busca de alternativas, de caminhos nacionais, adquire, quanto mais avança, um caráter anti-sistêmico, ou anticapitalista. Por isso, a despeito das experiências socialistas do século XX, são caminhos novos, ainda não percorridos, devido a serem apresentados desafios novos para a consecução das mudanças.

E, ainda, a nova América Latina desperta reação do imperialismo norte-americano. É falsa e unilateral a idéia de que – devido ao pântano em que se meteram no Iraque – os EUA estariam em estado de letargia quanto às mudanças em curso na América Latina. A reação não apenas ocorre, como atua em variados planos.

Os sintomas da ação imperialista são variados, diretos ou indiretos. Eles aparecem nas recentes disputas eleitorais mediante violentas campanhas anticomunistas em países como México e Peru com a mobilização de uma poderosa mídia oligopolizada, ou ainda pela utilização desta como instrumento de desestabilização, como o caso do Brasil, com Lula. Na cunha entre Uruguai e Argentina no tema das indústrias de celulose. Nas atuais ameaças de secessionismo na Bolívia, ou, no limite, na utilização de instrumentos golpistas clássicos, como na Venezuela. Na cooptação de parcelas das burguesias nacionais, sobretudo as exportadoras, para as assinaturas de “contratos de adesão” à hegemonia estadunidense, como os Tratados de Livre Comércio (caso, na América do Sul, de Chile, Peru e Colômbia) que implodiram a Comunidade Andina das Nações e são foco constante de tensão no Mercosul com os membros menores.

É importante registrar a atual fase do capitalismo, bem como a reação do imperialismo norte-americano, para – a despeito da novidade revelada pela atual quadra latino-americana – não contaminar a análise com precipitações voluntaristas: não se trata, todavia, de um ciclo revolucionário, mas de uma tendência progressista, de resistência contra-hegemônica, que se afirma. Ademais, não resulta em irreversibilidade. Ainda assim, seus avanços gradativos podem criar condições para afirmar passos iniciais da renovada luta pelo socialismo na América Latina.

Sentido geral do ciclo progressista

Há um sentido geral a se destacar na atual geração de governos progressistas latino-americanos. Um rumo comum, um corte de iniciativas mais ou menos convergentes – a despeito de, como veremos, terem velocidades e ritmos distintos. Sistematizar os elementos sobressalentes nesta primeira fase das experiências dos governos progressistas é algo pendente, até por serem tão recentes tais experiências. Mas buscaremos a seguir agrupá-las em grandes blocos de iniciativas.

Como dissemos, no conjunto, a marca principal é de iniciativas que buscam em diferentes níveis afirmar caminhos nacionais próprios. É expressão, um sintoma disto, o recente Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), carro-chefe do segundo mandato de Lula, cujo sentido é “destravar” as potencialidades para um vigoroso crescimento do capitalismo brasileiro e de suas forças produtivas; com o “Plan Simon Bolívar 2007-2013”, medidas transformadoras com sentido apontado ao proclamado socialismo do século XXI na Venezuela; na experiência argentina de forte crescimento econômico e retorno da presença do Estado após a moratória de 2001 e a tragédia menemista; a busca, pela Bolívia, de meios para industrializar o gás, sua riqueza maior; a reestruturação da sufocante dívida externa no Equador; a busca, pelo Paraguai, de uma folga fiscal no contrato de Itaipu; a bandeira do Uruguai Produtivo e do pleno emprego no governo frenteamplista; mesmo no Chile onde um ambiente mais arejado já permite certo debate e questionamento da herança neoliberal.

Mas, podemos agrupar em três grandes dimensões – nacional, democrática e social – o sentido geral das experiências progressistas latino-americanas:

A luta por “alternativas” contra-hegemônicas

Na centralidade do tema desenvolvimento na agenda nacional e de integração dessas experiências. No aumento da presença do Estado na economia e na reestruturação de empresas e setores econômicos estratégicos, com a nacionalização ou reversão, embora parciais ou pontuais, de privatizações feitas no ciclo neoliberal.

No primado do tema energia, com a busca de compartilhamento de excedentes, articulando redes como o Gasoduto do Sul – cujo primeiro trecho poderá ligar o Caribe venezuelano a Recife já em 2012 –, ou na disseminação da técnica inovadora dos biocombustíveis. Ou, ainda, numa crescente aliança de empresas estatais, como a Petrobras, a PDVSA, a YPFB, a Petroecuador, a Ancap e a Enarsa. Na centralidade da integração física da América Latina, em especial a do Sul, a partir de iniciativas como a IIRSA (Iniciativa para a Integração Regional Sul-americana).

Na busca de folga fiscal para um financiamento do desenvolvimento; na redução da vulnerabilidade externa por folgas na balança comercial – possibilitadas pela alta de commodities no mercado internacional – ou pela liquidação unilateral e soberana, por vários países da região, de seus contratos com o FMI, livrando-se de amarras e condicionalidades neoliberais.

Na emergência de novas alternativas de financiamento, como o BNDES, financiando obras de integração. Ou o governo da Venezuela, com sua política de compra de títulos da dívida de países como Argentina e Equador; na proposta de um Banco do Sul, ou uma aliança entre os órgãos nacionais de fomento ao desenvolvimento (BNDES, Bandes, Banco de la Nacion Argentina).

Na busca por desdolarizar o comércio Brasil-Argentina e utilizar instrumentos como os CCR’s (Convênios de Créditos Recíprocos), embriões de uma moeda única e caminho para uma política de convergência macroeconômica – num sentido desenvolvimentista – na América do Sul.

Em governos voltados para os trabalhadores e as maiorias nacionais

Pelo ativismo social caracterizado por esses governos progressistas, que buscam efetivar certa redistribuição de renda, com a redução da pobreza crônica e a recuperação dos salários dos trabalhadores e no enfrentamento das desigualdades sociais – apesar de essas medidas serem limitadas estruturalmente pelo capitalismo.

Assim, espraiam na América Latina experiências como: Bolsa-família; missiones sociais venezuelanas; bolsa-escola boliviano; plano de emergência social uruguaio; debate sobre recomposição da seguridade social e da escola pública no Chile. Do mesmo modo é preciso registrar o generoso oferecimento pelo Governo revolucionário de Cuba de seus excepcionais experiência e excedente de pessoal técnico para iniciativas em educação e saúde (como em programas de alfabetização, médicos da família e consultas oftalmológicas), por toda a América Latina.

No aprofundamento da democracia

Destacamos, aqui, como fenômeno geral, uma participação popular maior, com o incentivo à formação de fóruns e conselhos de variados tipos; enfim, com uma permeabilidade maior do Estado ao povo e aos movimentos sociais. Na reconfiguração de sistemas políticos falidos ou semifalidos, com instrumentos como Assembléias Nacionais Constituintes “refundadoras” (casos de Venezuela, Bolívia, Equador), ou as Leis Habilitantes venezuelanas.

No debate que se avoluma por toda a região sobre a necessidade de democratizar os grandes meios de comunicação que, via de regra, se comportam como partidos políticos; na necessidade de uma imprensa que expresse a pluralidade de opiniões.

No conjunto, essas experiências comuns são formas diversas de resistência ao padrão neoliberal do capitalismo atual; são, de maneira ampla, não-neoliberais ou contra-hegemônicas, pois buscam ampliar a margem para a afirmação de alternativas, num quadro geral em que a globalização neoliberal hostiliza projetos nacionais.

Leituras eurocêntricas do quadro latino-americano

Há na praça uma interpretação distinta do novo quadro latino-americano que, por motivos variados, seduz forças políticas e sociais diversas, inclusive pessoas bem intencionadas.

A partir de uma premissa correta – isto é, as distintas velocidades em que operam as mudanças nos distintos países da região –, essa interpretação vê como aspecto principal a destacar no atual quadro latino-americano uma fratura profunda entre “radicais” e “moderados” ou ainda entre “responsáveis” e “populistas”, enfim, entre distintos tipos de esquerda. A partir dessa visão, classificam-se os governos ao gosto do freguês.

Simples e binária essa interpretação que enfatiza uma dicotomia ou fratura no ciclo progressista serve tanto à direita neoliberal, que ressalta a ameaça do “populismo” radical e mesmo do comunismo, quanto a setores “à esquerda” que, por sua vez, separam moderados – que teriam mantido intacto o neoliberalismo – de radicais – que conformariam algo correspondente a uma ante-sala da revolução.

Para ambos, essa interpretação serve a suas necessidades de fincar cunhas e demarcações que possibilitam, no caso dos primeiros, toda sorte de alarmismos e golpismos e, no dos segundos, toda sorte de sectarismos e voluntarismos; enfim, em profundas subestimações das relações de força na região e no mundo.

Para essa interpretação, pois, o fato a destacar não é a contundente derrota dos preceitos neoliberais, mas a identificação das diferenças e a classificação, segundo seus manuais e roteiros pré-concebidos, de diferentes coalizões e setores políticos e sociais que ascendem aos diversos governos nacionais. Esta leitura do quadro latino-americano tem polarizado um leque de personalidades: figuras do sistema, como Fernando Henrique Cardoso, Jorge Castañeda e Alain Touraine, passando pelo senador Aloísio Mercadante e por setores “liberais de esquerda” do petismo – que ademais enfatizam sua crença na democracia burguesa como valor universal e atemporal – até a organização Via Campesina (3).

É uma interpretação bem assimilada pelo establishment da globalização neoliberal, vide a linha editorial dos grandes monopólios de mídia. Afinal, essas leituras enfatizam o que há de diferente, não o que une nestas experiências novas – carregando, como seu pressuposto, forte carga de eurocentrismo. À “esquerda”, por basear-se em leituras estereotipadas, carregadas de preconceitos e paradigmas estritos e em receitas pré-concebidas segundo seus modelos e visões sectárias de mundo. À direita, essa interpretação enfatiza a defesa do capitalismo ocidental-liberal por um suposto anacronismo das idéias socialistas e mesmo da idéia de nação.

São, pois, interpretações essencialmente a-históricas. Nesse sentido, pós-modernas, pois seu gene é a inobservância de ser cada experiência produto de distintas formações sociais e nacionais, submetidas a distintos estágios da luta de classes – que segue se dando centralmente no nível de cada país, a despeito dessa visão permeada por uma espécie de cosmopolitismo radical.

De fato, as forças progressistas latino-americanas que emergem aos governos nacionais na América Latina são diversas e heterogêneas – como não poderia deixar de ser –, afinal, são produtos de distintas formações sociais e nacionais; o que implica variados níveis acumulação de forças e de desenvolvimento das lutas de classes por parte dos trabalhadores e das maiorias nacionais em cada experiência. Assim, operam distintos níveis de consciência e organização social, e até diferentes aspirações nacionais – além de distintos níveis de desenvolvimento da base material em sua formação econômica, no geral profundamente dependente historicamente.

São realidades nacionais diversas que, a rigor, têm origem mesma nas diferenças da colonização da América portuguesa e da América espanhola – a despeito da forte complementaridade e aproximação no plano da cultura que marcam os povos latino-americanos.

Na primeira, a unidade nacional, territorial e política consumou-se, plasmando inclusive uma unidade no plano da cultura – configurando um povo-novo, como diria Darcy Ribeiro, dotado de aspirações comuns. Na parte espanhola, por sua vez, a despeito da heróica luta de Simon Bolívar e de outros tantos heróis, como o general brasileiro Abreu e Lima – que hoje inspiram as novas gerações –, o resultado foi uma fragmentação – com forte atuação para isso, desde o início do século XIX, dos Estados Unidos da América, por exemplo, no Congresso do Panamá de 1826. Assim, a América espanhola fraturou-se em formações nacionais: de Estados pluri-étnicos, como os andinos – cujo debate sobre a questão nacional é cheio de singularidades –, a formações com alto grau de homogeneidade como as da região do Cone Sul.

A interpretação, a que chamamos de eurocêntricas, ignora que as novas forças que ascendem aos governos nacionais na região não obedecem a uma “internacional” ou a qualquer “centro único”. Há, aqui, desde a social-democracia latino-americana – por sua vez distinta de sua variante européia –, passando por forças socialistas e/ou nacionalistas de variadas matizes, até a corrente marxista.

Nenhuma delas, porém rígida e apartada como as da tradição européia. O marxismo, a despeito de ser um pensamento universal, busca “beber”, no caso da América Latina, de diversas contribuições do pensamento progressista e nacional. Por intermédio desse diálogo com outras vertentes avançadas busca assim avançar numa sinergia entre pensamento nacional e pensamento universal marxista.

É preciso ressaltar ainda que na América Latina os movimentos progressistas, de mudanças, são levados a cabo, de modo geral, quando da coesão de maiorias nacionais, política, econômicas e sociais, com programas centrados na questão nacional. Na união de amplos e novos setores políticos e sociais, tendo a maioria delas, uma importante, se não decisiva, expressão popular.

Assim ocorreu com Getulio Vargas e a transformadora Revolução de 1930 no Brasil; o governo de Lazaro Cardenas, do Partido Nacional Revolucionário, expressão mais avançada do processo iniciado na Revolução Mexicana (1910-1917); Juan Domingos Perón na Argentina, fundador de uma linhagem nacional-popular; Velasco Ibarra no Equador e o governo fruto da revolução camponesa na Bolívia em 1952, ambos com suas medidas democratizantes; Jacobo Arbenz na Guatemala entre 1951 e 1954, deposto pelos EUA; a frente nacional que se configurou, primeiro, com origem na insurgência guerrilheira, depois resultando na Revolução Cubana de 1959 e na constituição do Partido Comunista, marxista-leninista e martiano; o governo do general Velasco Alvarado no Peru, líder do governo revolucionário das Forças Armadas, entre 1968 e 1975; e, no Chile, na vitória da Unidade Popular de Salvador Allende (1970-1973). Nenhum desses governos pode ser creditado a movimentos estreitos ou sem base social e muitas vezes políticos, amplos. As frentes nacionais são, pois, outra singularidade a marcar a América Latina.

Mantendo em grande parte essa marca latino-americana, as atuais formações à frente dos governos progressistas latino-americanos têm na conformação de Frentes Nacionais e Sociais amplas uma de suas características mais salientes. É o caso da grande coalizão política e social que se forma no segundo mandato de Lula, da Frente Ampla do Uruguai, da Alianza País, no Equador, ou do heterogêneo condomínio de forças kirchneristas na Argentina; da transmutação de Frentes em Partidos nacionais orgânicos – como se propõe com o Partido Socialista Unido da Venezuela. Em partido-movimento, como o Movimento ao Socialismo (MAS) boliviano que também guarda certa feição frentista.

Consolidar o ciclo progressista, transitar e aproximar ao novo socialismo

Segundo defendemos acima, a despeito das singularidades nacionais, sociais e mesmo de alcance estratégico entre as experiências progressistas latino-americanas há um sentido geral cuja marca é a busca de afirmar caminhos nacionais, de soberania e independência. Assim, tendo em vista esses pressupostos, como caminhar no sentido de uma transição contra-hegemônica que possibilite passos na direção do projeto estratégico da transição ao socialismo, num quadro geral adverso, de hegemonia neoliberal?

O grande brasileiro José Bonifácio de Andrada e Silva, construtor da independência nacional, durante o ciclo independentista latino-americano no início do século XIX, já defendia a necessidade de uma aliança entre os novos Estados, para ele, “necessária para que todas e cada uma delas possam conservar intacta sua liberdade e independência profundamente ameaçada pelas irritantes pretensões da Europa”, a grande potência imperialista da época (4).

Segue como uma tarefa atual, pois o enfrentamento, embora em distintas velocidades, da fase neoliberal do capitalismo exige, antes de nada, a coesão e unidade dos governos progressistas latino e sul-americanos. É necessário somar forças nas táticas de resistência como forma de afirmação dos projetos nacionais de desenvolvimento, isto é, de opções nacionais no plano de cada país.

Concomitantemente a isso, ou como parte destacada dessas opções nacionais, está sua dimensão regional, ou melhor, o aprofundamento da integração latino e sul-americana com a convergência com o compartilhamento de “estratégias” e projetos nacionais de desenvolvimento. Caminhos nacionais que possam convergir para uma conformação de um bloco, de um embrião de um pólo regional, no sentido da luta pela multipolaridade. Com acúmulo de forças que permitam passos de uma nova luta pelo socialismo do século XXI, a partir de caminhos nacionais compartilhados. Ou seja, em transitar dos caminhos da dependência para caminhos nacionais, próprios a caminhos convergentes, compartilhados.

Isoladamente, mesmo experiências, em tese, mais radicalizadas apresentam fortes condicionalidades para avançar numa transição de modelo. As recentes nacionalizações na Venezuela de uma companhia telefônica e outra de energia se deram com indenizações pelo Estado, não numa expropriação. O principal mercado exportador do país segue sendo os Estados Unidos, famintos por petróleo. Na Bolívia, a meta é o “capitalismo andino-amazônico” e das petrolíferas estrangeiras, demanda Evo Morales, que sejam “sócias, não patrões”. Na Nicarágua, Daniel Ortega aderiu à Alba (Alternativa Bolivariana para as Américas), mas não logrou romper com o Cafta, o TLC da América Central com os EUA. No Equador, a despeito das vontades, Rafael Correa anunciou não ser possível romper com a dolarização. O Uruguai, refletindo contradições na Frente Ampla, assinou, em janeiro, um “Acordo Marco sobre Comércio e Investimentos” (TIFA, na sigla em inglês) com o Estados Unidos, embrião de um TLC que, se consumado, causaria sua exclusão do Mercosul. No primeiro mandato de Lula ressaltou-se, como aspecto negativo, a manutenção de uma política macroeconômica conservadora.

Desse modo, tendo em vista estes limites apontados, no estágio atual é preciso acentuar a busca de convergirem as opções nacionais dos governos progressistas latino-americanos. Na medida em que esta confluência avance maior serão as condições para a efetivação de alternativas que questionem o padrão neoliberal da época. Mesmo as lutas por configurar experiências mais avançadas, socialistas, passam hoje pela acumulação no plano das nações, de projetos nacionais construídos por maiorias nacionais.

Do ponto de vista da correlação de forças na América Latina, em especial da América do Sul, destaca-se que nos próximos anos estarão à frente dos principais países da região, líderes comprometidos com a integração latino-americana: os presidentes Lula (com mandato até 2010) e Chávez (até 2013), ambos recém-reeleitos, além da provável reeleição do presidente argentino Nestor Kirchner neste ano. É importante ressaltar que cabe ao Brasil, em aliança com Argentina e Venezuela, principalmente, grande parte da tarefa da integração de “puxar o bloco” rumo ao desenvolvimento.

Aqui, vai se configurando um novo tipo de integração, distinto do padrão neoliberal dos anos 1990, cuja ênfase, para não dizer exclusividade, eram as trocas comerciais. Caso do Mercosul, por ocasião das gestões Collor e Menem. Nas novas condições da América Latina, a integração que vai se forjando tem como valores principais o desenvolvimento – por isso se buscará a redução das assimetrias e das seqüelas do neoliberalismo. Assim como idéias, como complementaridade e solidariedade, passam a ser pressuposto do novo modelo de integração.

De trocar uma integração baseada num Mercosul livrecambista por uma América Latina desenvolvimentista. Em abandonar, como disse recentemente um intelectual, o programa do neoliberalismo de implementar o capitalismo do século XIX pela busca de um socialismo do século XXI.

Salta à vista a necessidade de uma integração acelerada que tenha como centro, a partir da articulação dos distintos caminhos nacionais, a consecução do desenvolvimento. Assim, desafios como reestruturar e coesionar cadeias produtivas, com políticas industriais e de C&T compartilhadas, com incentivos e salvaguardas à (re)industrialização, de um “plano Marshall” (5) contra as assimetrias nacionais e regionais; de uma acelerada integração da infra-estrutura e das matrizes energéticas; de caminhar rumo a uma convergência macroeconômica não-neoliberal e de instituir mecanismos de financiamento endógeno da região. São caminhos para a consecução de um novo tipo de integração que gradualmente aproxime as transições não-neoliberais das tarefas nacionais e socialistas.

Dito isto, ressalvamos: há importantes lições teóricas que o atual ciclo progressista latino-americano precisa retirar do balanço das primeiras experiências socialistas do século XX. Dentre elas, a idéias de que não se pode, de maneira voluntarista, “queimar etapas” na construção do socialismo, tarefa de gerações; a idéia de que entre capitalismo e socialismo comporta-se todo um conjunto de transições; e as peculiaridades relativas à construção do socialismo no plano nacional, sobretudo, de um pequeno país, em especial, num quadro geral de hostilização ativa do sistema contra esta possibilidade (6). No caso do Brasil, atualmente às voltas com o debate cujo centro é a necessidade de acelerar o crescimento e promover o desenvolvimento e a distribuição de renda – compatibilizando a política macroeconômica com esse grande objetivo nacional –, a constituição do pólo sul-americano precisa ser dimensão destacada e central de nosso projeto nacional de desenvolvimento, ou de nosso projeto de país. Justificam-no, como sentido de fundo, razões de natureza geopolítica, bem como as relacionadas à contribuição do povo brasileiro à construção de uma nova ordem mundial, na qual valores humanistas e democráticos sejam os dominantes (7).

Da consecução de mudanças que representem, nos próximos anos, efetivos marcos na superação do neoliberalismo no Brasil, da continuidade desse processo a partir da conquista de um terceiro mandato das atuais forças políticas e sociais à frente do atual governo brasileiro dependem em grande medida o fortalecimento e a ampliação das forças políticas interessadas e comprometidas com o projeto socialista. Assim, em ascendentes avanços que signifiquem acúmulos de forças e crescentes aproximações para a conquista de um governo ainda mais avançado que dê início à transição ao socialismo no país e fortaleça uma nova luta pelo socialismo em toda a América Latina.

Ronaldo Carmona é sociólogo, membro da Comissão de Relações Internacionais do PCdoB e Diretor do Cebrapaz.

Notas

(1) Informe Latinobarometro 2006.
(2) Os diversos ciclos vão “Começando com a onda independentista do século XIX, passando pelos governos desenvolvimentistas do pós-1930 até a década de 1950; pelos regimes militares das décadas de 1960 e 1970; pela onda que pôs fim a este período e que fez surgir os governos da redemocratização dos anos 1980; os ciclos dos governos neoliberais dos anos 1990, e atualmente o ciclo cuja marca é a ascensão das forças progressistas” – Ronaldo Carmona, “América Latina: na luta pela segunda independência”, Princípios nº 83.
(3) Ver “Populismo e Democracia”, de Aloísio Mercadante, Folha de São Paulo, 12/01/2007 ou “Vida melhor não depende do governo”, entrevista com João Pedro Stédile, Valor Econômico, 23/01/2007.
No caso de parte da esquerda brasileira, esse problema deriva muito provavelmente de um problema mais de fundo que se relaciona intimamente com essa visão de mundo eurocentrista e cosmopolitista: a dificuldade de compreensão da questão nacional. Afinal, “quando a esquerda brasileira volta à cena política democrática, na década de 80, a maior parte de sua militância juvenil já tinha um forte viés antiestatal, antinacionalista e antidesenvolvimentista, e considerava que a organização social e a defesa dos direitos da sociedade civil – através dos “movimentos sociais” e das “organizações não governamentais” – eram mais importantes que a luta política pelo poder do estado”. Assim, os defensores da questão nacional, “na década de 90, foram derrotados sistematicamente, no campo das idéias e da luta pelo poder, pelos herdeiros do “marxismo paulista” dos anos 60, que combinaram num mesmo projeto sua intolerância com o nacionalismo, o desenvolvimentismo e o populismo e sua proposta alternativa de um novo tipo de desenvolvimento “dependente e associado” com os Estados Unidos só compatível com as políticas e reformas neoliberais”. (“A Esquerda e o Desenvolvimentismo”, José Luis Fiori, Agência Carta Maior, 31/03/2006). Essas são inclusive raízes que ajudam a explicar posturas hegemonistas de parte da esquerda brasileira.
(4) Citado em “Antecedentes históricos de la Alternativa Bolivariana para las Américas”, de Sergio Guerra Vilaboy, Revista Contexto, nº01, dezembro de 2006.
(5) O Plano Marshall foi o volumoso programa de investimentos – estimado, em valores de hoje, em algo como US$ 130 bilhões – visando à reconstrução da Europa no pós-guerra. Tem sido utilizado como analogia pelo chanceler brasileiro Celso Amorim.
(6) Sobre os novos temas relativos à construção do socialismo tendo em vista o balanço da experiência anterior, vide os aportes originais de João Amazonas compilados na coletânea Os desafios do socialismo no século XXI(Anita Garibaldi, 1999).
(7) Nisto é preciso também ter em alta conta, como movimento de fundo estratégico da época histórica atual, o ressurgimento da chamada luta sul-sul, “centro-periferia”, configurada em distintas alianças políticas e diplomáticas ou comerciais que buscam, através da coesão de forças, criar brechas e mesmo obstáculos à agenda da globalização neoliberal e ao unilateralismo estadunidense de Bush. São expressões disto, dentre outras, o G-20 na OMC, o Movimento dos não-alinhados, a Organização de cooperação de Xangai e as Cúpulas da América do Sul, respectivamente com os Paises Árabes, com a África e a anunciada com a Ásia.

EDIÇÃO 88, FEV/MAR, 2007, PÁGINAS 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15