No momento em que tanto se discute nos meios acadêmicos e políticos da América Latina sobre a questão da unidade e da integração regional, urge o resgate de certos esforços de alguns setores da intelectualidade latino-americana, empreendidos em um passado recente, por construir um conhecimento e um discurso comprometidos com a sua própria realidade, em consonância com as demandas cada vez mais crescentes de auto-conhecimento, autonomia, libertação, unidade, integração e auto-afirmação identitária.

Entre as décadas de 1940 e 1950, um grupo representativo de intelectuais latino-americanos e caribenhos de diferentes nacionalidades, constituído basicamente por filósofos, deu início a uma vigorosa corrente de reflexão e estudos sobre a história do pensamento latino-americano (sobretudo do pensamento filosófico) do período pós-independência, bem como sobre aquelas que seriam as características essenciais e originais desse pensamento, fundando assim uma vertente peculiar da História das Idéias na América Latina.

Para além de uma mera corrente ou vertente particular da História das Idéias, tratou-se mesmo de um “movimento” que, entre outras atividades, fundou destacadas organizações e instituições – dentro e fora dos meios universitários –, além de ter produzido e incentivado um número significativo de eventos e publicações, com o propósito de promover o intercâmbio, a articulação e a difusão dos estudos de inúmeros investigadores que atuavam na área da História das Idéias na América Latina. Mas, acima de tudo, tratou-se de um movimento que buscou associar o seu programa de uma História das Idéias latino-americana a uma perspectiva de auto-afirmação nacional e continental, a um projeto de identidade e integração latino-americana.

Entre os principais representantes desse movimento destacam-se: o mexicano Leopoldo Zea Aguilar (1912-2004) – sem dúvida, a principal referência do grupo –, o uruguaio Arturo Ardao (1912-2000) e o argentino Arturo Andrés Roig (1922-). Esses três filósofos se notabilizaram não apenas pela vasta produção bibliográfica no campo específico da História das Idéias, seja em perspectiva nacional ou continental, mas também por suas reflexões epistemológicas acerca desse campo do conhecimento, por suas teorizações sobre o seu próprio ofício enquanto historiadores das idéias e, por fim, ligado ao anterior, pelo sentido ou papel (pragmático) peculiar e fundamental que acreditavam assumir para a América Latina uma História das Idéias moldada segundo suas proposições.

Para Zea, Ardao e Roig, considerando seus textos programáticos e suas pesquisas empíricas nesse campo (ao menos na etapa inicial de sua produção, sobretudo no caso de Zea e Roig), a História das Idéias latino-americana se identificava praticamente com uma História das Idéias Filosóficas, ou com uma História do Pensamento Filosófico, ou, enfim, com uma História da Filosofia latino-americana, apesar de terem assumido uma concepção peculiar de filosofia: uma concepção bastante historicizada, contextualizada, relativizada e pragmática da atividade filosófica (1). De uma forma geral, a partir de uma concepção historicista desse objeto de estudo, as “idéias” historiáveis seriam apenas aquelas vinculadas à sua realidade histórico-social concreta, na medida em que estivessem desempenhando nela uma função social, política ou ideológica determinada (2).

Esse movimento intelectual latino-americano de meados do século XX apresentou uma dupla dimensão. A primeira é aquela representada pelo que aqui denominamos de “projeto disciplinar”, enquanto um projeto que buscou estabelecer as bases fundamentais para a História das Idéias latino-americana como uma disciplina específica, com certos fundamentos teórico-metodológicos mais ou menos precisos. A segunda, aquela representada pelo que aqui denominamos de “projeto extradisciplinar”, enquanto um projeto ou programa que procurou definir e estabelecer, explícita ou implicitamente, certos elementos e princípios externos motivadores, legitimadores e reguladores da atividade historiográfica no campo das idéias, definindo as tarefas e funções que deveriam desempenhar essa disciplina. Um projeto que buscou – em última instância, dentro de um processo de autoreflexão teórica, filosófica e especulativa sobre essa prática historiográfica – definir um “sentido” para a mesma no contexto de um movimento intelectual latino-americano mais amplo.

Mais do que os aspectos epistemológicos que envolvem a dimensão ou projeto disciplinar do movimento, aqui nos interessa explorar de forma privilegiada a sua outra dimensão ou projeto extradisciplinar, como um dos principais legados desse movimento para o debate latino-americano contemporâneo sobre os projetos de unidade e integração da região.

As motivações que levaram à emergência, à articulação e à organização continental do movimento latino-americano de História das Idéias a partir da década de 1940 – que integraram o seu “projeto extradisciplinar” desde a sua etapa inicial – compreendem um amplo leque de variáveis que têm como pano de fundo a consolidação de uma consciência e de uma forte demanda por auto-afirmação identitária, tanto em nível nacional quanto continental (Roig, 1984, p. I), que marcaram o processo chamado por Zea de “descobrimento” latino-americano de sua própria personalidade cultural e espiritual. (Zea, 1991 [1956], p. 76) Tal consciência deve ser compreendida dentro dos marcos de um nacionalismo e de um (latino-)americanismo cultural e filosófico forjados num contexto de reação e indignação frente às recorrentes e persistentes imagens e descrições negativas da realidade e dos povos americanos elaboradas externamente e difundidas durante séculos (3) que contribuíam para a internalização e cristalização de certo sentimento ou complexo de inferioridade que colocava em dúvida as possibilidades de uma cultura e de um pensamento próprio e original. Nesse sentido, podemos afirmar que o movimento emerge em um contexto de crise de identidade, no qual as imagens e representações eurocêntricas da realidade americana eram consideradas estranhas a essa mesma realidade, legitimadoras das formas de alienação e dependência cultural.

A contribuição para a tomada de consciência de tal complexo de inferioridade e para buscar os meios para a sua superação se convertia, naquele momento, no grande desafio e tarefa do movimento. Uma tarefa que passava pela afirmação da capacidade dos pensadores latino-americanos para o exercício da filosofia, entendida não como mera cópia ou reprodução dos sistemas filosóficos europeus, mas como expressão e manifestação de um pensamento autóctone, distinto e original. Nesse contexto, teria sido consolidada, conforme Ardao, uma consciência filosófica latino-americana, de marcado viés historicista que incorporava e valorizava a auto-reflexão sobre a própria produção filosófica continental (Ardao, 1991, p. XI). Uma consciência que, superando todo tipo de complexo de inferioridade, impotência e incapacidade, visava revelar ao mundo, em busca de reconhecimento e legitimação, o que seriam as expressões autênticas e originais do pensamento filosófico latino-americano.

Tal consciência, apoiada na elevação da auto-estima e na valorização do próprio, resultou na promoção e no cumprimento da tarefa historiográfica de investigar o passado filosófico latino-americano – como passo prévio para o reconhecimento da sua existência e originalidade – com o propósito de revelar os esforços empreendidos pelos pensadores da região no sentido de transformar as expressões filosóficas recebidas e assimiladas externamente em instrumentos originais para a solução dos problemas específicos da realidade latino-americana (Zea, 2000, p. 39-40). Nesse sentido, partia de uma peculiar concepção da filosofia, contextualizada e historicizada, que enfatizava a função utilitária da mesma para a realidade social latino-americana. A originalidade desse pensamento seria, assim, buscada, sustentada e legitimada na, e pela, sua própria história, ou seja, a formulação de um pensamento original na América Latina se basearia no conhecimento e na reflexão sobre o seu próprio passado filosófico. Tal seria a grande tarefa de uma “História das Idéias” ou “história do pensamento” filosófico latino-americano. Eis aqui, em linhas gerais, as motivações extradisciplinares da etapa de fundação do movimento latino-americano de História das Idéias.

Com suas decisivas articulações e difusões nos campos organizacional e editorial, a partir das décadas de 1940 e 1950, o movimento passou por um amplo processo de consolidação enquanto tal, fazendo com que a História das Idéias deixasse de se constituir numa mera forma de saber disciplinar, tornando-se, segundo Roig, uma “corrente de pensamento” que teria organizado e preconizado uma historiografia – na qual a História das Idéias filosóficas era predominante – comprometida com a realidade social e nacional latino-americana (Roig, 1984, p. VIII). Uma corrente que estendia tal comprometimento tanto espacialmente (a partir do nacional em direção ao regional e continental) quanto cronologicamente (a partir do passado em direção ao seu presente).

Sobretudo a partir da década de 1970, consolidou-se no âmbito do movimento um processo de progressiva generalização da concepção e do caráter pragmático que deveria assumir a História das Idéias no contexto da América Latina, que levou essa disciplina a converter-se, com seus produtos historiográficos, numa fonte privilegiada para a “interpretação” e busca de “sentido” para a história latino-americana. Com isso a tarefa disciplinar – ou historiográfica propriamente dita – da História das Idéias se vinculava indissoluvelmente a uma tarefa “extradisciplinar”, de caráter eminentemente especulativo e teleológico. Mais do que um vínculo, a tarefa ou função historiográfica se colocava a serviço da tarefa ou função filosófico-especulativa, de forma que a História das Idéias assumia assim, frente à filosofia da história, uma função eminentemente pragmática. Eis aqui as linhas gerais desse processo de evolução e deslocamento do centro das preocupações dos principais representantes do movimento, de uma História das Idéias em direção a uma filosofia da história latino-americana (4).

Diante da consciência da condição persistente de dependência e dominação dos povos latino-americanos, em vários níveis, que dificultava a afirmação de suas próprias e autênticas expressões culturais, tal processo vinculou terminantemente a História das Idéias a um programa extradisciplinar de autonomia e independência cultural, de desalienação e descolonização da América Latina, um programa que culminaria, frente a uma filosofia (e a uma cultura) da dependência e da dominação historicamente impostas, no projeto de uma “filosofia da libertação” (5). Tal projeto extradisciplinar comum, partilhado por praticamente todos os participantes do movimento, foi decisivo na manutenção de sua unidade de ação e organicidade, superando eventuais divergências internas em outras esferas, tanto no campo filosófico quanto metodológico. Tal projeto se fundou na idéia compartilhada de que a filosofia latino-americana e a História das Idéias filosóficas, quanto a sua função, deveriam estar comprometidas e contribuir com a causa da libertação da América Latina, frente a sua histórica condição de dependência e dominação em vários níveis. Além da causa da libertação, essa História das Idéias deveria ainda estar comprometida com a causa da unidade e integração latino-americanas, ou seja, com um projeto identitário regional, que superasse o que Roig chamou de “nacionalismo negativo” na historiografia das idéias (Roig, 1981, p. 54).

A grande função, e tarefa, da História das Idéias passava a ser, dessa forma, a partir de uma nova perspectiva historicista, de autoconhecimento, de promoção de um novo “saber historiográfico-filosófico” sobre o pensamento latino-americano (Roig, 1981, p. 38-39), um saber latino-americano sobre a realidade da América Latina, mas, acima de tudo, um saber de “compromisso” com tal realidade, um compromisso de transformação, desalienação e de libertação da mesma. Nessa perspectiva, na dimensão extradisciplinar, a História das Idéias na América Latina assumia definitivamente a forma de uma filosofia da libertação latino-americana (Roig, 1981, p. 32), que logo se universalizaria como um movimento filosófico de libertação em escala global.

A partir da década de 1980, o movimento latino-americano de História das Idéias viu-se diante de um forte dilema: como conciliar e articular ambos os projetos – disciplinar e extradisciplinar – de forma equilibrada, sem que o estreito vínculo da História das Idéias com uma filosofia da história e uma filosofia da libertação significasse internamente um empobrecimento ou descompasso teórico-metodológico na sua prática disciplinar especificamente historiográfica. Se houve nas décadas seguintes uma continuidade do movimento de História das Idéias enquanto tal, podemos nos arriscar a dizer que o que passava a garantir a sua unidade e convergência programática foi muito menos o “projeto disciplinar” propriamente historiográfico e mais o que denominamos aqui de “projeto extradisciplinar”, mesmo tendo em vista a indissociabilidade de ambos, sem a qual se torna impossível compreender o movimento como um todo.

Assim, em sua dimensão extradisciplinar, o movimento incorporou ao projeto de uma História das Idéias latino-americana, entre outros propósitos, o claro compromisso com as causas da libertação, da unidade e da integração regional, o que passava pelo conhecimento profundo da realidade da América Latina em seu conjunto, pela revalorização de suas autênticas expressões culturais, bem como pela busca de soluções próprias e originais aos seus próprios problemas. É nesse sentido que podemos inferir e enumerar alguns pontos, no âmbito do legado desse movimento intelectual, de grande relevância para o debate contemporâneo sobre os desafios e dilemas da integração regional latino-americana.

Em primeiro lugar, a idéia de integração regional, tão cara a esse movimento intelectual, tinha como pressuposto básico o resgate, o cultivo e a disseminação entre os povos latino-americanos de um sentimento compartilhado de identidade baseado em uma história, em valores, em problemas (não apenas econômicos) e, sobretudo, em projetos de futuro comuns. Assim, em tal perspectiva, o sucesso efetivo de um projeto de integração regional dependeria de sua ampliação para além das esferas meramente econômicas e comerciais, para além do pragmatismo das determinações do mercado ou da ortodoxia macroeconômica.

Em segundo lugar, considerando que tal sentimento de identidade, de comunidade, de unidade e solidariedade regional não se estabelece por simples decreto ou acordo diplomático, a integração latino-americana dependeria, em última instância, da disseminação de uma consciência entre amplos setores das sociedades envolvidas das razões históricas, culturais e ideológicas responsáveis por certa tendência ao isolamento, indiferença e desconhecimento mútuo que tanto têm marcado a trajetória das relações externas entre os diversos países da América Latina. Por tal razão, segundo podemos inferir do programa elaborado por esse movimento intelectual, a questão da integração da América Latina deveria passar necessariamente pelo enfrentamento do debate ideológico em torno das idéias e doutrinas que, ao longo da sua história, favoreceram e fortaleceram tal tendência isolacionista, responsável em boa medida pela condição de dependência e dominação a que foram – e continuam sendo – submetidas as nações latino-americanas.

Por fim, um importante legado do movimento latino-americano de História das Idéias foi o estreito vínculo estabelecido pelos seus principais representantes entre as problemáticas nacional e regional (considerando o âmbito latino-americano). Inspirando-nos na perspectiva sugerida pelo movimento, talvez o grande desafio atual para a integração regional latino-americana resida exatamente na superação e equacionamento do aparente paradoxo ainda persistente entre o nacional e o regional.

Entre os interesses localistas, baseados em uma visão estreita de nacionalismo e de desenvolvimento nacional, e um projeto de integração regional, que quase sempre implica em algum tipo de concessão tática, em curto prazo, no âmbito dos interesses nacionais em favor de ganhos estratégicos futuros para o conjunto dos países integrados. Concessões essas que somente poderão contar com o respaldo de setores mais amplos das sociedades nacionais envolvidas – condição fundamental para o sucesso da tão almejada integração regional – se no seio das mesmas estiver relativamente consolidado o já referido sentimento de identidade, de comunidade e solidariedade latino-americanas, bem como a consciência de que de tal integração depende o futuro da América Latina enquanto um conjunto de nações livres e soberanas.

Eugênio Rezende de Carvalho é doutor em História Social e das Idéias pela Universidade de Brasília e professor da Universidade Federal de Goiás, onde exerce a docência e desenvolve pesquisas na área de História Latino-americana. É autor dos livros Nossa América: a utopia de um novo mundo (São Paulo: Anita Garibaldi, 2001) e América para a humanidade: o americanismo universalista de José Martí (Goiânia: UFG, 2003).

Notas

(1) Para Zea, a História das Idéias seria uma disciplina dedicada à recuperação e à legitimação do passado filosófico latino-americano, dentro de uma preocupação em estabelecer, pela historicização desse pensamento, as bases de uma filosofia autêntica apoiada nessa circunstância regional (Cf. Zea, 1942). Para Roig, a História das Idéias foi uma forma particular, latino-americana, de historiar a Filosofia – ou o Pensamento Filosófico – da América Latina em substituição à tradicional e acadêmica História da Filosofia (Roig, 1994, t. II, p. 128). Para Ardao, embora a História das Idéias fosse mais ampla que a História das Idéias Filosóficas – esta última vista como sinônimo de História da Filosofia e como história de apenas um tipo de manifestação das idéias – essa História das Idéias Filosóficas era o ponto de partida para uma História das Idéias latino-americana e, assim, deveria ser privilegiada (Ardao, 1984 [1959], p. 77).
(2) Como exemplos de “idéias” filosóficas historiadas de forma privilegiada dentro do movimento, sobretudo em suas etapas iniciais, destacam-se o positivismo, o liberalismo, o romantismo, o espiritualismo, o racionalismo, a escolástica, o ecleticismo, o krausismo, o historicismo, além de outras como o pan-americanismo, o latinismo etc.
(3) Imagens e descrições analisadas em profundidade por Antonello Gerbi em sua clássica obra publicada nos anos 1960, O Novo Mundo: história de uma polêmica (1750-1900), uma obra aberta que alguns dos integrantes do movimento se propunham a dar continuidade e enriquecer (Roig, 1984, p. XVII).
(4) Tal processo torna-se evidente a partir da análise da evolução biográfica intelectual de Leopoldo Zea, claramente assumida, do campo historiográfico ao campo especulativo, em direção a uma filosofia da história latino-americana, principalmente diante da publicação da primeira edição de seu livro El pensamiento latinoamericano (1965).
(5) As linhas gerais de tal projeto encontram-se delineadas no documento-manifesto de 1975, de cuja elaboração participaram vários integrantes do movimento, que ficou conhecido como Declaración de Morelia, em referência à cidade mexicana onde o grupo se reuniu e o elaborou.

EDIÇÃO 88, FEV/MAR, 2007, PÁGINAS 21, 22, 23, 24, 25