Toda poesia suja
2006 marcou os 30 anos de publicação de uma dos mais importantes textos da poesia brasileira: "Poema Sujo" de Ferreira Gullar. Escrito num período negro para a América Latina, o "Poema Sujo" é daqueles textos que ressoam a atmosfera do seu tempo e alçam vôo para além dele, pois buscam escavar a fundo as contradições da história humana. É também um texto que evidencia a lógica da obra de Gullar, certamente uma das maiores da poesia brasileira do século 20.
Gullar, entretanto, carrega um estigma: o de poeta político. Contaminar a poesia com ideais dessa ordem é algo no mínimo impróprio para a maioria da crítica. Essa ótica purista, muitas vezes, reduz a leitura do Poema Sujo e de toda a obra de Gullar. Mas é exatamente contra o purismo que grita o poeta. Sua poesia está suja de vida e o posicionamento político e o poético não se separam, criando um amálgama em que a vida do homem, do país e da América Latina fundem-se em um mesmo repositório de impurezas: a linguagem.
A poética de Gullar capta a ‘sujeira’ política do mundo. Capta a sujeira do chão, do dia-a-dia, das coisas simples. Capta também a sujeira da lógica capitalista do fetichismo e da reificação, que se imiscuem na forma do poema.
Diante de seu texto, o leitor depara-se, quase sempre, com uma poesia cuja característica central é revelar o trabalho exercido pelo poeta ao produzir o poema. É como se cada poema começasse com palavras invisíveis, que lhe dão uma explicação sobre as condições de sua enunciação. Antes de cada poema, ‘ouvimos’: "Olha, leitor, o Gullar trabalha assim:…"
Qualquer que seja o tema do texto, é o trabalho social do escritor, e não apenas o artesanato da linguagem em si e para si, seu tema central. Ao falar sobre si mesmo, o poema de Gullar hiperboliza o fato de ser um ato social, pertencente à linguagem e à história, em toda a materialidade de uma e outra. Não se trata de linguagem centrada em si mesma.
Qualquer esforço metalingüístico encontrado em Gullar deve ser compreendido como algo que assume os condicionamentos e os combates ideológicos. Assim, quando o autor trabalha e interroga a linguagem poética, expõe as fraturas históricas, sociais e ideológicas da literatura brasileira.
O trabalho, portanto, é um veio subterrâneo a todo o conjunto da obra de Gullar, que poderia ser dividida em três etapas. A primeira, caracterizada pela experimentação poética, seria composta por "A luta corporal", "Poemas Concretos e Neoconcretos" e "O Vil metal". A segunda fase, composta pelos "Romances de cordel", marcaria o engajamento político imediato. Os volumes "Dentro da noite veloz", "Poema Sujo", "Na vertigem do dia", "Barulhos e Muitas Vozes" comporiam a terceira e última fase.
Gullar surge como poeta na década de 50. Nesse momento, sua poesia explodiu, num movimento radical, a poética tradicional. A força da negatividade, a radicalização da forma e do conteúdo foram as grandes qualidades dessa poesia. A criticada retórica do belo da poesia tradicional, entretanto, mascarava-se em retórica do feio e aparecia aqui e ali como fantasma do mítico poder da linguagem literária. A crítica à sociedade que louvava tal retórica, não ultrapassava, portanto, os limites da própria linguagem como absoluto da poesia. O impasse do poeta em "A luta corporal" se dava em uma cela cujas grades eram feitas de poesia e retórica.
O concretismo e o neoconcretismo trarão duas marcas profundas para a poesia de Gullar: o aparentemente paradoxal caminhar em direção à reflexão sobre a relação entre realidade histórica e linguagem e o apuro da técnica de construção do poema como um sistema de ‘desfibramento’ da realidade. A ocupação espacial do papel será representação icônica de um tempo e de uma realidade que se fraturam, fragmentam-se e revelam desigualdades.
O sistema de espelhos que o poema neoconcretista de Gullar representa assumirá papel decisivo na absorção da forma social pela forma estética. O capitalismo desenvolve-se com base em um sistema de espelhos em que se refletem e se comparam as mercadorias e seus valores de troca. Gullar tomará, posteriormente, a atitude de desfibrar esse sistema e suas ilusões, mostrando como uma coisa reflete outra, e de que maneira essas relações de imagens aparentes referem-se a relações de trabalho, sob condicionantes históricas e sociais de desigualdade.
Os Romances de cordel representam o abandono da luta com e na linguagem, que, como se viu, o impedira de atingir incisivamente a realidade. Neles, questionamento da linguagem e questionamento social assumem uma relação de proporcionalidade invertida. É imensa a presença do conteúdo social, enquanto a crítica e a reflexão sobre a linguagem poética reduzem-se. Nos cordéis, surge um eu-lírico bem diferente daquele que refletia sobre a existência em meio a experiências de linguagem poética. É o momento da utilização da poesia como instrumento de ação na realidade e como método de educação e politização das massas.
Não é difícil verificar aqui o que de produtivo foi colhido pelo poeta nessa experiência, que será ingrediente de sua poesia posterior. Como o próprio Gullar diz em Uma luz do chão "aquele poeta que tinha chegado a alturas loucas, de vanguardismo e tal, teve que baixar para o chão e começar de novo como cantador de feira".
A passagem para a terceira etapa acontece como síntese literária de tudo isso. Gullar e seus sofrimentos, suas loucuras, sua memória pessoal foram ingredientes decisivos para a formação de um novo modelo poético, calcado de vez na realidade. Em Dentro da noite veloz e no Poema Sujo o tom de sua poesia é de mal-estar. A sociedade não é mais algo que o eu-lírico vê de fora. O social passa a ser uma construção da qual participa também o poeta, que, ao se enxergar, reconhece-se cúmplice da reificação. O sentimento lírico nascerá do interior de um sujeito social que se sente comprometido com estruturas de poder e poetiza o fato de que a sua prática está também inserida nas práticas de domínio, poder e opressão. Abrem-se as fissuras e contradições do processo de produção poética, não mais em termos existenciais, mas nos termos do sistema literário e político. Cada texto é a formalização de uma conclusão: todo poema é sujo.
Portanto, na distância que se abre em seus poemas entre o locus de enunciação do eu-lírico e a realidade do povo, abrem-se também as veias do trabalho poético, em oposição ao trabalho "mundano". A recuperação de duas tendências formais que se fizeram presentes nas obras do primeiro Gullar – a decomposição que visa a exposição de desigualdades e a comparação especular de realidade ou objetos – serão fundamentais. Elas permitirão ao poeta ‘desfibrar’ o trabalho poético, comparando-o com outras formas de trabalho (vide o poema “O açúcar”) e, com isso, expor a fenda da desigualdade social do país. Percebe-se, desse modo, como técnicas e posicionamentos poéticos são decisivos para a internalização, pela poesia de Gullar, da forma mercadoria e de suas ilusões. Esse é seu sentido profundamente político: a palavra poética purifica a visão do mundo pela sujeira. O estigma, assim, inverte-se. Por ser político, ele é um poeta maior.