Logo Grabois Logo Grabois

Leia a última edição Logo Grabois

Inscreva-se para receber nossa Newsletter

    Comunicação

    O Cão sem Plumas

    II Paisagem do Capibaribe (…) entre a paisagem o rio fluía como uma espada de líquido espesso. Como um cão humilde e espesso. Entre a paisagem (fluía) de homens plantados na lama; de casas de lama plantadas em ilhas coaguladas na lama; paisagem de anfíbios de lama e lama. Como o rio aqueles homens são […]

    POR: João Cabral de Melo Neto

    3 min de leitura

    II Paisagem do Capibaribe

    (…) entre a paisagem
    o rio fluía
    como uma espada de líquido espesso.
    Como um cão
    humilde e espesso.

    Entre a paisagem
    (fluía)
    de homens plantados na lama;
    de casas de lama
    plantadas em ilhas
    coaguladas na lama;
    paisagem de anfíbios
    de lama e lama.

    Como o rio
    aqueles homens
    são como cães sem plumas
    (um cão sem plumas
    é mais
    que um cão saqueado;
    é mais
    que um cão assassinado.

    Um cão sem plumas
    é quando uma árvore sem voz.
    É quando de um pássaro
    suas raízes no ar.
    É quando a alguma coisa
    roem tão fundo
    até o que não tem).

    O rio sabia
    daqueles homens sem plumas.
    Sabia
    de suas barbas expostas,
    de seu doloroso cabelo
    de camarão e estopa.

    Ele sabia também
    dos grandes galpões da beira dos cais
    (onde tudo
    é uma imensa porta
    sem portas)
    escancarados
    aos horizontes que cheiram a gasolina.

    E sabia
    da magra cidade de rolha,
    onde os homens ossudos,
    onde pontes, sobrados ossudos
    (vão todos
    vestidos de brim)
    secam
    até sua mais funda caliça.

    Mas ele conhecia melhor
    os homens sem plumas.
    Estes
    secam
    ainda mais além
    de sua caliça extrema;
    ainda mais além
    de sua palha;
    mais além
    da palha de seu chapéu;
    mais além
    até
    da camisa que não tem;
    muito mais além do nome
    mesmo escrito na folha
    do papel mais seco.

    Porque é na água do rio
    que eles se perdem
    (lentamente
    e sem dente).
    Ali se perdem
    (como uma agulha não se perde).
    Ali se perdem
    (como um relógio não se quebra).

    Ali se perdem
    como um espelho não se quebra.
    Ali se perdem
    como se perde a água derramada:
    sem o dente seco
    com que de repente
    num homem se rompe
    o fio de homem.
    Na água do rio,
    lentamente,
    se vão perdendo
    em lama: numa lama
    que pouco a pouco
    também não pode falar:
    que pouco a pouco
    ganha os gestos defuntos
    da lama;
    o sangue de goma,
    o olho paralítico
    da lama.

    Na paisagem do rio
    difícil é saber
    onde começa o rio;
    onde a lama
    começa o rio;
    onde a terra
    começa da lama;
    onde o homem,
    onde a pele
    começa da lama;
    onde começa o homem
    naquele homem.

    Difícil é saber
    se aquele homem
    já não está
    mais aquém do homem;
    mais aquém do homem
    ao menos capaz de roer
    os ossos do ofício;
    capaz de sangrar
    na praça;
    capaz de gritar
    se a moenda lhe mastiga o braço;
    capaz
    de ter a vida mastigada
    e não apenas
    dissolvida
    (naquela água macia
    que  amolece seus ossos
    como amoleceu as pedras).

    (…)

    João Cabral de Melo Neto – Antologia Poética
    Livraria José Olympio Editora – terceira edição – Rio de Janeiro/1975
    (1949-1950)

    Notícias Relacionadas