Ao maestro Francisco Braga

Meu violão! Se te escuto as harmonias,
na atenção do silêncio, em noite bela,
numa eclosão de lágrimas benditas,
me levanto do leito… abro a janela.

Às ternas pulsações das fibras tuas,
que Ela outrora, auscultou, Violão magoado,
vejo erguer-se o cadáver do Pretérito,
pelas mãos da Saudade embalsamado.

Deus acende no Azul a nívea lua,
o lustre de cristal dos trovadores,
que pende lá do céu apainelado
pelos pincéis dos místicos pintores.

O piano, esse fátuo aristocrata,
embora o que te odeia não concorde,
no seu teclado ebúrneo, alvinitente,
não te pode imitar num doce acorde.

Pois, enquanto descanto uma modinha,
e um ré menor, choroso, a ela exalas,
os pianos, de inveja, se revoltam,
em sudários envoltos lá nas salas.

A lira, em que trovaram priscos bardos,
que vencia as princesas meigas, puras,
se te ouvisse, ó Violão, desmaiaria
e nunca mais tratara de aventuras.

O meigo bandolim, a doce flauta,
a viola, a planger na choça rude,
a guitarra em seu trilos cristalinos,
as profundas plangências do alaúde,

o violino, o piano, as vozes d’harpa,
o saltério, em seus trenós de piedade,
o magoado gemer de um órgão triste,
mais triste que um soluço da orfandade,

uma sublime orquestra, acompanhando
a voz altissonante de um tenor,
dialogando com a voz de um violoncelo,
a voz que mais exprime a humana dor,

até mesmo êsse côro das Mil Virgens,
a que se junta o côro dos profetas,
com que no céu os santos adormecem
as almas sofredoras dos Poetas,

nada pode evocar tantas saudades,
de mãe, de amigo, amante idolatrada,
como tu, quando, triste, a sós, palestras
com os mistérios da noite constelada.

Reclamavas a noite! Ei-la! Fujamos,
que a inspiração neste salão se estanca,
e entre jardins de estrelas, vê, lá fora,
abre-se a flor da noite, a lua branca.

Que Ela venha à janela, e mostre agora,
ao clarão do luar, cheio de zelos,
qual se fôsse uma flôr, meu coração
prêso aos negros anéis dos seus cabelos.

Eu quisera que o Amor me desse um sonho,
entre tantos que eu sonho, tão cruéis,
um sonho em que eu sonhasse estar beijando
a sombra luminosa dos seus pés.

Como eu fôra feliz, se ela quisesse
dar-me, num sonho, do martírio a palma,
transformando a minh’alma  num suspiro,
para esconder-me dentro de su’alma.

Quero seus pés, rezando a ave-maria
que os anjos rezam pelo Amor Perfeito,
sorver o mel do incenso capitoso
das abelhas morenas do seu peito.

A minha adoração quer que por ela
soluce em minha lira adorentada,
até que a estrêla d’alva se desfolhe
nos seios juvenís da madrugada.

As almas dos cantores que morreram
na solidão da dor, que a Dor estréla,
vêm comigo, invisíveis, suplicando
que ela surja do leito e abra a janela.

Que ao menos venha dar-me a sua benção
ou sua maldição, numa esperança,
pois ela sabe bem que o seu desprêzo
não me dói, não me assusta nem me cança

Meu Violão! Esta lua está tão clara,
e este céu tão sereno e tão bonito,
que eu vejo o coração de Deus pulsando
nas artérias azuis lá do Infinito.

Que ela venha à janela, semi-nua,
para ver, nesta noite cor de prata,
como o poeta se assemelha ao Cristo,
carregando uma cruz, em serenata.

 

Luar do Sertão e Outros Poemas Escolhidos – Seleção organizada, anotada e revista por
Guimarães Martins
Catullo da Paixão Cearense
Editora Ediouro