Era uma vez, Marília, um homem que não podia esquecer, nem esconder bem escondido, um nome de mulher. Era um homem doido por essa mulher. Por isso não podia esquecer, nem esconder-lhe bem escondido, o nome. E como ele precisasse escrever de vez em quando o nome dela, passou a fazê-lo em pedaços de papel, mas entre aspas disfarçadas, como se fosse o nome de qualquer edifício ou dum navio.

      Depois, Marília, começou a usar cedilhas impertinentes, acentos impróprios, barbaridades ortográficas, inversões de letras, interrogações patéticas, reticências dubidativas… Mas, ça va de soi, Marília, não bastava, e ele costurou o nome por entre o forro do casaco. Sim, costurou. Mas o nome começou a reluzir por toda a parte: no teatro, nas páginas do crime, nas colunas sociais, nos letreiros de cinema, nos artigos de perfumaria, nas latas de conservas…

      O homem doido por uma mulher estava, Marília, ficando era doido de todo. Pelo menos, era o que diziam os vizinhos e os colegas.
 
      E ele continuava a esconder o nome dela. Mas, se o escondia nas calhas, as chuvas cantantes o expulsavam; se o ocultava no espelho do banheiro, com sabão de barba, vinham olhos indiscretos espreitar na fechadura; no seu coração, ah, seu coração era como porta giratória, por onde todos entravam e saíam, sem dar a mínima.
 
      Marília, o homem teve uma idéia: escondeu uma letra do nome dela na areia de Copacabana, outra na estação do Rocha, outra em Del Castilho, num tronco de goiabeira, outra no lodo duma piscina em Friburgo, outra num programa de cinema, outra no belvedere de Dona Marta, de onde se avista o Rio todo com assombro, Marília. Mas os ventos da cidade juntaram os fragmentos, e um avião no céu escreveu todo o nome com uma fumaça linda, e a televisão lançou um novo chocolate com o nome. Com o nome dela, Marília! Ele passou a ficar mais cauteloso. Só lhe escrevia o nome ao revés, nos banheiros sombrios dos quartos de hotel, no meio da noite, com um cigarro aceso, se por perto não passava ninguém.
 
      Ih, numa linda manhã, o nome apareceu escrito na testa mesmo do homem, com as letras todas lá, fluorescentes, como um posto de gasolina na beira da estrada. O homem saiu correndo muito tempo, para muito longe, e chorou demais, e esfregou a testa, primeiro com areia, depois com seixos miúdos, depois até com cascalho grosso, e só voltou para casa um pouco antes do amanhecer, pálido, pálido, sem um dedo de pele na testa. Mas dessa vez ele dormiu, de tão cansado e triste, e nem sonhou.
 
      No dia seguinte, Marília, sabe o que aconteceu? Quando ele sentou na cadeira do barbeiro, o nome estava de novo na cara, agora escrito em cima do lábio, como um bigode maluco. Para esconder o nome, ele deixou crescer um bigode de verdade, como o bigode de seu avô lisboeta. Quase três semanas descansou. Ao fim desse tempo, horrorizado, viu, viu que a sua mão não lhe obedecia mais, desandando a escrever o nome dela em todos os lugares, no dinheiro que recebia mensalmente no guichê, n’O Globo, nas folhas das amendoeiras, nos maços de cigarro, nos cartões de chope, nas toalhas manchadas de restaurante da cidade, nas passagens aéreas de Brasília, nos despachos que enviava à consideração superior. Ele era doido pela mulher, Marília, e tinha medo. Então, ele cavou um buraco bem fundo no fundo do quintal e lá dentro enterrou o nome. Depois rezou. Mas a terra começou a bater de leve como se lá dentro pulasse ainda um gato vivo. O bicho não queria morrer, Marília. E o pobre homem, suando frio, nas noites mais longas, ficava jurando que não sabia o nome dela, que tinha se esquecido, que não sabia, jurava que não sabia, nunca mais. Mas o nome, doído, vivido, revivido, partido em pedacinhos, corroído em ácido, queimado no fogo, afogado no mar alto, o nome renascia, pulsava, brotava, respirava, ardia, ressoava, mexia, o nome. E às quatro horas duma segunda-feira, quando ele batia com dois dedos na máquina um expediente, o nome começou a gritar, todo articulado em sua boca, com suas vogais suaves como o leite, com suas consoantes guturais e fricativas, o nome. Foi-lhe concebida uma licença especial para tratamento de saúde, é claro, e o homem embarcou para Buenos Aires a fim de espairecer, ver se olvidava. Em Buenos Aires, no Palermo Chico, apanhou uma bruta pneumonia e teve febre de quarenta, tomou penicilina, quase morreu de choque anafilático, mas não morreu. Ficou bom, bonzinho. Chegou a namorar a enfermeira, à qual costumava dizer, brincando: “Hay momentos en que no sé lo que me pasa.” Depois voltou para o Brasil, reassumiu suas funções, até o chefe veio cumprimentá-lo, e esqueceu completamente o nome.
 
      Só que às vezes ele ainda se lembra.

Paulo Mendes Campos
O amor acaba – Crônicas líricas e existenciais – 5ª edição
Editora Civilização Brasileira
Rio de Janeiro, 2006