Parece que, de repente, a humanidade se lembrou que o começo desse nosso ano de 2005 está assinalando 60 anos do fim da Segunda Guerra Mundial. Em função disso, foi programada, em diversos Países, envolvidos com aquela tragédia, uma série de atos públicos, inaugurações de monumentos, lançamentos de obras documentais e de ficção (livros e filmes) e uma farta cobertura reminiscente da imprensa. Foi um despertar de dolorosas lembranças. Inclusive, alguns sobreviventes participaram voluntariamente daqueles atos públicos, enquanto outros se fecharam numa profunda tristeza íntima, própria de quem foi ator ou testemunha forçada dos últimos dias do mais atroz delito coletivo perpetrado na História.

      Foi lembrado que, poucas horas após as forças aliadas resgatarem o maior campo nazista de extermínio – Auschwitz –, um cineasta amador conseguiu filmar cenas horripilantes que em poucos dias deram a volta ao mundo: câmaras de gás ainda cheias de moribundos, pilhas de cadáveres cobertos de cal, gente reduzida a esqueletos ambulantes tentando abraçar os libertadores… e todos vestidos com um uniforme listrado como se formassem um enorme time macabro de jogadores de futebol condenados à morte. Eu assisti a esse filme, em cima da hora, assim como tinha visto, poucos dias antes, outro espetáculo macabro: os cadáveres de Mussolini e alguns acólitos pendurados de ponta-cabeça no Piazzale Loreto, em Milão, minha terra natal.
 
      Quando essas e outras cenas cruéis foram registradas eu tinha saído, há pouco tempo, da adolescência. Uma adolescência cuja memória está guardada de forma nebulosa, lá longe na minha memória, uma estratégia inconsciente que adotei ao longo de toda a minha vida. Creio que não seja fácil explicar, mas já que resolvi – pela primeira e espero que única vez – abrir o cofre das lembranças de como sobrevivi física e psicologicamente à Segunda Guerra Mundial, que me apanhou pouco mais que menino, aqui vai uma espécie de depoimento. Ou quase isso. Ou seja, um apanhado de algumas notícias e reflexões provocadas pelo enxame de “comemorações” (é incrível como foi usado a despropósito esse vocábulo) para assinalar os 60 anos do fim da guerra.

      Em primeiro lugar, preciso justificar para o meu leitor a razão de ter usado logo acima as expressões de “forma nebulosa” e “estratégia inconsciente”. É o seguinte: ao longo de cinco anos de furor guerreiro, este rapazinho – não me perguntem como – conseguiu alternar períodos de aulas regulares com ensinamentos do pai sobre história da arte (grande paixão) com missões junto à Resistência (Partito d’Azione), aliada aos Maquis franceses.

      Acho que tive a sorte de escapar da perseguição fascista por dois motivos: primeiro, porque não conseguiam provar nada e, segundo, o que podia fazer um magricela com cara de menino? Faça-me o favor! (Enquanto isso, eu e outros moleques também engajados na Resistência comíamos atum enlatado e fumávamos (grande consolo)). Eram cigarros Navy Cut que vinham juntamente com mantimentos lançados por pára-quedas ingleses. O maior problema era esconder, entre outras coisas, os cigarros e fumá-los também às escondidas. Uma guimba de Navy Cut era suficiente para levar um cara à tortura e à morte.

      Terminada uma guerra que matou 50 milhões de pessoas, sobraram muitos milhares de cidadãos afetados psicologicamente por ela e de forma indelével. E eu tinha todos os motivos para ficar marcado por essa triste sina. Mas, felizmente, o meu alter ego se encarregou de armar uma defesa que incluía a minha decisão de emigrar para o Brasil, aos 25 anos de idade. A estratégia foi a seguinte: quando instado, por qualquer circunstância, a falar da minha participação naqueles tempos de guerra, o meu alter ego passava a assumir um papel de narrador, conseguindo assim distanciar o emocional do racional; enfim, dolorosas lembranças em relatos históricos. Tratava-se de uma estratégia ainda tímida, mas que se tornou definitiva com a decisão de recomeçar a minha vida neste generoso País chamado Brasil e de me integrar ao calor humano e à jovialidade dos brasileiros. E de fato foi aqui que pude desenvolver toda a minha longa carreira de homem de comunicação, dedicando-me especialmente à criatividade, meu xodó que reputo em parte de origem genética e em parte, faltando com a modéstia, ao meu esforço de aprendizagem cultural, apesar de todas as dificuldades daquela guerra infame.

      Minha primeira pousada foi em São Paulo, como não podia deixar de ser para um imigrante italiano. E lá exerci diversas atividades, todas vinculadas à criatividade. Lá fui cenógrafo da Vera Cruz, trabalhei como designer, quando esse ofício ainda não tinha esse nome, cuidei de jornalismo cultural no Estadão, quando essa atividade também não tinha ainda esse nome e despejei um monte de aulas de História da Arte. Até que resolvi me mudar para o Nordeste e assumir definitivamente a profissão de publicitário. Isso aconteceu há quase 40 anos, representando uma boa parte das minhas atividades produtivas (que continuo exercendo) e me proporcionou uma integração cultural que me afastou de vez daquelas dolorosas lembranças do tempo dos nazifascistas. Mas tem mais: ao longo desses anos todos, amparado pelo amor e dedicação da minha mulher e pelo carinho e respeito dos meus novos conterrâneos reconquistei aquilo que considero o maior bem de um cidadão: a serenidade de espírito.
 
      Costumo dizer que hoje posso me declarar italiano de nascimento, brasileiro por naturalização e nordestino por adoção. Admitindo, no entanto, pequenas falhas. Como, por exemplo, o fato de cultivar a língua portuguesa desde que cheguei ao Brasil, o que me permite escrever artigos para jornais e revistas, mas, mesmo assim, ainda não conseguir assimilar certas expressões da terra das Capitanias, e muito menos o sotaque da Região. Pelo contrário. Freqüentemente, nas minhas falas aflora um sotaquezinho italiano. Mas os meus amigos sorriem e acham graça. Bondade deles.