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    Comunicação

    O canto repartido

    Entre a cordilheira e o mar do Chile escrevo. A cordilheira branca. O mar cor de ferro. Regressei de minhas viagens com os novos cachos. E o vento. O vento sacudia a terra, as raízes. Eu viajei com o vento. Hoje entre mar e neve e terra minha eu ordenei os dons que recolhi no […]

    POR: Pablo Neruda

    2 min de leitura

    Entre a cordilheira
    e o mar do Chile
    escrevo.

    A cordilheira branca.
    O mar cor de ferro.

    Regressei de minhas viagens
    com os novos cachos.

    E o vento.

    O vento sacudia
    a terra, as raízes.

    Eu viajei com o vento.

    Hoje entre mar e neve
    e terra minha
    eu ordenei os dons
    que recolhi no mundo.

    Estabeleci meu amor
    como uma sarça ardendo
    sobre a primavera
    de minha pátria.
    Regressei cantando.

    Onde esteve, a vida
    criadora
    me revestiu de germes
    e frutos.

    Regressei vestido
    de uvas e cereais.

    Eu trouxe a semente
    de escolas transparentes,
    a folhagem acerada
    das novas usinas,
    o latejo
    da tenacidade e o movimento
    da extensão povoando-se de aroma.

    Num lugar qualquer
    vi o pão diminuído
    e mais além estender-se
    os reinos da espiga.

    Vi nos povos a guerra
    como despedaçada
    dentadura
    e vi a paz redonda
    noutras terras
    crescer como uma taça
    como o filho na mãe.

    Eu vi.

    Ali onde estive, ainda
    nos espinhos
    que quiseram ferir-me,
    achei que uma pomba
    ia cosendo
    em seu vôo
    meu coração com outros
    corações.
    Achei por toda parte
    pão, vinho, fogo, mãos,
    ternura.

    Dormi sob todas
    as bandeiras
    reunidas
    como debaixo dos ramos
    de um só bosque verde
    e as estrelas eram
    minhas estrelas.

    De minhas encarniçadas
    lutas, de minhas dores,
    não conservo nada
    que não possa servir-vos.

    Também como a terra,
    eu pertenço a todos.
    Não há uma só gota
    de ódio em meu peito. Abertas
    vão minhas mãos
    espargindo as uvas
    no vento.

    Regressei de minhas viagens.
    Naveguei construindo
    a alegria.

    Que o amor nos defenda.
    Que levante suas novas
    vestiduras
    a rosa. Que a terra
    continue sem fim florida
    florescendo.

    Entre as cordilheiras
    e as ondas nevadas
    do Chile,
    renascido no sangue
    de meu povo,
    para vós todos,
    para vós canto.

    Que seja repartido
    todo canto na terra.

    Que subam os cachos.
    Que os propague o vento.

    Assim seja.

     

    Pablo Neruda
    As uvas e o vento
    Tradução de Carlos Nejar
    L & PM Editores
    Primavera de 1979