A inaceitável tentativa de constitucionalizar a cláusula de barreira declarada inconstitucionalmente pelo STF
I. A PEC n. 2, de 2007 tem o mesmo núcleo normativo do art. 13 da Lei 9096/95
No início da atual legislatura, em 6 de fevereiro de 2007, foi apresentada no Senado Federal a Proposta de Emenda Constitucional n. 2, por intermédio da qual seus autores, liderados pelo senador Marco Maciel (1), pretendem acrescentar um parágrafo 5º ao art. 17 da Constituição Federal, com a seguinte redação:
“Para fins de funcionamento parlamentar a lei poderá estabelecer distinções entre os partidos que obtenham um mínimo de cinco por cento de todos os votos válidos nas eleições para a Câmara dos Deputados, distribuídos em, pelo menos, um terço dos Estados, com um mínimo de dois por cento dos votos válidos de cada um desses Estados na mesma eleição, e os partidos que não atinjam esse patamar”.
Esta PEC já foi aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça do Senado, no dia 28 de fevereiro último, ocasião em que o Relator da matéria, o senador Jarbas Vasconcelos (2), acolheu a sugestão do senador Jefferson Peres (3) no sentido de suprimir a expressão “para fins de funcionamento parlamentar”.
Dessa forma, o texto a ser submetido à votação do Plenário do Senado (4) passou a ser:
“A lei poderá estabelecer distinções entre os partidos que obtenham um mínimo de cinco por cento de todos os válidos nas eleições para a Câmara dos Deputados, distribuídos em, pelo menos, um terço dos Estados, com um mínimo de dois por cento dos votos válidos de cada um desses Estados na mesma eleição, e os partidos que não atinjam esse patamar”.
Esta iniciativa parlamentar demonstra total desconsideração e, por isso, total desrespeito aos fundamentos adotados pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1.351 (5), proposta por PCdoB, PDT e outros partidos políticos em 1995, e que foi julgada praticamente dois meses antes da propositura da referida proposta de emenda à Constituição, em 7 de dezembro de 2006 (6).
Para os autores dessa proposta de emenda constitucional, ao ser constitucionalizado o conteúdo normativo declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, os vícios de inconstitucionalidade reconhecidos pelo STF seriam eliminados.
Esta premissa incorre em flagrante equívoco.
Embora redigido de outra forma, a questão central na apreciação da PEC n. 2/2007 do Senado consiste em que seu núcleo normativo é o mesmo do art. 13 da Lei n. 9096/95, que dispunha sobre critério normativo para que os partidos tivessem funcionamento parlamentar e com base no qual foram fixadas normas restritivas à distribuição dos recursos do fundo partidário e ao acesso ao rádio e à televisão, para a veiculação das propagandas partidárias.
Dispondo sobre o funcionamento parlamentar dos partidos políticos, o art. 13 da Lei 9096/95 previa que:
“Tem direito a funcionamento parlamentar, em todas as Casas Legislativas para as quais tenha elegido representante, o partido que, em cada eleição para a Câmara dos Deputados obtenha o apoio de, no mínimo, cinco por cento dos votos apurados, não computados os brancos e os nulos, distribuídos em, pelo menos, um terço dos Estados, com um mínimo de dois por cento do total de cada um deles” (7).
O requisito de obtenção de 5% dos votos válidos nas eleições para a Câmara dos Deputados, distribuídos em pelo menos 9 unidades da federação, com um mínimo de 2% dos votos válidos de cada uma delas, constitui-se no mesmo critério adotado pelo legislador ordinário na Lei 9096, em 1995, a que o Supremo Tribunal Federal declarou inconstitucional.
II. Os fundamentos adotados pelos ministros do STF quanto à violação ao princípio da razoabilidade
É importante atentar para o fato de o STF não ter declarado inconstitucional o disposto no art. 13 da lei partidária de 1995, pelo fato de o legislador ordinário não poder dispor sobre este assunto.
Não consta em qualquer dos votos dos 10 ministros que participaram da sessão de julgamento (8) que a norma contida no art. 13 da Lei 9096/95 constituiria conteúdo normativo reservado ao texto constitucional.
Ao contrário, a percepção da unanimidade dos ministros que participaram do julgamento convergiu para a constatação de que o percentual exigido ofendia o princípio da proporcionalidade, ou da razoabilidade, e que as restrições aos partidos políticos que não superassem a “barreira” dos 5% dos votos válidos para a Câmara dos Deputados – distribuídos em 9 unidades da federação, com o mínimo de 2% em cada uma delas – ofendiam os princípios constitucionais do pluralismo político, do pluralismo partidário, do princípio da igualdade de chances e do princípio federativo.
O absurdo do conteúdo normativo declarado inconstitucional – que agora alguns senadores pretendem constitucionalizar – foi evidenciado pelo Relator das Ações de Inconstitucionalidade, o ministro Marco Aurélio, ao demonstrar que para assegurar a aplicação efetiva da norma contida no art. 13 da Lei partidária – considerando o total dos 29 partidos políticos atualmente registrados no TSE – a todos era imposto o desafio de obter 5% dos votos válidos na última eleição, que totalizou 93.625.858 votos válidos; isto corresponderia à necessidade de cada um deles obter pelo menos 4.681.293 de votos.
Portanto, como bem observou o ministro Marco Aurélio: “ter-se-ia que contar não com cem por cento correspondentes à totalidade dos sufrágios, mas com cento e quarenta e cinco por cento!”.
Ou seja, o percentual concebido na lei partidária brasileira de 1995 – que agora, por intermédio da PEC n. 2, de 2007, alguns pretendem incluir no texto constitucional – é absurdamente irrazoável, na medida em que se revela inexeqüível.
Como pode-se pretender que os partidos políticos obtenham um percentual mínimo de 5% de votos nas eleições para a Câmara dos Deputados, quando já se sabe que não existirão votos suficientes para todos os partidos conseguirem tal desempenho eleitoral?
Analisando a origem da norma mal copiada pelo legislador brasileiro, o ministro Gilmar Mendes observa em seu voto:
“(…) diversamente dos modelos adotados no direito comparado – cito como referência, o sistema alemão – a fórmula adotada pela legislação brasileira restringe o funcionamento parlamentar do partido, mas não afeta a própria eleição do representante. Não há aqui, pois, repercussão direta sobre mandatos dos representantes obtidos para a agremiação que não satisfaça à referida cláusula de funcionamento parlamentar”.
Ao abordar especificamente a repercussão da cláusula de barreira prevista no art. 13 da Lei 9096/95 no princípio da proporcionalidade, o ministro Gilmar Mendes comenta:
“A questão que aqui se discute é a possibilidade ou não de a lei estabelecer uma cláusula de barreira que repercuta sobre o funcionamento parlamentar dos partidos políticos, tal como o fez o legislador brasileiro”.
“Na realidade do direito alemão, consagra-se que o partido político que não obtiver 5% (cinco por cento) dos votos na votação proporcional, o pelo menos três mandatos diretos, não obterá mandato algum, também na eleição para o chamado primeiro voto. Nesse caso, despreza-se a votação dada ao partido.
Todavia, nunca se atribuiu conseqüência no que concerne àquilo que nós chamamos de ‘igualdade de oportunidades’ ou ‘igualdade de chances’. A legislação alemã tentou estabelecer um limite mais elevado para efetivar o financiamento público das campanhas. Mas a Corte Constitucional entendeu que essa cláusula era sim violadora do princípio da igualdade de oportunidades (Chancengleicheit), porque impedia que os partidos políticos com pequena expressão conseguissem um melhor desempenho, tendo em vista que eles não teriam acesso à televisão, muito menos aos recursos públicos. Daí a legislação ter fixado percentual de 0,5% dos votos para o pagamento de indenização pelo desempenho dos partidos nas eleições.
O modelo confeccionado pelo legislador brasileiro, no entanto, não deixou qualquer espaço para a atuação partidária, mas simplesmente negou, in totum, o funcionamento parlamentar, o que evidencia, a meu ver, uma clara violação ao princípio da proporcionalidade, na qualidade de princípio da reserva legal proporcional (…).
O fato é que – e isso foi bem demonstrado no voto do relator –, como observado no último pleito eleitoral, agremiações partidárias que obtiveram um expressivo cabedal de votos não teriam, na próxima legislatura, direito a qualquer funcionamento parlamentar, por força dessa ‘cláusula de barreira à brasileira’. Há, aqui, a meu ver, um sacrifício radical das minorias!”.
Após suas expressivas considerações e fundamentos o ministro Gilmar Mendes conclui: “a cláusula de barreira estabelecida pela Lei 9.096/95 não representa nenhum avanço, mas sim um patente retrocesso em termos de reforma política, na medida em que intensifica as deformidades de nosso singular sistema eleitoral proporcional, que atualmente apresenta visíveis sinais de exaustão”.
Por sua vez, o ministro Ricardo Lewandowski, enfocando a violação ao princípio constitucional do pluralismo político, asseverou em seu voto: “a cláusula de barreira, tal como posta, atinge profundamente a garantia essencial, inerente a uma democracia representativa, que é a garantia de que as minorias encontrem efetiva expressão no plano político, sob pena de instaurar-se uma ditadura da maioria, sobretudo quando se estabelece, como no caso, restrições draconianas, irrazoáveis, desproporcionais para o acesso ao fundo partidário e ao tempo no rádio e na televisão”.
III. As perspectivas de distinção entre partidos e a necessidade de respeito ao princípio da igualdade de chances
Evidenciada a inconstitucionalidade do critério baseado na obtenção de 5% dos votos válidos para a Câmara dos Deputados, importa aferir em que medida seria possível, no caso da PEC n. 2, de 2007, ao constituinte derivado remeter ao legislador ordinário o estabelecimento de distinções a partir do desempenho eleitoral de cada partido, em razão da obtenção ou não de 5% dos votos válidos para a Câmara dos Deputados, distribuídos em pelo menos 9 unidades da federação, com pelo menos 2% dos votos em cada uma delas.
As soluções adotadas nos arts. 41, 48 e 49 (9), da Lei 9096/95, como exemplos de distinção entre partidos políticos em razão do desempenho eleitoral previsto no art. 13 da mesma lei, no que se refere à participação do partido político no Fundo Especial de Assistência Financeira aos Partidos Políticos, Fundo Partidário e quanto ao acesso gratuito ao rádio e à televisão, revelaram-se ao Supremo Tribunal Federal inaceitáveis.
Neste particular, o Ministro Sepúlveda Pertence enfatizou:
“Também já se observou aqui que, diversamente da fórmula da República Federal da Alemanha, a nossa cláusula de exclusão não extingue o partido político, não lhes decreta a morte, mas é mais cruel porque condena os partidos que não tenham atingido o patamar legal à morte fatal por inanição.
A desproporção entre a distribuição do acesso aos veículos de comunicação de massa – reduzida a esses risíveis dois minutos anuais – e a participação, com os grandes partidos, no rateio de 1% do fundo partidário são fórmulas que, mais do que arbitrárias, são risíveis, se não valem por confessar que, efetivamente, se visou à eliminação desses partidos”.
Seja qual for a “distinção” que o legislador ordinário vier a empreender, na remota e espero impossível hipótese de aprovação da PEC n. 2 de 2007, do Senado Federal, seu pressuposto – qual seja o desempenho com pelo menos 5% dos votos válidos para a Câmara dos Deputados – contaminará qualquer solução a ser adotada.
Conforme reiteradamente afirmado pelos ministros do Supremo Tribunal Federal, as discriminações draconianas previstas em relação à distribuição dos recursos do fundo partidário – 1% para todos os partidos registrados no TSE e 99% para os partidos que atingiram a cláusula de barreira – e em relação à propaganda partidária no rádio e na televisão – 2 minutos por semestre para os partidos que não superarem a cláusula de barreira e 20 minutos por semestre para propaganda partidária em bloco, acrescido de 40 minutos também por semestre para inserções de propaganda partidária – atentam contra o princípio constitucional do direito de chance, ou de oportunidade.
Trata-se de garantia constitucional no sentido de que a todos é dada a chance, ou a oportunidade, de se estruturarem e se apresentarem aos cidadãos e às cidadãs, de forma a terem possibilidade de obter apoio eleitoral e social suficiente para se transformarem em forças políticas majoritárias.
Com foi bem exposto pelo ministro Gilmar Mendes em seu voto:
“O princípio da igualdade entre os partidos políticos é fundamental para a adequada atuação dessas instituições no complexo processo democrático. Impõe-se, por isso, uma neutralidade do Estado em face das instituições partidárias, exigência essa que se revela tão importante quanto difícil de ser implementada. A importância do princípio da igualdade está em que sem a sua observância não haverá possibilidade de estabelecer uma concorrência livre e equilibrada entre os partícipes da vida política, o que acabará por comprometer a essência do próprio processo democrático”.
Prosseguindo em sua análise, o ministro Gilmar Mendes observa ainda:
“Não há dúvida de que a gradação da ‘igualdade de chances’ deve realizar-se cum grano salis, de modo a assegurar razoável e adequada eficácia a todo e qualquer esforço partidário. Até porque o abandono da orientação que consagra a igualdade formal entre os partidos não pode ensejar, em hipótese alguma, a nulificação do tratamento igualitário que lhes deve ser assegurado pelo Poder Público. Eventual gradação do direito de igualdade de chances há de se efetivar com a observância de critério capaz de preservar a própria seriedade do sistema democrático e pluripartidário.
Tal constatação mostra-se particularmente problemática no que concerne à distribuição dos horários para as transmissões radiofônicas e televisivas. Uma radical gradação do direito de igualdade de chances acabaria por converter-se em autêntica garantia do status quo. Daí ter-se consolidado na jurisprudência constitucional alemã orientação que assegura a todos os partícipes do prélio eleitoral, pelo menos, uma ‘adequada e eficaz propaganda’ (angemessene und wirksame Wahlpropaganda). Considera-se, assim, que um Sendezeitminimum (‘tempo mínimo de transmissão’) deve ser assegurado a todos os concorrentes, independentemente de sua ‘significação’.
Ainda assim, verificam-se na doutrina sérias reservas à gradação do direito de igualdade de chances, no tocante às ‘transmissões eleitorais’. É que tal oportunidade assume relevância extraordinária para os pequenos partidos e as novas agremiações, que, diversamente dos etablierten Parteien, não dispõem de meios adequados para difundir a sua plataforma eleitoral”.
IV. A importância da mobilização contra a PEC da cláusula de barreira e o respeito democrático à decisão do Supremo Tribunal Federal
À medida que o Supremo Tribunal Federal considerou que a norma contida no art. 13 da Lei partidária ofendia princípios constitucionais, evidentemente não se pode imaginar uma Emenda à Constituição Federal, que reproduza o mesmo conteúdo normativo não ser considerada ofensiva aos mesmos princípios constitucionais invocados na referida declaração de inconstitucionalidade.
Além dos esforços em curso no Senado Federal e dos que, posteriormente, serão empreendidos na Câmara dos Deputados, caso a PEC seja aprovada no Senado, a mobilização nacional das forças democráticas e progressistas – no sentido de esclarecer e enfatizar a inaceitável perspectiva contida na PEC n. 2 de 2007, do Senado Federal –, assume relevância política estratégica neste embate político.
A valorização dos fundamentos adotados pelo Supremo Tribunal Federal neste caso é feita como expressão de respeito aos parâmetros democráticos de funcionamento do Estado brasileiro.
Não tem cabimento forças políticas conservadoras, por se considerarem majoritárias, pretenderem esmagar, ou como afirmou o ministro Sepúlveda Pertence, condenar os demais partidos à “morte por inanição”, confrontando os fundamentos jurídico-constitucionais adotados pelo Poder Judiciário, no regular exercício de seu poder de controle concentrado da constitucionalidade de norma federal.
Neste sentido, importa lembrar que o Supremo Tribunal Federal já firmou orientação jurisprudencial no sentido de admitir o controle da constitucionalidade de Emenda Constitucional, quando esta ferir normas e princípios constitucionais considerados “cláusulas pétreas”, como os princípios constitucionais da proporcionalidade, do pluralismo político e da igualdade de chances.
Paulo Guimarães é advogado.
Notas
(1) Ex-PFL-PE, atual DEM-PE.
(2) PMDB-PE.
(3) PDT-AM.
(4) A PEC nº 2/2007 já foi incluída na Ordem do Dia da sessão ordinária deliberativa de 13 de março último, mas, desde então, em razão da ausência de acordo para a votação das Medidas Provisórias que estão trancando a pauta de votação no Senado, a apreciação da PEC está sobrestada.
(5) A ADI 1354, proposta pelo PSC, apensada à ADI 1351, foi julgada em conjunto com esta.
(6) Acórdão publicado no Diário da Justiça da União de 30 de março de 2007.
(7) Os trechos do art. 13, do art. 41, do art. 48 e do art. 49 da Lei 9096/95, transcritos neste texto e que estão sublinhados foram declarados inconstitucionais pelo STF.
(9) O ministro Joaquim Barbosa não participou do julgamento por motivos justificados.
(10) “Art. 41. O Tribunal Superior Eleitoral, dentro de cinco dias, a contar da data do depósito a que se refere o § 1º do artigo anterior, fará a respectiva distribuição aos órgãos nacionais dos partidos, obedecendo aos seguintes critérios:
I. um por cento do total do Fundo Partidário será destacado para entrega, em partes iguais, a todos os partidos que tenham seus estatutos registrados no Tribunal Superior Eleitoral;
II. noventa e nove por cento do total do Fundo Partidário serão distribuídos aos partidos que tenham preenchido as condições do art.13, na proporção dos votos obtidos na última eleição geral para a Câmara dos Deputados”
“Art. 48. O partido registrado no Tribunal Superior Eleitoral que não atenda ao disposto no art. 13 tem assegurada a realização de um programa em cadeia nacional, em cada semestre, com a duração de dois minutos”
“Art. 49. O partido que atenda ao disposto no art.13 tem assegurado:
I. a realização de um programa, em cadeia nacional e de um programa, em cadeia estadual em cada semestre, com duração de vinte minutos cada;
II. a utilização do tempo total de quarenta minutos, por semestre, para inserções de trinta segundos ou um minuto, nas redes nacionais, e de igual tempo nas emissoras estaduais”.
EDIÇÃO 89, ABR/MAI, 2007, PÁGINAS 19, 20, 21, 22, 23