A luta das mulheres conquistou importantes vitórias. No entanto, a presença das mulheres nas instâncias de poder é limitada. Por que isso ainda ocorre?

Clara Araújo – Tenho estudado isso e não há uma causa única, mas um conjunto de fatores.
Primeiro, há um desequilíbrio histórico mundial. Esse desequilíbrio faz parte da própria constituição do Estado moderno, que vetou o direito à cidadania para as mulheres. Quando estas começam a ter maior participação se depararam com espaços já ocupados, pelos homens. Elas têm de não apenas ocupar, mas também tirar alguém de seus espaços – o que significa enfrentar formas de capitais políticos já organizados e instituídos. Isto criou também certos preconceitos de imagens associadas ao político ou às características do que é próprio ao campo político como masculinas.

Há outros fatores gerais associados à chamada dupla jornada das mulheres. Tenho entrevistado mulheres-candidatas e candidatos – para comparar – e é impressionante como essa questão da política e da família (responsabilidade familiar) é levantada pelas mulheres. Algumas mulheres, candidatas no Rio de Janeiro, me relataram não poder fazer campanha porque não havia quem cuidasse de seus filhos. Os maridos se recusavam a ajudar porque não concordavam com tal ação política. Por isso, elas só faziam campanha nos finais de semana, num período de três a quatro meses. Esse é um outro tipo de problema constatado por nós – um fator importante para explicar essa desvantagem das mulheres.

Outro fator é o econômico. Quer dizer, ele pesa em qualquer sistema eleitoral e, em alguns, mais do que em outros. No mundo, as mulheres ganham, em média, menos do que os homens. Em termos de bens quantificados, as mulheres, segundo a ONU, possuem apenas cerca de 15% deles. E crescentemente os processos eleitorais se tornam cada vez mais mediados pelo mercado. Portanto, ao mesmo tempo em que há um movimento de entrada das mulheres há um conjunto de fatores impeditivos.

Segundo, não podemos nos esquecer também das condições de vida das mulheres. E essa questão pesa dentro das características do sistema eleitoral. Há um preconceito estruturado entre homens e mulheres. No entanto, isso é relativo porque não existe uma essência moral qualitativa das mulheres em relação aos homens, ou diferentes habilidades. Mas como as mulheres têm menor presença nos espaços públicos por onde se constroem as trajetórias políticas terminam se apresentando menos. Até porque avaliam as suas chances reais. E muitas vezes, quando se apresentam, não recebem o apoio necessário.

Portanto, as mulheres no Brasil estão tentando entrar em um espaço que vem, de um lado, de um processo frágil, pouco organizado, de institucionalização democrática; e, de outro, de um contexto em que se trata de desmoralizar a política cada vez mais, criar uma idéia de que política é uma coisa suja. São contextos muito adversos. E que, suponho, têm impacto sobre as próprias mulheres ao se candidatarem, por exemplo, ao se interessarem por disputar o poder. Ainda assim, os dados apontam para crescimento na participação na disputa.

Um último fator – do ponto de vista sócio-econômico mais amplo (sociológico) – é a existência de certo enfraquecimento dos movimentos sociais; além da questão de todo um trabalho de enfraquecimento da idéia de partido político e da política. Ao observarmos a capacidade de mobilização dos movimentos organizados, percebemos que eles têm tido certa dificuldade. Isso pode ter impacto, pois no Brasil quando levamos em consideração as trajetórias e a cultura política brasileira – e pelas características pluripartidárias institucionais –, observamos a existência de dois grandes veios por meio dos quais as mulheres entram na política. E eles são muito claros e demarcados. Há um veio mais conservador: o da entrada através da reprodução da elite política, já mais tradicional. Ou seja, as mulheres entram via família, já com um capital familiar (esposas, filhas, sobrinhas, parentes…). E nota-se outro veio mais à esquerda: os movimentos sociais.

No caso do Brasil, essas duas trajetórias são muito marcantes. E se as mulheres adentram a política pelo caminho dos movimentos, o enfraquecimento destes também rebate sobre as mulheres, por tratar-se de espaços importantes para a constituição de redes e formação de potenciais lideranças.

É preciso, ainda, considerar o capital e as condições de quem “já está dentro”. Fizemos um estudo sobre os fatores que influenciam na eleição de uma pessoa. Levantamos alguns dados: educação, idade, situação conjugal, partido, tamanho do distrito (número de representantes de cada estado), densidade demográfica, IDH e as candidaturas à reeleição. E a única variável com resultado positivo é “candidaturas à reeleição”. Ou seja, uma pessoa já eleita tem muito mais chances – muito mesmo, do ponto de vista estatístico – do que uma pessoa não concorrendo à reeleição. Isto significa que, de partida, as chances dos homens já são bem maiores. Como você analisa os espaços conquistados pelas mulheres na vida política brasileira?

Clara Araújo – O fato de haver um pequeno percentual de mulheres como representantes eleitas leva à associação disso a uma imagem de apatia das mulheres. Vários estudos têm sido feitos para dar visibilidade à participação política feminina. Estudos e levantamentos mostram o crescimento da participação das mulheres nos movimentos associativistas – mesmo dentro dos partidos. O crescimento do número de mulheres filiadas aos partidos políticos é significativo, principalmente nos de esquerda. Há um grande crescimento da participação das mulheres como militantes.

Mesmo considerando as dificuldades já citadas (como o enfraquecimento do movimento sindical, dado também pelo desemprego etc), os estudos que trabalham mais com o associativismo também identificam um aumento da participação das mulheres. No caso do poder – além do espaço da representação – um dado muito interessante é um poder não eleito, mas meritocrático. No Judiciário, por exemplo, há uma grande novidade: a proporção de mulheres aprovadas em concursos é maior que a de homens. Quer dizer, onde há o concurso para o exercício do poder, onde há certa neutralidade nas escolhas as mulheres ocupam mais espaço. Conforme meu levantamento sobre a participação das mulheres nos diretórios dos partidos dos últimos dez anos, há um resultado significativo. O patamar de 8%, de 10 anos atrás, hoje está, em média, entre 20 e 30%.

Mas o nó continua, realmente, nos espaços da representação.

Você citou a Constituição de 1988. De 1986 para cá houve uma série de avanços institucionais e jurídicos, mas no meio desse caminho há o processo avassalador do neoliberalismo nos anos 1990. Ao mesmo tempo em que as mulheres conquistaram avanços jurídicos, sua vida concreta se tornou mais difícil?

Clara Araújo – O neoliberalismo teve um impacto grande sobre a vida das mulheres. Não só em relação à política, mas também ao trabalho. Por exemplo, nos países em que ainda se preservam – no caso do sistema capitalista – políticas de bem-estar calcadas na intervenção do Estado o grau de igualdade e de espaços conquistados pelas mulheres é muito maior. Na Suécia, em comparação com países de democracias liberais (como Inglaterra, Estados Unidos), a diferença em termos de participação política, no trabalho – e vários dados da igualdade – é muito significativa.

A precariedade da situação sob o neoliberalismo tem impactos em termos diretos e indiretos. O desemprego e a precariedade de emprego têm impacto sobre a vida das mulheres. No Brasil elas trabalham em média 32 horas semanais na esfera doméstica; e a média de horas trabalhadas fora é cerca de 41 horas. Esses são dados de uma pesquisa nossa, em nível nacional (os do IBGE são mais ou menos próximos desses). Fizemos essa pesquisa, comparando vários países: Japão, Suécia, Estados Unidos, Espanha, México, Brasil, Portugal e Chile. E é impressionante o número de horas, em média, trabalhadas pelas mulheres em Chile, Brasil e México – que foram laboratório das políticas neoliberais.

Num contexto em que vários aspectos já dificultam a participação das mulheres, os efeitos das políticas neoliberais complicam ainda mais. Sobra menos tempo para participar da política. Se a mulher trabalha precariamente – e este tipo de trabalho tem crescido – ela não se sindicaliza. Se ela não se sindicaliza não pode ter uma experiência coletiva, associativista, não pode se tornar uma liderança. Mas este efeito não é o mais decisivo ou direto. No Chile, por exemplo – país cuja aplicação das políticas neoliberais foi inclusive seguida mais à risca e, além disso, é um muito conservador – as mulheres têm conseguido obter resultados eleitorais bem melhores que no Brasil – e sem cotas. O mesmo se passa em relação ao México, embora lá existam as cotas. Mas mesmo antes delas, os resultados já eram melhores. Portanto, há também outros fatores, associados ao sistema eleitoral, que ajudam a explicar o caso brasileiro.

Qual o resultado, alcance e limite da política de cotas às mulheres?

Clara Araújo – A política de cotas tem dado resultados quantitativos efetivos na maior parte dos países onde foi adotada, porém com variações e, não necessariamente, seus resultados são sempre melhores do que nos países onde não há cotas. Há aspectos positivos e negativos nas experiências de cotas.

É importante dizer que as cotas ganharam relevância em razão de alguns fatores. Um fato é a questão da mulher, fruto da pressão e da luta das mulheres, ter se tornado um elemento importante na agenda política internacional, inclusive na do sistema de financiamento. Por isso, muitos países – até para poder obter financiamento – são obrigados a ampliar os direitos da mulher.

De fato, estatisticamente em termos mundiais, sem dúvida, a política de cotas tem tido um impacto muito grande na ampliação da presença de mulheres na representação político. Na América Latina há, hoje, 12 países com sistema de cotas. Comparamos o percentual de mulheres eleitas antes das cotas com o percentual de mulheres depois delas (e nos países sem cotas, esse percentual de mulheres naquele mesmo período com o percentual de mulheres hoje). A média de mulheres eleitas, nos países com cotas, quase dobrou. Desse modo, em certas circunstâncias elas aumentam o percentual de participação das mulheres, porém, não creio que esteja em jogo apenas este aspecto formal. De certa forma, a política de cotas se tornou uma espécie de panacéia.

Ter cotas significa ser mais democrático o sistema? Não necessariamente. Por isso, muitas vezes, a forma como esse debate tem sido feito no Brasil é um pouco simplista, pois se concentra apenas nesse ponto enquanto outros – também decisivos – ficam secundarizados.

Um dado interessante é o fato de as democracias mais consolidadas não terem cotas às mulheres. Elas entram mais nos países em que as democracias estão ainda sendo construídas. De um lado, podemos ler isso como pouca permeabilidade das instituições consolidadas a inovações. E fazer a leitura de que isso significa tradicionalismo. De outro, ver isso como o conceito de representação. Portanto, nos países em que as instituições não estão tão sólidas, arraigadas, podem-se incluir outros aspectos do conceito de representação, que podem ser positivos. Mas também há de se refletir sobre o que consiste a representação e como articular “idéias e presença”, como disse uma escritora, Anne Phillips.

Há várias modalidades de cota que se entrelaçam com os sistemas políticos e isso altera a sua eficácia. Primeiro, a cota com a lista eleitoral aberta, como a nossa no Brasil. E aquela com a lista eleitoral fechada. A depender de como se tem essa cota na lista eleitoral fechada, há uma chance às mulheres completamente diferente, dentro da mesma lista. Por exemplo, numa lista eleitoral fechada – em que se vota na lista do partido e não no candidato, mas não há definições sobre ordenamento e alternância das cotas – as chances das mulheres são completamente diferentes em relação às de listas fechadas, onde as cotas são obrigatórias, inclusive na alternância dos nomes. Então, para cada dois nomes masculinos deve haver um feminino. Se houver esse item da alternância, muda a chance das mulheres. Há experiências nos dois sentidos mostrando isso. Existe ainda uma outra modalidade: a cota de reserva de assentos no Parlamento. Ela tem sido usada em países mais conservadores; mais atrasados em termos de valores democráticos e igualitários. Na minha opinião, é um sistema que contraria o princípio da representação e leva à segregação das mulheres.

Em relação à cota em listas abertas, a sua eficácia também varia, e depende dos preceitos e regras eleitorais. Por exemplo, na América Latina – onde mais se concentraram as experiências, e têm tido mais sucesso – o Peru adotou a lista aberta e tem obtido um enorme sucesso, passando de 9% para 27% na representação de mulheres. Isto porque, além de ser obrigatória (o partido não concorre se não preencher a cota), há também o voto duplo, em dois candidatos, facilitando a campanha das mulheres. Já no Brasil tem sido este desastre que vemos. Mas não é só em razão da lista. No caso, na região, há um resultado muito positivo do ponto de vista numérico em relação aos países que adotam cotas e vis à vis aos países que não adotam. No entanto, isso não significa que todos os países que adotam cotas têm resultados positivos e todos os que não adotam negativos. Por isso, embora venham sendo cada vez mais assumidas e contribuam, no meu entender, as cotas por si só não resolvem o problema. Aí entra a questão do sistema eleitoral.

A eleição de mulheres depende muito do sistema eleitoral. Um elemento identificado por nós como fundamental para o funcionamento da cota é a existência de sanção aos partidos que não a cumprem. A Argentina tem lista fechada, o Peru, como disse, aberta e o Equador também. A maior parte deles adota uma sanção: se a cota não for cumprida o partido não concorre. Esse é um elemento básico para que a cota seja respeitada. Onde se conseguiu impor essa sanção, houve o cumprimento da cota. Na Argentina, no início, não havia essa sanção. E o que ocorria nesses países de lista fechada quando não havia essa sanção? Havia uma brusca queda do índice de mulheres. Portanto, os resultados iniciais dos países – mesmo com lista fechada, mas sem sanção nem alternância – não alteravam muito o quadro anterior. A inclusão de certas sanções no caso das listas fechadas possibilitou um aumento de mulheres eleitas.

No Brasil este debate sobre as listas está muito simplificado (lista aberta ou lista fechada), quando há uma terceira alternativa de lista. A variação delas é muito grande dentro de cada sistema, e também como elas são aplicadas (conforme disse antes em relação ao Peru e ao Brasil). No Peru as mulheres fizeram uma campanha com a insígnia: “Dê seu primeiro voto a quem quiser, mas o segundo a uma mulher”. Isso foi identificado como elemento importantíssimo para elas terem conseguido espaço maior. Então, no sistema eleitoral há outros aspectos importantes a serem considerados.

Quando comecei a pesquisar as cotas me perguntava “O que isso implica mesmo?”. E o primeiro dado, do ponto de vista numérico, em geral tem sido positivo às mulheres. Mas, isso não diz nada sobre o quão democrático é um país. As pessoas usam muito o exemplo dos países escandinavos que têm altíssimos percentuais de presença das mulheres em comparação com os outros. Mas nenhum deles tem cotas por lei, ou obrigatórias. Lá os partidos que quiseram colocaram cotas internas como política de ação afirmativa. São países com Estados de bem-estar social mais ou menos consolidados. Isso tem impacto positivo sobre a disposição e a chance de as mulheres participarem da esfera pública e, ao mesmo tempo, há uma política direcionada para incentivar os homens a também se comprometerem com a esfera privada. E são países, pelo que a literatura identifica, com uma cultura de gênero igualitária. Alguns autores, inclusive, comparam esses países com Inglaterra, Alemanha e França. E mostram como existem diferenças. Enquanto a Inglaterra e outros países têm uma cultura mais hierarquizada, mais tradicional, os países escandinavos têm uma tradição de valor e cultura mais igualitários. Por isso, nesses países há um conjunto de fatores e as cotas entraram como um fator adicional.

O Congresso Nacional debate hoje o conteúdo concreto de uma reforma política. Qual a sua opinião sobre a reforma e as expectativas em relação à participação das mulheres?

Clara Araújo – Um primeiro dado importante é o fato de a Secretaria Nacional de Mulheres ter escolhido para este ano como principal tema a questão da política, estimulando muito o debate dentro das conferências preparatórias sobre a reforma política. Isso é muito importante porque há certa dificuldade dos movimentos de mulheres de discutir política, como se a tal esfera fosse uma coisa e o feminismo outra. E essa questão ter sido colocada como ponto da agenda da Conferência das Mulheres de certa forma obriga e torna esse elemento central. A grande questão é saber o que é a reforma política e qual sua abrangência. Há alguns dados visíveis não só em relação às mulheres como também em relação à sociedade como um todo.

O primeiro ponto é o chamado financiamento público de campanha. Sua importância já está por demais demonstrada, apesar do discurso da mídia (de o dinheiro do povo ir para a política…). Porque o financiamento público e as restrições ao financiamento privado democratizam as condições de concorrência. Que condições as pessoas têm de concorrer num mundo cada vez mais midiatizado?

Portanto, a questão do financiamento é um elemento fundamental. Em relação às mulheres – considerando possuírem menor renda, menos bens e estarem menos nos partidos do que os homens –, conforme todas as pesquisas mostram a grande questão levantada por elas é a financeira. As mulheres, em geral, não têm dinheiro para enfrentar esse aparato mercadológico em que se tornaram as campanhas eleitorais. Assim, o financiamento público, junto com a restrição ao financiamento privado, seria um grande avanço.

Um aspecto muito combatido pela mídia – mas que tem de ser preservado, no caso do Brasil – é a questão do horário gratuito de propaganda eleitoral. Num país como este, continental, e cada vez mais midiatizado, esse espaço é fundamental – em especial para quem não tem dinheiro, e não consegue alcançá-lo via outros meios. E para as mulheres também é um espaço fundamental.

Há duas outras discussões sobre a reforma política: a lista e a fidelidade partidária. Este talvez seja um ponto-chave, porque de uma forma ou outra o indivíduo se identifica com o partido, apresenta-se por um partido, que deixa de dar a vaga para outra pessoa. E ele muda de partido quando quiser. Portanto, nessa articulação entre representante e representado, e o partido como seu mediador dessa representação, a fidelidade é importante.

E sobre a lista pré-ordenada qual a sua opinião?

Clara Araújo – Venho estudando isso em relação às mulheres. Se iniciarmos a discussão de lista, independentemente das mulheres, há aspectos prós e contras tanto na lista aberta quanto na fechada.
Sobre a lista fechada, há o entendimento de que ela – nas características do Brasil (onde os partidos estão ainda pouco enraizados) – fortaleceria os partidos políticos, daria mais visibilidade a eles, despersonalizaria o voto, que seria articulado com um programa político do partido. No entanto, há outro aspecto a ser considerado: existe uma relação, do ponto de vista da representação, entre o representado, o eleitor e o representante. Por quê? Porque de uma forma ou outra quem representa não é o partido. A figura do representante é individualizada, por mais que o partido tenha um programa.

Por mais que o partido tenha um programa, quando ele elenca uma lista fechada (uma ordem de prioridades) sobre a qual o eleitor não pode fazer nenhum tipo de escolha, de certa forma este tem de ter uma identificação muito grande com o partido. E, dentro do partido, há as variações das origens das pessoas e das áreas que representam etc. Esse é um primeiro problema: como preservar algum grau de autonomia para o eleitor. Segundo problema: qual o impacto da lista fechada em países como o Brasil, em que as instituições políticas partidárias são menos consolidadas? De um lado, há o fortalecimento dos partidos, algo necessário e importante; de outro, um risco de fortalecimento das oligarquias das legendas menos democráticas. A lista fechada ajudaria a consolidar os partidos, mas também daria mais poder ainda às direções e a essas oligarquias.

A discussão entre lista aberta versus lista fechada empobrece, porque há um conjunto de experiências em vários países da chamada lista flexível. Na realidade, conforme um levantamento meu, inclusive em relação às mulheres, a maioria dos 20 primeiros países com mais representação das mulheres no Parlamento, possuía lista flexível. Há uma combinação do voto no partido, na lista de candidatos do partido, com uma escolha do eleitor dentro daquela lista. Portanto, é dada certa margem de manobra para o eleitor, ao mesmo tempo em que ele é obrigado a votar numa determinada lista. Se ele escolhe só um candidato o voto dele não vale. Ele é obrigado a votar na lista e escolher um candidato. Este modelo tem sido muito adotado por muitos países. Com isso, de um lado, preserva-se o partido e, de outro, preserva-se certa autonomia do eleitor.

Na lista fechada é mais fácil de aplicar as cotas femininas e a maior parte dos países que adotam as cotas possui lista fechada. De fato, a cota tem mais a ver com a lista fechada. Porque no caso da lista aberta, estar numa lista ou não estar não faz diferença nenhuma. Quer dizer, depende muito do peso que o partido dá ao indivíduo que será candidato e da sua própria capacidade em termos de finanças etc. No caso da lista fechada, se se vota apenas na lista, a mulher constar de uma lista já tem um significado. No entanto, se a legislação não tem força para impor a alternância nas cotas, é um tiro que pode sair pela culatra – como revelaram as experiências de Argentina, Bélgica e vários países de lista fechada que adotaram cota, mas não conseguiram adotar a alternância logo de início. As mulheres foram jogadas na base da lista e não foram eleitas.

Segundo risco – segundo a avaliação de algumas experiências de cotas de alguns países mais atrasados –: a subordinação das mulheres à direção partidária. Como há mulheres em menor número, elas ficam mais dependentes da direção partidária para serem indicadas. E isso implica numa forma de competição entre elas. Quer-se evitar em relação à lista aberta, mas acontece. Um estudo sobre Bangladesh mostrou como, na realidade, acontecia de as mulheres indicadas serem aquelas que os dirigentes partidários queriam, porque eram partidos oligárquicos. E agora acaba de sair um estudo sobre a Argentina – pioneira na história das cotas na América Latina (já faz 15 anos): de 6% em 1991, a eleição de mulheres passou para 36% atualmente. Mas o estudo identifica também este problema da “lealdade” e observa que em relação à composição das direções partidárias há um crescimento muito pequeno. Nesse país existe a obrigatoriedade da alternância na ordem da lista em relação às cotas: para cada dois homens há uma mulher.

A lista aberta, para mim, é complicada também. Porque, com ela, é muito estimulada a competição intrapartidária, o voto é muito individualizado; e isso exige um grau de recursos muito grande. Portanto, as mulheres são realmente muito prejudicadas com essa lista completamente aberta. A cota decididamente não funciona para lista aberta como a do Brasil.

A cota na lista aberta como é colocada atualmente no Brasil – em que não há fidelidade, nenhum tipo de financiamento público; toda a campanha em 90% dos partidos depende do candidato – não funciona de fato. Por esse motivo ela não tem funcionado. E ainda não há uma sanção. No caso do Peru, por exemplo, há sanção. É lista aberta, mas tem duas particularidades: o partido tem de colocar a cota, e as pessoas escolhem dois nomes. Então, para o partido, se ele tem realmente de preencher a cota, não é vantagem para ele preenchê-la de qualquer forma. No Brasil isso não é problema porque sequer os homens preenchem as candidaturas. O mercado eleitoral é muito grande. Há 150% de candidatos sobre as vagas, então a proporção é muito grande. Nesse atual sistema realmente as cotas são uma falácia. Têm impacto negativo pelo fato de as pessoas entenderem que as mulheres não querem fazer política, não vão se candidatar. Na realidade, na minha opinião, as mulheres são sábias, elas fazem um cálculo de ganho e custo das condições e das chances de enfrentar o contexto brasileiro. A média de gasto nessa última campanha para deputado federal ficou em torno de R$ 2 milhões. Junto com o pesquisador Gregory Schmidt fiz um estudo comparando Brasil e Peru e ele acabou fazendo um estudo com 64 países – sobre a chance de eleição das mulheres e sua a relação com cotas entre sistemas com lista aberta e com lista fechada. Tanto no que encontramos na América quanto no que ele encontrou em seu estudo mais amplo, não há diferença na chance de as mulheres serem eleitas se apenas for considerada a lista. A chance de as mulheres serem eleitas na lista fechada, ou na lista aberta, é a mesma. Se for considerada a cota, sem a obrigatoriedade da alternância da lista, é o mesmo resultado.

Mas se forem consideradas a cota e a obrigatoriedade da alternância da lista – ou seja, havendo uma cota de 30% e isso ter de ser cumprido – haverá dois homens, uma mulher, ou uma mulher, dois homens; então, há chances efetivas. Fica assegurado que as mulheres serão eleitas.

Um segundo achado: quando juntamos países só de lista aberta, ou juntamos países só de lista fechada, dentro de cada um desses grupos há uma variação enorme. Fizemos um cálculo estatístico e essa variação é maior do que entre uma lista e outra. Por isto, inclusive, no meu entendimento, não se deveria subordinar uma posição em relação à lista a uma estratégia pontual de cotas. Essa discussão da forma como ela é feita – como se a lista fosse o mal ou o bem – não é fundada. Há vários fatores aí. E a lista depende do contexto. Estão em jogo não apenas as cotas, mas as formas melhores de se articular a representação política, o fortalecimento e a representatividade dos partidos frente ao eleitorado.

Que elementos você tem a apresentar sobre o sistema eleitoral e o voto distrital na perspectiva da eleição ou não de mulheres?

Clara Araújo – Há dez anos venho estudando essa questão. Comecei pelas cotas e venho me dedicando ao estudo da compreensão dos fatores que levam as mulheres a se elegerem e não se elegerem e a relação disso com as cotas. Na discussão de sistema eleitoral sempre há vários fatores e contextos.

No entanto, quando a causa é isolada, há um consenso de que os sistemas proporcionais são bem mais favoráveis não somente à eleição das mulheres como também à eleição dos outros grupos que não estão na elite. Isso é praticamente um consenso na literatura. Há inclusive um estudo envolvendo mais de 100 países, de Wilma Rule – de 1997, mas já foi readaptado em 2003 – em que ela analisa sistemas de voto proporcional, sistemas mistos (com uma parte proporcional e uma parte majoritária) e sistemas unicamente majoritários (como Inglaterra, Austrália). Ela faz um levantamento que mostra como os sistemas proporcionais são mais favoráveis à eleição de mulheres. E faz uma tipologia para defini-los. Proporcionais são sistemas “amigos das mulheres”. Mistos, “meio amigos” e, majoritários, os seus “inimigos”. E ela fala não apenas das mulheres, mas também dos grupos que não estão dentro do esquema do Estado.

No sistema distrital a chance das mulheres é diminuída. Há a tendência de esse voto – essa é uma discussão mais ampla – ser muito marcado pelo localismo. Ele perde muito de uma visão mais ampla, de programas mais amplos. Ele se torna muito marcado no distrito; muito clientelista. Com isso, há uma tendência de as pessoas já dominantes no distrito serem favorecidas. Os novos setores que estão chegando na política tendem a ser mais desfavorecidos. E os partidos, para não arriscarem perder aquele espaço já consolidado, tendem a resistir a deslocar ou colocar outras pessoas que não aquelas já eleitas e “seguras”.

A discussão sobre o sistema eleitoral em relação ao tipo de sistema – proporcional ou distrital – é mais séria do que a discussão sobre lista. Do ponto de vista de sistema eleitoral, o sistema distrital é altamente desfavorável à mulher, assim como é desfavorável a outros grupos não-dominantes.
O caso do México é interessante, porque adota o voto misto. A cota lá é para o majoritário e para o proporcional. Ela vai para os dois tipos de distrito. Existe um estudo, de Lisa Baldez, que mostra onde a cota foi aplicada e onde as mulheres se elegeram: na parte proporcional da eleição. A cota quase foi um fiasco na parte majoritária, porque a mulher não é indicada. Quando ela é indicada, normalmente, as chances de ela competir são muito desfavoráveis. Os dados mostraram claramente: as mulheres se deram bem no sistema proporcional, não no majoritário.

Adalberto Monteiro é jornalista e editor de Princípios. Edvar Luiz Bonotto é doutor em direito e membro da redação de Princípios

EDIÇÃO 89, ABR/MAI, 2007, PÁGINAS 31, 32, 33, 34, 35, 36, 37, 38