Há pouco tempo, de forma simplificada, a ordem neoliberal era caracterizada por um mundo unipolar financeiramente globalizado, hegemonizado pelos EUA, em grande ofensiva estratégica contra os povos e a maioria dos países do mundo. Hoje talvez seja mais apropriado ver o mundo como em que há um pólo principal hegemônico, onde se conformam rapidamente outros pólos e outras potências emergem, sobretudo a partir da Ásia. Parece abrir-se uma nova fase neste início de século, bem diferente da década de 1990, caracterizada por uma situação em que a hegemonia dos EUA é cada vez mais fortemente contestada por três vertentes: a luta dos povos pela soberania e pela paz, contra a ocupação no caso do Iraque e do Afeganistão; a luta de vários países em desenvolvimento, capitalistas e socialistas, pela soberania e pelo desenvolvimento econômico; e a luta de outras potências capitalistas por maior espaço econômico e geopolítico.

Um breve retrospecto do desenvolvimento da situação mundial pode ajudar a dar base à tese enunciada. Aproximadamente 30 anos após o fim da segunda guerra mundial teve início um processo de transformações significativas no sistema do imperialismo em escala mundial. Esgotados, os “anos dourados” do desenvolvimento do capitalismo no século XX começavam a dar lugar a uma situação muito mais complexa e inédita. Os acordos de Bretton Woods celebrados em 1944 – com a intenção de garantir a hegemonia dos EUA sobre o mundo capitalista e para “promover a expansão do comércio entre as nações e colocar o desenvolvimento a salvo das turbulências financeiras” (2) –, não eram mais capazes de conter uma situação em que fenômenos novos começavam a se impor.

Em meados dos anos 1970 a Alemanha e o Japão estavam no fundamental reconstruídos e já havia um grande volume de capitais excedentes acumulados à busca de alta lucratividade, cada vez mais difícil na esfera produtiva. As crises pouco profundas e a relativa estabilidade do sistema davam lugar a grandes turbulências. Os EUA já não podiam sustentar o padrão monetário ouro-dólar, fixo e plenamente conversível. Além disto, o keynesianismo então dominante, enquanto orientação econômica para um capitalismo regulado com intervenção estatal, já não era capaz de promover o desenvolvimento a taxas médias relativamente elevadas e tornou-se alvo a ser removido.

Com base nesta situação objetiva os EUA, maior potência imperialista, impuseram ao resto do mundo – através do FMI, do Banco Mundial e do Tesouro norte-americano, em benefício de sua oligarquia financeira –, um processo de mudanças cujo objetivo central era reforçar sua hegemonia. Acabaram com a conversibilidade do dólar em ouro e adotaram o câmbio flutuante dando origem a um novo padrão monetário, o chamado “padrão dólar-flexível” no qual “os títulos da dívida pública dos Estados Unidos se transformaram na base do sistema monetário, atuando como reserva e ativo financeiro de quase todos os governos do mundo” (3). O governo dos EUA desvalorizou sucessivamente o dólar para tornar suas exportações mais competitivas. Manipulou a seu bel-prazer taxas de juros. E, mais importante, construiu internamente um gigantesco mercado de capitais que colocou o país anos-luz à frente de qualquer outro país em termos financeiros.

Do ponto de vista de conjunto, o professor Belluzzo assim se refere às mudanças ocorridas, comumente chamadas de globalização financeira: “Nas últimas três décadas do século XX e no começo do XXI três movimentos centrais e interdependentes promoveram profundas transformações na economia global: liberalização financeira e cambial; mudança nos padrões de concorrência; alteração [desregulamentação] das regras institucionais do comércio e do investimento – todos conducentes ao reforço do poderio econômico americano” (4).

Grosso modo pode-se dizer ter sido nos anos 1980, após a transição da década de 1970, que o novo “sistema” neoliberal começou a funcionar a pleno vapor e a acumulação do capital adquiriu particularidades que François Chesnais, apoiado na teoria marxista, assim descreve: “O mundo contemporâneo apresenta uma configuração específica do capitalismo, na qual o capital portador de juros está localizado no centro das relações econômicas e sociais (…) Esse capital busca ‘fazer dinheiro’ sem sair da esfera financeira, sob a forma de juros de empréstimos, de dividendos e outros pagamentos recebidos a título de posse de ações e, enfim, de lucros nascidos de especulação bem-sucedida. Ele tem como terreno de ação os mercados financeiros integrados entre si no plano doméstico e interconectados internacionalmente” (5). Tornou-se comum, por todo o mundo, o recurso ao mercado financeiro como modo de financiamento das despesas públicas.

A resultante geral foi a predominância em larga escala do chamado padrão neoliberal de dominação e de acumulação no qual o poderio do imperialismo norte-americano fortaleceu-se enormemente – militar, econômica e ideologicamente – em detrimento da soberania das nações e do bem-estar dos povos, colocando em defensiva o movimento revolucionário mundial. Alguns países que resistiram à onda e insistiram na orientação socialista foram obrigados a fazer grandes concessões para sobreviver.

De outra parte, a ordem vigente naquela ocasião, de um mundo bipolarizado entre os EUA e a União Soviética – potências que encabeçavam a disputa entre os dois mercados então existentes e protagonizavam intensamente a chamada guerra fria – ruiu junto com a débâcle da URSS e do campo socialista que havia se conformado no pós-guerra. Com isto criaram-se as condições para o restabelecimento de um mercado mundial único e ampliado sob a hegemonia dos EUA.

Porém, na virada dos anos 1970 para os 1980, teve início na China uma nova estratégia de construção do socialismo que, hoje, passados quase trinta anos, resultou no que há de mais importante na situação internacional. Tendo como objetivo primeiro transformar a China em um país moderno e desenvolvido em médio prazo, adotou-se o “socialismo de mercado”, que mantém o socialismo como sistema dominante, mas promove igualmente o capitalismo regulado, sob variadas formas, aceitando inclusive em larga escala investimentos estrangeiros com a finalidade de desenvolver as forças produtivas e superar o atraso tecnológico. Para isto, o país passou a promover um movimento de reformas e abertura apoiando-se fortemente na centralidade do comércio exterior para a acumulação.

Marcas do mundo de hoje: lento declínio dos EUA imperialistas e rápida ascensão da China socialista

É nestas condições que a dinâmica do sistema dominante se expressa concretamente e vai expondo suas fraturas e contradições. Seus pólos econômicos mais importantes – os EUA, no centro dos países ricos e a China socialista, no centro dos países em desenvolvimento periféricos asiáticos – se assemelham, respectivamente, a algo que tem muito de parasita à fábrica do mundo. O funcionamento extremamente imbricado e interdependente nas esferas financeira, produtiva e comercial expõe tendências contraditórias do sistema “simultaneamente dinamismo e estagnação, avanço vertiginoso das forças produtivas em algumas áreas e setores combinados com a regressão em outras partes.

Mais do que nunca, a concorrência capitalista torna efetiva a sua razão interna, engendrando o processo de fusões e aquisições, ou seja, o monopólio” (6). Geograficamente falando, a expansão e o dinamismo se concentram fortemente nos chamados países emergentes ou em desenvolvimento, em particular da Ásia – mas não só – com destaque para a China e para a Índia (7).

Os países desenvolvidos desempenham o papel predominante na moeda e no mercado enquanto os países em vias de desenvolvimento dependem do mercado e das moedas fortes dos países desenvolvidos. Os países desenvolvidos podem emitir suas moedas fortes, comprar grandes quantidades de mercadorias baratas de países periféricos, manter o déficit comercial e apoiar-se em sua superioridade no mercado financeiro para recuperar os dólares e outras moedas fortes que os países em vias de desenvolvimento têm em suas mãos. Os países em vias de desenvolvimento investem seu superávit comercial acumulado em moedas fortes nos países desenvolvidos, principalmente nos EUA, comprando bônus norte-americanos, enquanto os Estados Unidos se apóiam na entrada destes fundos para compensar seu enorme déficit comercial, formando o circuito de valorização do capital global (8).

Esta dinâmica do processo econômico global que funcionou relativamente bem durante algum tempo, acabou por gerar graves desequilíbrios estruturais. Os números são alarmantes. O déficit da balança comercial dos EUA com o resto do mundo em 2006 atingiu a cifra recorde de US$ 818,1 bilhões, dos quais o componente principal foram os US$ 232,5 bilhões com a China (9). Já o déficit em conta corrente (10) atingiu US$ 856,7 bilhões, ou 6,5% do PIB americano. Para financiá-lo é preciso que os EUA atraiam do exterior de US$ 3 a US$ 4 bilhões todo dia útil, incluindo investimentos diretos e capital financeiro. Dessa forma, os EUA vão acumulando crescente dívida externa em termos líquidos (11).

No pólo da superpotência norte-americana, o crescimento econômico se dá mais como conseqüência do grande consumo e endividamento das famílias onde tem destaque o mercado imobiliário. Exponencial é o crescimento do mercado de capitais dos EUA, pivô interno e externo de sua economia que alcança hoje cerca de US$ 48,5 trilhões, aproximadamente quatro vezes o seu PIB – maior que o próprio PIB mundial e 1/3 do mercado financeiro global. Ele se expressa em grande variedade de papéis disponíveis, tanto públicos como das companhias e bancos. Processo semelhante se dá na Europa onde o mercado financeiro da Zona do Euro é de US$ 27 trilhões e cresce duas vezes mais rápido que o dos EUA (12). No final de 2006 existiam US$ 4,3 trilhões de US Treasury securities em poder do público dos quais US$ 2,2 trilhões em poder de estrangeiros, sendo que destes, 60% estão em poder de Bancos Centrais de outros países. E mais cerca de US$ 6,6 trilhões de US government agency securities em poder do público, dos quais US$ 1 trilhão nas mãos de estrangeiros (13).

No contraponto a esta situação, o PIB da China socialista tem crescido a taxas anuais de aproximadamente 10% já há quase 30 anos – o que, em curto espaço de tempo, fará com que passe da quarta posição para a terceira maior economia do mundo, superando a Alemanha pelo critério comparativo do câmbio corrente, já que pelo critério da paridade do poder de compra (PPC) fica hoje atrás somente dos EUA. Este espetacular crescimento se dá com taxa de inflação anual média menor que 2% já há alguns anos. Em breve, também, a China será a segunda maior nação do mundo em termos de comércio exterior. Em 2006 o país bateu recordes planetários em se tratando do superávit em conta corrente, avaliado em cerca de US$ 250 bilhões (14), e quanto às reservas internacionais, mais de US$ 1 trilhão. Os números impressionam pelo seu gigantismo. Só um exemplo: das 1,239 trilhão de toneladas métricas de aço produzidos no mundo durante 2006 a China entrou com a cota de 418,8 milhões de toneladas métricas – 3,6 vezes maior que a produção do Japão, o segundo colocado (15).

Nos últimos 300 anos a humanidade assistiu a grandes empuxos de desenvolvimento econômico, tais como a revolução industrial inglesa; o vertiginoso desenvolvimento dos EUA, depois da revolução burguesa oriunda da guerra civil finda em 1865; a industrialização e o grande desenvolvimento técnico e científico da URSS; ou ainda o “milagre” japonês do pós-segunda guerra. Mas, possivelmente, nada se assemelha à performance chinesa. Tanto que recentemente a insuspeita revista alemã Spiegel online registrou, em alentada matéria sobre o assunto, a opinião de um atônito sinólogo americano R. MacFarquhar: “Nunca antes foi criada tanta riqueza, por tanta gente, em intervalo de tempo tão pequeno” o que, segundo a revista, fará da China “uma superpotência econômica” apenas uma década e meia após a dissolução da União Soviética. Isto levou o periódico alemão a colocar a pergunta inevitável: “Depois de tudo o comunismo funciona?” (16).

A resultante desta espiral de complementariedades e disputas é que a China se fortalece enquanto os EUA, embora hegemônicos e com autonomia para emitir moeda forte, percorrem trajetória declinante.
Mas, além do aspecto econômico, a China desfruta de uma situação política estável, desenvolve intensos esforços de modernização de suas forças armadas e mostra um grande poder de articulação política e diplomática com o que expande sua influência. São exemplos:

a) A Organização de Cooperação de Xangai (OCX), sediada em Pequim, considerada pelos dirigentes chineses como “prioridade predileta da política exterior chinesa”, que passou a funcionar a partir de 2001, envolvendo além da própria China, de Rússia, Cazaquistão, Quirquistão, Tadjiquistão, Usbequistão, enquanto membros plenos, e mais quatro países na qualidade de observadores: Mongólia, Paquistão, Irã e Índia. Os países integrantes da OCX pretendem criar entre eles uma Zona de Livre Comércio e estão desenvolvendo grandes obras de infra-estrutura logística e energética (petróleo e gás) para integrá-los (17);

b) O acordo recente para a criação de uma Zona de Livre Comércio, com início de funcionamento previsto para 2007, envolvendo a China e os países integrantes da ASEAN (Associação de Nações do Sudeste Asiático): Brunei, Camboja, Cingapura, Tailândia, Laos, Malásia, Mianmar, Filipinas, Indonésia e Vietnã (país socialista de 84 milhões de habitantes, cujo PIB tem crescido cerca de 8% ao ano desde 2000);

c) As reuniões trilaterais de consulta regular e cooperação envolvendo China, Rússia e Índia; as amplas relações com países africanos onde a China tem em andamento 900 projetos de investimento e para onde enviou 80 mil trabalhadores (18); os acordos estratégicos com Chávez na área do petróleo e da siderurgia etc etc;

Há ainda outras boas novas

Embora os EUA imperialistas e a China socialista sejam os principais protagonistas da atual cena internacional, deve-se necessariamente levar em conta outros fatores e fenômenos:

1 – A situação da América Latina, onde forças progressistas conquistam novos governos pela via eleitoral e estes governos avançam em novos projetos, antiimperialistas no seu sentido geral. Fato altamente positivo é o reaparecimento da problemática do socialismo no cenário sul-americano, sob a forma de “socialismo do século XXI” na Venezuela chavista, perspectiva à qual poderão juntar-se os governos da Bolívia e do Equador. Estes três países adotam políticas mais claras de ruptura e confronto. Esta vertente combina-se com outras duas: o modelo argentino do presidente Néstor Kirchner e o agora mais definido projeto brasileiro de desenvolvimento com inclusão social oriundo da reeleição de Luís Inácio Lula da Silva para presidente do Brasil.

2 – A Venezuela e a Argentina crescem a altas taxas, de uns quatro anos para cá. A Venezuela – com o superávit do petróleo – passa a financiar vários projetos e obras de infra-estrutura pelo continente sul-americano, esforço também compartilhado pelo governo brasileiro. A experiência socialista cubana vai aos poucos se concretizando com sucesso, apesar de toda a pressão e cerco do imperialismo. Como efeito disto, Cuba se fortalece como referência ideológica continental da luta pelo socialismo. Através de marchas e contramarchas avança o processo de integração regional, por diversas iniciativas, destacadamente o Mercosul.

3 – As situações em rápida evolução da Rússia e da Índia. A Rússia mantém seu status de segunda maior potência nuclear e procura firmar-se depois de prolongada crise. A partir de 1998 seu PIB cresce a 7% ao ano tendo alcançado US$ 1 trilhão, o que a coloca no patamar de décima economia do mundo, equivalendo aproximadamente à economia do Brasil, da Coréia do Sul e da Espanha. Em março último detinha o terceiro maior volume do mundo em reservas internacionais: US$ 332 bilhões. O presidente Vladimir Putin faz sérias denúncias da política de expansão dos EUA, via OTAN rumo à Ásia (19), em resposta à qual o país volta a fabricar mísseis nucleares de médio alcance. Ademais, adota uma política de reestatização para setores estratégicos que haviam sido privatizados. A Índia, como seu 1,1 bilhão de habitantes, obteve crescimento médio do PIB nos últimos quatro anos até 2005 de 8% anuais e de cerca de 9,0% em 2006, tem US$ 180 bilhões de reservas e pequena dívida externa, adota o controle sobre as saídas de capital e não concede independência ao seu Banco Central (20).

4 – Alguns dos países chamados emergentes (entre os quais os exportadores de petróleo) têm hoje uma situação diferente em relação às suas dívidas externas – velho pesadelo, origem de agudas crises – que diminuem rápida e acentuadamente. Como grupo, estes emergentes passam a inverter uma situação de déficit para se tornarem superavitários em suas contas correntes. Em 2005, este superávit chegou a US$ 248 bilhões. De lá para cá aumentou. Entre outros se pode citar os casos de Nigéria, Rússia, Brasil, Argentina, Coréia do Sul, Indonésia, Filipinas, Índia e China (21). É ainda uma novidade o tamanho que algumas empresas destes países vão adquirindo. São grandes monopólios, estatais ou privados, que investem somas crescentes no exterior, disputam mercados com empresas de países desenvolvidos e chegam a adquirir concorrentes nestes países (22).

Toda esta situação provoca uma reação violenta por parte dos EUA. Apesar da derrota que estão a sofrer no Iraque e no Afeganistão eles mantêm centenas de milhares de soldados em mais de 700 bases militares espalhadas pelo mundo e mexem-se velozmente do ponto de vista geopolítico em direção à Ásia tendo como objetivo garantir suprimento de energia e conter a expansão da influência chinesa e russa, promovendo com isto uma nova guerra fria e provocando uma nova corrida armamentista. O instrumento utilizado é uma revigorada OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte), aliança militar liderada pelos EUA, que agora conta com a participação de 27 países, alguns dos quais ex-repúblicas socialistas. A principal ação imperialista dos EUA naquela região é a instalação de um poderoso sistema de mísseis defensivos – que também são ofensivos – nos territórios da República Tcheca e da Polônia, com o qual, a um só tempo, mantêm a Europa a seus pés e ameaçam diretamente a Rússia (23).

Algumas conclusões

1) Os desequilíbrios estruturais da economia dos EUA se aprofundam e vão se tornando insustentáveis, o que traz sérias ameaças à estabilidade da economia norte-americana e, pelo peso desta, à do resto do mundo. Os Estados Unidos passam exatamente agora por um processo de desaceleração que inclusive poderá redundar em nova recessão, repetindo 1991 e 2001. Inevitavelmente procurarão resolver seus problemas conjunturais e sistêmicos às custas de outros países. Não haveria, portanto, como evitar crises na tentativa de ajuste dos desequilíbrios. Uma maxi-desvalorização do dólar – apontada como solução pelos EUA – representaria um verdadeiro calote, acarretaria enormes perdas aos países que têm ativos denominados na moeda norte-americana, sobretudo a China e o Japão, além do que afetaria profundamente a produção e o comércio globais. É bom ter presente que várias crises ocorreram na seqüência de um período de exuberância (pletora) dos mercados financeiros.

2) Há na periferia do sistema países que se desenvolvem com políticas diferentes das propostas pelo mainstream. Há blocos comerciais contra-hegemônicos que se constroem com sucesso particularmente na Ásia, há novos credores e novos devedores, base econômica que aos poucos vai influenciando na repartição de poder no mundo (que se refletem inclusive em propostas de reorganização da ONU). O FMI, instituição multilateral fundamental ao esquema de dominação neoliberal dos EUA, é amplamente rejeitado e vai ficando ocioso. Embora tenha se encerrado um ciclo das crises na periferia iniciadas nos meados dos anos 1990 – que atingiu dezenas de países em desenvolvimento – eles ainda continuam vulneráveis e poderão sofrer as conseqüências desses processos.

3) Fato absolutamente inédito (depois do surgimento do imperialismo), e da maior importância na cena internacional, é a projeção de novas potências médias a partir da periferia do sistema – destacadamente a China socialista, a Rússia, a Índia – e, em menor escala, o Brasil. O espaço financeiro e comercial entre os EUA e a Ásia se agiganta. De outra parte, há em desenvolvimento original toda uma multiplicidade de relações Sul-Sul. Tudo isto representa uma nova geografia econômica mundial, base para o novo desenho político e diplomático que se esboça.

4) Na Europa, sob a liderança de países imperialistas, 13 países conseguiram avançar na integração de suas economias formando a chamada Zona do Euro, moeda cuja importância internacional crescente pode impedir movimentos unilaterais por parte dos EUA de brusca desvalorização do dólar, como em 1971, e no Acordo do Louvre, em 1985. Alguns destes países procuram expandir-se para o Leste (países ex-socialistas) e, ao mesmo tempo, buscam fortalecer suas relações com a Rússia, maior fornecedora de energia à região. No entanto, o projeto de uma Europa unida enfrenta certa paralisia do ponto de vista de sua integração política (Constituição européia) e não há contraponto considerável à dominância militar crescente dos EUA sobre a região via OTAN revigorada (24).

5) A vasta e riquíssima região, que vai do Oriente Médio até a Ásia Central, é o teatro da principal disputa geopolítica do mundo contemporâneo opondo países da região, o grupo de Xangai e outras articulações aos EUA.

6) A América Latina é, do ponto de vista político, um importante pólo de resistência ao imperialismo. O governo Lula e o povo brasileiro sintonizam-se com esta situação.

7) Com o fito de manter sua hegemonia e o mundo unipolar, os EUA usam cada vez mais a força militar, provocando uma situação de conflitos permanentes, de forma a manter o controle sobre importantes fontes de energia, a conter a luta contra-hegemônica e a tendência objetiva à formação de outros pólos. Mesmo derrotados nos países do Oriente Médio que estão sob ocupação de suas tropas, podem vir a agredir militarmente outros países da região, dos quais o Irã é o primeiro da lista. As pressões sobre a Rússia e China, econômicas e geopolíticas, tendem a crescer. Esta é a grande estratégia de Washington.

8) Fator importante das dificuldades que atravessam os EUA é que sua classe dominante não tem um apelo ideológico capaz de mobilizar a sociedade para a solução de seus problemas. Agarra-se tão somente à cultura do medo e ao discurso do combate ao terrorismo (25). O resultado é uma sociedade majoritariamente desinteressada onde “só entre um terço e metade dos adultos norte-americanos votam nas eleições nacionais” (26).

9) Mais pólos contra-hegemônicos, convivendo com o pólo hegemônico, significam maior polarização, maiores tensões e disputas e não o contrário. Esta é enfim a história da formação e da convivência entre potências no final do século XIX e na primeira metade do século XX. Vários analistas afirmam que o mundo passa por uma nova guerra fria e uma nova corrida armamentista.

10) Crescem entre os povos de diversos continentes a consciência patriótica e a luta pela paz, assim como a necessidade da defesa dos interesses nacionais por parte dos países que não estão no centro do sistema. Uma nova fase da luta pelo socialismo se apresenta concretamente na cena histórica, a partir do agravamento dos impasses e paradoxos do capitalismo contemporâneo, assim como do avanço das experiências socialistas atuais, destacadamente a chinesa.

Se se considera o neoliberalismo como o capitalismo dos nossos dias, a luta contra o neoliberalismo tem, em última instância, sentido anticapitalista, revolucionário. E a principal conclusão que se pode tirar de todo o quadro em tela é que hoje existem melhores condições para que a luta pelo socialismo seja vitoriosa.

Dilermando Toni é membro do Comitê Central do PCdoB ([email protected]).

Notas
1) Mais afeito ao acompanhamento dos problemas brasileiros, escrevo estas linhas sobre aspectos da situação internacional em continuidade
a minha recente palestra sobre o assunto. Aproveito a oportunidade de quando se completam 40 anos de minha militância comunista iniciada em 1967 nas fileiras da Ação Popular (AP) para dedicá-las aos que integraram aquela organização nas pessoas de “Raul, Zé Antônio, Dias e Melo” (Renato Rabelo, Haroldo Lima, Aldo Arantes e Ronald Freitas) que até hoje, coerentemente,
mantêm seu posto de combate na direção do Partido Comunista do Brasil.
2) Belluzzo, L. G. “As transformações da economia capitalista no pós-guerra e a origem dos desequilíbrios globais”, in Política Econômica em foco, Boletim semestral do Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica do Instituto de Economia da Unicamp, nov.2005/abr.2006. www.eco.unicamp.br/gerais/links.html
3) Fiori, José Luís. A nova geopolítica das nações e o lugar da China, Índia, Brasil e África do Sul.
4) Belluzzo, L. G. – obra citada.
5) Chesnais, François. “O capital portador de juros: acumulação, internacionalização, efeitos econômicos e políticos”. In A finança
mundializada, p. 35, Boitempo, 2005.
6) Belluzzo, L. G. – obra citada. Ver também a este respeito Barroso, S. “Leninismo X Antileninismo…”, Portal Vermelho, 21/03/2007,
www.vermelho.org.br, ou ainda, o ponto de vista de A. C. Macedo e Silva no artigo “A montanha em movimento: uma notícia sobre as transformações recentes da economia global”, segundo o qual: “Uma das poucas regras gerais que se aplicam à economia global é esta: a economia global se expande; mais bens, mais serviços, mais trabalho (…) [desde a crise de 29 quando houve contração no produto] o mundo tem crescido. O ritmo do crescimento, no entanto, varia de forma importante. Além disso, nem sempre o
que vale para o todo vale para suas partes: economias nacionais estão sujeitas a períodos, às vezes prolongados, de contração ou estagnação em termos de produto e emprego”, in Política Econômica em foco, Boletim semestral do Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica do Instituto de Economia da Unicamp, p. 43, nov.2005/abr.2006. www.eco.unicamp.br/gerais/links.html.
7) Ver o Trade and development report, Chapter I, Global imbalances as a systemic problem, UNCTAD, 2006, www.unctad.org ver
também o artigo da The Economist, “Emergentes revolucionam economia global”, publicado no Valor Econômico de 17/09/2006.
8) Sistematização feita no artigo “Análisis del desequilíbrio económico global”, no periódico chinês Diário do Povo, 09/02/20007.
9) Dados do Departamento de Comércio dos Estados Unidos (USTR), no National Trade Estimate Report, 3/03/07, www.ustr.gov/
10) No balanço em conta corrente soma-se a balança comercial (exportações menos importações de bens e serviços) à renda líquida
obtida no exterior pelas aplicações de residentes em ativos estrangeiros, mais a renda líquida do trabalho de residentes que
trabalham no exterior.
11) Dados do Bureau of Economic Analysis (BEA) – US Departament of Commerce, 14 de março de 2007. www.bea.gov
12) Dados citados por Fred Bergsten do Institute for International Economics em depoimento no Comitê de Orçamento do Congresso
dos EUA Why déficits matter: the international dimension, em 23 de janeiro de 2007. www.petersoninstitute.org.
13) Dados do Federal Reserve e do Departamento do Tesouro dos EUA.
14) O superávit em conta corrente chinês foi de uma média de cerca de 2% do PIB durante cinco anos até 2003, passou para 4% em 2004, para 7% em 2005 e para estimados 9% em 2006, dados citados por Michael Mussa em Global Economic Prospets 2007/2008: slowing to sustainable growth, p. 9, 4 de abril de 2007. www.petersoninstitute.org
15) International Iron and Steel Institute, World produces 1,239.5 mmt of crude steel in 2006, www.worldsteel.org
16) Ver matéria Does Communism work after all? De Andreas Lorenz e Wieland Wagner, Spiegel online, 27 de fevereiro de 2007.
www.spiegel.de/international.
17) Carmona, Ronaldo. “Organização de Cooperação de Xangai e a ‘tendência à multipolaridade’”, Portal Vermelho. www.vermelho.org.br
18) Fiori, J. L. – obra citada.
19) Ver o discurso de V. Putin O caráter indivisível e universal da segurança global pronunciado na Conferência de Munique sobre
Política de Segurança celebrada em 11/02/2007. www.securityconference.de.
20) Ver o artigo da The Economist “Economia da Índia ferve e já preocupa”, publicado pelo Valor Econômico, 08/02/07.
21) Ver o artigo de Joanna Chung do Financial Times, “Emergentes se livram da dívida externa”, publicado pelo Valor Econômico, 13/02/07.
22) Ver o artigo de Javier Santiso, ‘Emergência das multinacionais latinas”, Valor Econômico, 09/08/06.
23) Ver o artigo Putin and the Geopolitics of the New Cold War: Or, what happens when cowboys don´t shoot straight like they used
to, de F. William Engdahi. www.globalresearch.ca
24) Não deixa de ter certa razão o reacionário ex-funcionário do Departamento de Estado dos EUA, Robert Kagan, quando disse: “os
europeus descobriram que o poder econômico não se traduzia, brigatoriamente, em poder geopolítico e estratégico (…) de fato a década de 1990 não presenciou a ascensão de uma superpotência européia, porém o declínio ainda maior da Europa rumo a uma relativa fraqueza militar em comparação com os Estados Unidos”, Do paraíso e do poder, p. 25, Rocco, 2003.
25) O que preocupa até mesmo Zibgniew Brzezinski, ver artigo “Terrorized by ‘War on terror’”, Washington Post , 26 de março de 2007
26) Mann, Michael. O império da incoerência, a natureza do poder americano, p. 140, Record, 2006.
27) Dados da Organização Mundial do Comércio, World trade 2006, prospects for 2007, Risks lie ahead following stronger trade in 2006, WTO reports, 12/04/2007. www.wto.org
28) A este respeito consultar o relatório da UNCTAD.
29) Ver artigo de Fred Bergsten China and Economic integration in East Asia: implications for the United States, março de 2007, no qual ele chega a falar: “o problema sistêmico é o choque potencial entre uma Ásia liderada pela China e o ‘Oeste’ encabeçado pelos Estados Unidos, pela liderança da economia global”. www.petersoninstitute.org
30) O petróleo é, há muito, um bem estratégico. Para não ir muito longe basta lembrar os abalos da primeira crise do petróleo em 1974-75; da segunda crise do petróleo 1980-82 ou ainda da Guerra do Golfo em 1991 e a atual guerra do Iraque.
31) Dados da EIA (Energy Information Administration), Official Energy Statistics from the U.S. Government. www.eia.doe.gov/
32 Ver o artigo “Petrolíferas vivem novo equilíbrio de forças”, de Carola Hoyos do Financial Times publicado pelo Valor Econômico de 13/03/07, ou ainda o artigo “A nova era do petróleo estatal”, de Jean-Pierre Séréni, Le Monde Diplomatique, março de 2007, http://diplo.uol.com.br
33) Mann, Michael. O império da incoerência, a natureza do poder americano, p. 48, Record, 2006.

EDIÇÃO 89, ABR/MAI, 2007, PÁGINAS 44, 45, 46, 47, 48, 49, 50, 51