As vitórias da esquerda na América do Sul
“Sigan ustedes sabiendo que, mucho más temprano que tarde, de nuevo se abrirán las grandes alamedas por donde pase el hombre libre, para construir una sociedad mejor”. (Salvador Allende, Último Discurso, durante o bombardeio do Palácio de La Moneda, em 11 de setembro de 1973)
Parece surpreendente, mas todos os sinais indicam que os conservadores latino-americanos estão perdendo o rumo. Não sabem o que propor e não conseguem interpretar os acontecimentos históricos. Batem cabeça, negam os fatos, e multiplicam os neologismos para desqualificar as vitórias políticas e os avanços eleitorais das forças de esquerda, em toda a América Latina, desde o início do século XXI.
Durante a Guerra Fria, a esquerda foi sempre considerada e tratada pelos conservadores como uma força política coesa, e uma ameaça homogênea. Mas agora, se inventam a cada dia novas classificações e divisões entre os governos de esquerda que vêm sendo eleitos em todo o continente, como forma de diluir ou dissolver a força dos acontecimentos.
No início só se distinguiam “normais” e “equilibrados” de nacionalistas e populistas; mas agora o quadro se complicou e já se fala normalmente de uma lista enorme, variada e confusa, de governos: “a) moderados, b) radicais, c) do bem, d) do mal, e) demagógicos, f) refundacionistas, g) etno-sociais, h) modernos, i) espalhafatosos, g) anacrônicos, h) autoritários, i) pós-modernos, f) nacionalpopulares, g) pragmáticos, h) nacionaldesenvolvimentistas, i) raivosos, j) narcísicos, l) histriônicos, m) pré-históricos, e até, m) nazi-fascistas”. O estranho, quase divertido, é perceber a semelhança entre essas novas categorias e uma classificação milenar dos animais que aparece numa Enciclopédia Chineses, referida ou inventada pelo grande escritor argentino Jorge Luis Borges. Segundo Borges, os chineses dividiam os animais em: “a) pertencentes ao imperador, b) embalsamados, c) domesticados, d) leitões, c) sereias, d) fabulosos e) cães em liberdade, f) que se agitam como loucos, g) inumeráveis, h) que acabam de quebrar a bilha, i) que de longe parecem moscas, j) et cetera, l) incluídos na presente classificação, m) desenhados com um pincel muito fino de pêlo de camelo”. A diferença é que no caso da Enciclopédia Chinesa a confusão pode ser atribuída à Biologia da época, ou à imaginação de Borges. Mas no caso da esquerda latino-americana, e de suas vitórias eleitorais, não é provável que a culpa seja apenas da Ciência Política.
É perfeitamente compreensível alguns não gostarem do que está acontecendo. Mas qualquer observador mais atento e objetivo percebe estar em curso uma mudança importante na América Latina, uma mudança com relação à história da própria esquerda e de todos os sistemas políticos do Continente. Basta lembrar que neste início de século XXI, todas as vitórias da esquerda foram democráticas e massivas, por maiorias contundentes e com o apoio ativo de populações até hoje isoladas e “recluídas”, nas montanhas indígenas, no submundo urbano, e nos grotões do atraso e da dominação coronelista. Tudo isto, depois de 20 anos de ditaduras militares de direita, em quase todo o Continente, e mais 10 anos de governos neoliberais. Frente a isso, destaca-se como denominador comum desta nova onda de esquerda, na América Latina, sem dúvida nenhuma, a vontade massiva de mudar, a vontade de não voltar mais para trás, mesmo quando ainda não estejam claras as idéias e os caminhos imediatos do futuro. A esquerda latino-americana governou muito pouco, durante o século XX, e na hora da sua vitória, no início do século XXI, os socialistas e a social-democracia européia estão vivendo uma profunda crise de identidade. Por isso, surpreende neste momento não a imprecisão das idéias e dos projetos imediatos dos governos eleitos, mas a sua unidade em torno de um grande objetivo central: mudar definitivamente o rumo elitista, racista e subalterno da história latino-americana.
Assim mesmo, nos primeiros anos estes novos governos de esquerda da América do Sul pareciam condenados à mesmice, como se todos fossem prisioneiros perpétuos da “verdade científica” da economia neoclássica, e da “modernidade inevitável” das reformas neoliberais. A origem deste pesadelo é bem conhecida: na década de 1990, as teses neoclássicas e as propostas neoliberais se transformaram no senso comum dos governos, e de uma boa parte da intelectualidade sul-americana.
Foram os “anos dourados” das privatizações, da desregulação dos mercados, e da crença no fim das fronteiras e na utopia da globalização. Mas mesmo depois das derrotas dos neoliberais, os novos governos de esquerda, recém-eleitos, mantiveram o mesmo “modelo econômico”. Eles não tinham objetivos estratégicos próprios e sua política econômica seguia sendo a mesma dos governos anteriores. Mas este quadro começou a mudar, depois das nacionalizações do governo de Evo Morales.
Num primeiro momento, pareciam medidas pontuais e indispensáveis à fragilidade fiscal do governo boliviano. Mas depois, foi ficando claro tratar-se de uma ruptura mais profunda e estratégica com o passado neoliberal da Bolívia, e de um anúncio do novo projeto de “socialismo do século XXI”, que seria proposto, uns meses depois, pelo presidente Hugo Chávez, da Venezuela. E eis que de repente, não mais que de repente, acabou a mesmice e rompeu-se a “concertação por antagonismo” entre a “mão invisível” neoliberal, e a “esquerda pasmada”. Gostando ou não, assim ressurgiu, na América do Sul, a palavra e o projeto socialista, e depois disto, ao contrário do que muitos previam, a esquerda não se dividiu. Pelo contrário, clarificou a sua diversidade interna, e explicitou a multiplicidade dos seus caminhos sul-americanos. Como se pode ver, por exemplo:
1) No caso do projeto “socioliberal”, do governo chileno de Michelle Bachelet que vem modificando gradualmente o modelo econômico ortodoxo das últimas décadas, mas ainda se mantém muito distante do projeto socialista do governo de Salvador Allende. Assim mesmo, é cada vez maior o seu parentesco com as políticas da Frente Popular que governou o Chile entre 1936 e 1948, com o apoio de socialistas, radicais e comunistas, privilegiando as políticas de universalização “com qualidade”, dos serviços públicos universais de saúde e educação.
2) No caso do projeto de “new deal keynesiano”, do governo argentino de Nestor Kirchner, cada vez mais distante do “modelo econômico” do governo Menem. Depois da moratória argentina, o presidente Kirchner redefiniu suas relações com a “comunidade financeira internacional” e transformou em prioridade absoluta do seu governo a criação de empregos e a recuperação da massa salarial da população argentina, utilizando a fórmula clássica da social-democracia européia, da “concertação social”, para conter a inflação. Além disso, voltou a proteger a indústria, estatizou vários serviços públicos e lançou, recentemente, um programa de re-estatização opcional da própria Previdência Social.
3) No caso do projeto de “socialismo do século XXI”, anunciado pelo presidente Hugo Chávez, e apoiado pelos governos de Bolívia e Equador, retomam-se idéias e políticas advindas da Revolução Mexicana, e que fizeram parte dos programas de vários governos revolucionários ou nacionalistas do continente, culminando com a experiência de “transição democrática ao socialismo”, do governo de Salvador Allende, no início da década de 1970. Em todos os casos, o ponto central foi o mesmo: a criação de um núcleo produtivo estatal com capacidade estratégica de liderar o desenvolvimento do país, na perspectiva da construção de uma sociedade mais igualitária. Uma espécie de “capitalismo organizado de Estado”, onde convivam o grande capital estatal e o privado com as pequenas cooperativas da economia indígena, dentro de um sistema o comunal de participação democrática.
4) Por fim, no caso do “desenvolvimentismo com inclusão social”, do segundo governo Lula, suas primeiras medidas e propostas são muito claras: seu objetivo estratégico não é construir o socialismo, mas “destravar o capitalismo” brasileiro para que ele alcance altas taxas de crescimento capazes de criar empregos e aumentar os salários de forma sustentada, fortalecendo a capacidade fiscal de investimento e proteção social do Estado brasileiro. Com esse objetivo, o governo Lula retoma o velho projeto desenvolvimentista que remonta à década de 1930, e só interrompido nos anos 1990. Mas ao mesmo tempo quer criar uma vontade política através de uma grande coalizão social e econômica que reúna as várias vertentes do desenvolvimentismo brasileiro, conservadoras e progressistas, separadas durante a ditadura militar.
Resumindo: a ira e o desencanto dos liberais de direita e de esquerda têm sua razão de ser. De repente tudo mudou, e o cenário ideológico latino-americano ficou diversificado e repleto de idéias e propostas. Podem dar certo ou errado, mas não há como impugná-las, como vem acontecendo pelo simples fato de serem projetos antigos. Todas têm raízes profundas na história latino-americana, e não se pode dizer que fracassaram porque sempre foram interrompidas pelos golpes de Estado da direita liberal.
José Luís Fiori é professor de Economia Política Internacional no Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
EDIÇÃO 89, ABR/MAI, 2007, PÁGINAS 39, 40, 41