Financiamento público e listas partidárias: uma nova leitura
O sistema político brasileiro apresenta uma trajetória histórica com as marcas da exclusão e do conservadorismo, exigindo, nos dias atuais, profundas transformações, necessárias à harmonização entre a forma e o conteúdo de um novo perfil do nosso povo e da sua moderna capacidade de interferência na decisão dos destinos do País.
Um povo que, desobediente às ordens das elites, elege candidatos incompatíveis com a vontade absolutista imperante ao longo de mais de cinco séculos, requer sólidos partidos políticos e homens livres no exercício da política, mediante a introdução de ousados dispositivos que são indispensáveis a esse ajuste.
Tratamos, então, de enfrentar mais uma batalha decisiva no cenário que o presidente de honra do Partido Comunista do Brasil, João Amazonas, qualificava como encruzilhada histórica para o Brasil. Esse é um confronto que tem seus antecedentes.
Secular tradição
A primeira legislação eleitoral brasileira remonta aos primeiros anos após a Independência do Brasil e foi aprovada por D. Pedro I para regular a eleição de representantes à Assembléia Geral Constituinte de 1824.
Num processo tenso – que culminou na promulgação de uma Carta Constitucional outorgada pelo Imperador – simbolicamente iniciava-se uma secular tradição, segundo a qual as elites brasileiras e sua representação político-parlamentar tratavam de estabelecer um ponto de partida voltado para a subordinação da vontade coletiva aos seus interesses particularistas.
Desde a época do império formou-se, então, a cultura conservadora dos dispositivos excludentes, a exemplo do voto “censitário”, que limitava o direito de sufrágio aos grandes proprietários de terra, aos funcionários da Coroa e aos profissionais liberais que possuíam renda. Dentro desta lógica, voto e poder econômico nasceram intimamente articulados, de forma indisfarçável.
Com o advento da República, em 1889, foi instituído o voto direto para presidente e vice-presidente da República, a partir da Constituição de 1891. Elementos que poderiam representar avanços em relação ao sistema político e à legislação eleitoral do Império foram desvirtuados pela rede de interesses que iria caracterizar a chamada “política do café-com-leite” vigente em toda República Velha (1889-1930). A primazia do interesse econômico e político sobre as classes subordinadas foi reinstituída pela via do “voto de cabresto“ e dos “currais eleitorais” – símbolos da natureza fraudulenta de processos eleitorais que significaram, numa longa vigência histórica, o referendo institucional ao poder das elites locais.
Liberdade na Constituição
Quando a República se preparava para comemorar um século, o País saía de uma longa ditadura (1964-1985) pelos méritos de um povo afeito à luta em defesa das liberdades democráticas. E, malgrado a ação das suas tradicionais elites, que lograram reproduzir uma transição negociada, ingressa numa nova fase de seu desenvolvimento político.
A ausência da efetiva ruptura, com a efetivação das premissas de uma Assembléia Nacional Constituinte livre e soberana, entretanto, não impediu um momento culminante como o da Constituinte de 1988, no qual, apesar da intervenção reacionária do chamado “Centrão”, a livre organização dos partidos foi inscrita na Carta Magna.
Essa vitória do nosso povo passou a ser um lastro fundamental no confronto com as persistentes iniciativas voltadas para o recrudescimento do entulho autoritário da ditadura – na tradição inaugurada pelo excludente conservadorismo na vida política do País: mais adiante, no crepúsculo do ano de 2006, no dia 7 de dezembro, essa direita sofrerá sua segunda grande derrota após a reeleição de Lula para a Presidência, quando o pleno do STF (Supremo Tribunal Federal) rejeitou a cláusula de barreira, reafirmando o soberano dispositivo constitucional da liberdade de organização partidária.
No entanto, a mesma persistência conservadora recrudesceu a luta contra velhos ou mais recentes obstáculos. Com o avanço das lutas populares e da conseqüente ampliação da democracia, os modos de interferência O sistema político brasileiro apresenta uma trajetória histórica com as marcas da exclusão e do conservadorismo, exigindo, nos dias atuais, profundas transformações, necessárias à harmonização entre a forma e o conteúdo de um novo perfil do nosso povo e da sua moderna capacidade de interferência na decisão dos destinos do País.
Um povo que, desobediente às ordens das elites, elege candidatos incompatíveis com a vontade absolutista imperante ao longo de mais de cinco séculos, requer sólidos partidos políticos e homens livres no exercício da política, mediante a introdução de ousados dispositivos que são indispensáveis a esse ajuste.
Tratamos, então, de enfrentar mais uma batalha decisiva no cenário que o presidente de honra do Partido Comunista do Brasil, João Amazonas, qualificava como encruzilhada histórica para o Brasil. Esse é um confronto que tem seus antecedentes.
Secular tradição
A primeira legislação eleitoral brasileira remonta aos primeiros anos após a Independência do Brasil e foi aprovada por D. Pedro I para regular a eleição de representantes à Assembléia Geral Constituinte de 1824.
Num processo tenso – que culminou na promulgação de uma Carta Constitucional outorgada pelo Imperador – simbolicamente iniciava-se uma secular tradição, segundo a qual as elites brasileiras e sua representação político-parlamentar tratavam de estabelecer um ponto de partida voltado para a subordinação da vontade coletiva aos seus interesses particularistas.
Desde a época do império formou-se, então, a cultura conservadora dos dispositivos excludentes, a exemplo do voto “censitário”, que limitava o direito de sufrágio aos grandes proprietários de terra, aos funcionários da Coroa e aos profissionais liberais que possuíam renda. Dentro desta lógica, voto e poder econômico nasceram intimamente articulados, de forma indisfarçável.
Com o advento da República, em 1889, foi instituído o voto direto para presidente e vice-presidente da República, a partir da Constituição de 1891. Elementos que poderiam representar avanços em relação ao sistema político e à legislação eleitoral do Império foram desvirtuados pela rede de interesses que iria caracterizar a chamada “política do café-com-leite” vigente em toda República Velha (1889-1930). A primazia do interesse econômico e político sobre as classes subordinadas foi reinstituída pela via do “voto de cabresto“ e dos “currais eleitorais” – símbolos da natureza fraudulenta de processos eleitorais que significaram, numa longa vigência histórica, o referendo institucional ao poder das elites locais.
Liberdade na Constituição
Quando a República se preparava para comemorar um século, o País saía de uma longa ditadura (1964-1985) pelos méritos de um povo afeito à luta em defesa das liberdades democráticas. E, malgrado a ação das suas tradicionais elites, que lograram reproduzir uma transição negociada, ingressa numa nova fase de seu desenvolvimento político.
A ausência da efetiva ruptura, com a efetivação das premissas de uma Assembléia Nacional Constituinte livre e soberana, entretanto, não impediu um momento culminante como o da Constituinte de 1988, no qual, apesar da intervenção reacionária do chamado “Centrão”, a livre organização dos partidos foi inscrita na Carta Magna.
Essa vitória do nosso povo passou a ser um lastro fundamental no confronto com as persistentes iniciativas voltadas para o recrudescimento do entulho autoritário da ditadura – na tradição inaugurada pelo excludente conservadorismo na vida política do País: mais adiante, no crepúsculo do ano de 2006, no dia 7 de dezembro, essa direita sofrerá sua segunda grande derrota após a reeleição de Lula para a Presidência, quando o pleno do STF (Supremo Tribunal Federal) rejeitou a cláusula de barreira, reafirmando o soberano dispositivo constitucional da liberdade de organização partidária.
No entanto, a mesma persistência conservadora recrudesceu a luta contra velhos ou mais recentes obstáculos. Com o avanço das lutas populares e da conseqüente ampliação da democracia, os modos de interferência do poder econômico sobre os modernos processos eleitorais se diversificaram, com o fito de influenciar a decisão do eleitor mediante a transformação de candidatos em “produtos” de marketing e a própria eleição num fenômeno midiático movimentado a fantásticas somas em dinheiro.
É esse o ambiente onde se verifica a correlação de forças em que os interesses econômicos dominantes forçam acirradas disputas com relação aos direitos do povo no processo de escolha de seus representantes – em especial o direito de exercer livremente o seu voto – que se deve discutir a reforma política e, em seu núcleo, questões relacionadas à defesa, soberania e ampliação desses direitos.
Nesse confronto, as forças avançadas apresentam novas propostas que visam redesenhar os alicerces e a edificação de um novo sistema político no País.
Renhida trajetória
Entre as questões examinadas na rota de uma reforma política em nosso País – um tema recorrente, com maior ou menor força a cada início de legislatura, por vezes pautado pelas apreensões da direita ou a cada flutuação da governabilidade, na verdade uma pauta relevante para os que pugnam pela maior participação popular –, o financiamento público exclusivo de campanhas e a lista pré-ordenada, que envolvem mudanças na legislação ordinária, apresentam especial importância pela influência que devem exercer na consolidação da democracia representativa, contemplando um largo espectro de problemas, da isonomia financeira e lisura dos pleitos ao fortalecimento dos partidos políticos.
No trabalho desenvolvido pela Comissão Especial de Reforma Política da Câmara dos Deputados, em 2003, essas questões mereceram relevante destaque, inclusive pelo consistente investimento político realizado na construção de acordos e definição de prioridades, com uma ênfase que envolveu os debates realizados na imprensa e no Congresso Nacional no período recente – e pela abrangência que incorporou propostas oriundas do Senado Federal.
Naquele momento, os comunistas persistiram em sua atuação no sentido de influir no rumo da reforma política em marcha no âmbito do Congresso Nacional, do mesmo modo que estiveram atentos à postura do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso que levou à sanção da Lei 9.096 pelo seu então vice, Marco Maciel, em 1995. Na linha das conversações mantidas com o deputado Ronaldo Caiado, relator da Comissão de 2003, debateram e apoiaram a aprovação de um substitutivo do deputado Marcelo Barbieri à PEC (proposta de emenda à Constituição) 446, de 2005, do deputado Ney Lopes.
O substitutivo assimilou projetos de lei em estágio mais avançado, em tramitação na Câmara, prevendo a implementação, para as eleições de 2008, das listas preordenadas nas eleições proporcionais; do financiamento público de campanha; das federações partidárias (em substituição ao instituto das coligações proporcionais); da redução da cláusula de barreira (aqui limitada ao perfil de dois por cento dos votos nacionais); do controle dos gastos eleitorais e de limites à divulgação de pesquisas. Aperfeiçoava, assim, o Projeto de Lei 2679, da referida Comissão Especial, conhecido como “projeto Caiado”.
Financiamento X poder econômico
Na linha do que afirmamos em recente artigo publicado nesta mesma revista Princípios (1), em nossa História verifica-se uma forte tendência restritiva à livre existência dos partidos políticos (e ao sufrágio dos brasileiros), de um modo que a gradual ampliação do leque de agremiações (e quanto ao direito ao voto), com o interregno de pelo menos duas longas ditaduras, resultou de muitas lutas experimentadas pelo nosso povo – que se converteram em conquistas sempre questionadas pela elite conservadora em nosso País. De um modo tal, que a existência do Partido Comunista do Brasil ou o voto dos analfabetos, dos negros, das mulheres, entre outras vitórias, são frutos de uma suada trajetória na qual a exclusão foi a regra e a inclusão foi sempre exceção.
Pela ótica desse enquadramento histórico, apresentamos, então, algumas informações e idéias preliminares para um debate que expõe o financiamento público e o voto em listas pré-ordenadas enquanto propostas voltadas para a construção de um sistema político subordinado aos interesses da sociedade brasileira, mediante a defesa de uma progressiva ampliação de direitos. Esses dois aspectos, mantidas as conquistas democráticas, a exemplo das coligações ou federações partidárias, representam medidas de profundo significado para uma reforma política democrática no Brasil.
O financiamento público implicará – mais que a ultrapassagem das fronteiras do Fundo Partidário, que contribui hoje para a manutenção das agremiações políticas, estendendo-o às campanhas eleitorais – uma positiva reviravolta no atual sistema político. Em sua modalidade exclusiva, as doações privadas serão vedadas e as disputas eleitorais tornar-se-ão mais competitivas com a expectativa de fragilização do fenômeno do caixa dois. É uma medida que, aqui, não se confunde com a crença – que deve ser examinada à luz da secular cultura que ronda o voto e da legislação pertinente – de que essa prática será abolida pelo simples exercício da vontade parlamentar.
A defesa desse mecanismo não emerge da convicção de que o financiamento público removerá definitivamente causas e seqüelas de uma longa trajetória relacionada a desvios de conduta e prática de corrupção, promovendo a extinção por decreto da influência do poder econômico nas eleições, com o fim das doações ilegais. A proibição puramente legislativa de fontes privadas de financiamento – das quais o poder econômico não pretende abrir mão pelo temor dos (novos) revezes e pela necessidade intrínseca da (re)conquista de espaços de poder, cargos e maiorias – não pode ser confundida ou compreendida como uma panacéia para todos os males eleitorais do capitalismo.
Entretanto, vedar seu livre uso (e abuso) significa um substancial avanço no sentido de superar o risco maior da perpetuação do atual quadro e dos retrocessos possíveis com o prolongamento de sua vigência. Essa defesa, portanto, é parte integrante da batalha pela reforma política democrática – enquanto face visível da luta de classes em curso no Brasil – quando procura introduzir na legislação os aspectos que favorecem as forças avançadas rumo à conquista das suas metas estratégicas.
Não há acaso, portanto, quando a direita conservadora, sua mídia e seus financiadores privados se opõem enfaticamente ao financiamento público das campanhas eleitorais. Pois, sua menor liberdade converter-se-á em maior liberdade para o nosso povo, na medida em que se enfraquecem seus meios de interferência hostis à prosperidade da vida democrática no Brasil.
A aprovação dessa modalidade de financiamento representará um duro golpe em suas pretensões, privando-a legalmente de uma significativa arma na preservação do status quo – a qual, pela via da mais perversa subordinação das massas e do clientelismo, seja pela aquisição e manutenção de milícias seja pela compra do voto, atrasou e postergou longamente o desenvolvimento do País.
Dimensão democrática
A adoção desse tipo de financiamento será mais proveitosa para a democracia, visto que os partidos e candidatos poderão ainda guardar uma maior independência quanto aos financiadores privados, implicando na redução da influência do poder econômico nas eleições; em maiores dificuldades para “compra” de vagas nas casas parlamentares; numa mais efetiva transparência dos gastos, a partir da avaliação mais rigorosa das receitas e despesas; na expectativa de redução dos custos de campanha, pois somente serão admitidos num patamar de legalidade os recursos da União.
Esse dispositivo, em suma, facilitará a fiscalização e atenuará a influência do grande capital nas disputas eleitorais.
Por essas razões, é possível pensar o financiamento público como um investimento na democracia e em parlamentos mais democráticos, pela via da neutralização da influência das elites e financiadores privados, e de um determinado nivelamento nas disputas eleitorais, propiciando as condições que favorecem o crescimento dos partidos históricos ou de esquerda.
Nesse horizonte, as propostas de financiamento público possuem a referida dimensão legislativa que deve prover com recursos públicos o custeio de despesas dos partidos – e, simultaneamente, as campanhas eleitorais, no caso do financiamento exclusivo.
Os recursos destinados às agremiações (que podem ser oriundos de isenções fiscais, acesso privilegiado a bens públicos, recursos do OGU) já existem na forma do acesso gratuito dos partidos e candidatos ao rádio e à televisão, de acordo com as leis 9504/97 e 9096/95 (que custa estimativamente R$ 1 milhão em impostos não recolhidos pelas empresas difusoras); do Fundo Partidário, que se restringe basicamente a dotações orçamentárias da União, de acordo com os votos recebidos por cada legenda, previstas na Lei 9.096/95. As propostas mais efetivas buscam elevar o valor das dotações ao Fundo Partidário.
Entre as duas mais relevantes estão: (1) a do financiamento público misto, quando ocorre a elevação substancial das dotações orçamentárias da União nos anos eleitorais, admitindo-se aos partidos e candidatos a adoção de outras fontes de recursos; e (2) a do financiamento público exclusivo, quando é explicitamente vedada a busca de recursos fora da esfera pública para o custeio das campanhas eleitorais – opção da Comissão Especial da Câmara que apresentou o PL (projeto de lei) 2769/2003 (2).
De acordo com este PL, a lei orçamentária deve estabelecer dotação equivalente ao número de eleitores em 31 de dezembro do ano precedente, multiplicado por R$ 7,00 (sete reais). Tais recursos devem ser rateados – ainda com as devidas reservas quanto à disparidade, que merece reparos – entre os partidos políticos à base de: (a) 1% igualitariamente entre todos os que possuem estatutos registrados no TSE; (b) 14% igualitariamente entre os partidos e federações com representação na Câmara dos Deputados; e (c) 85% divididos proporcionalmente ao número de representantes que os partidos elegeram na última eleição geral para a Câmara dos Deputados.
Listas: outra centralidade
Aqui encontramos a contribuição do fortalecimento partidário, tornando os gastos de campanha balizados pelo financiamento público mais concentrado na organização partidária, modificando o perfil eleitoral mediante a eliminação da centralidade voltada para as candidaturas individuais. Hoje, as pessoas são a instituição, substituindo a ênfase nos partidos políticos e seus programas.
No caso da lista pré-ordenada – conhecida também como “lista fechada” – teremos assim uma mudança significativa, pois o eleitor voltará mais sua atenção para os programas e propostas dos partidos, que balizarão as idéias e opiniões veiculadas pelos candidatos.
Uma mudança com esse perfil encontrará algumas sinuosas resistências conservadoras que especulam acerca de um esvaziamento da mais estreita relação entre eleitor e representante, e fragilização do vínculo entre os dois protagonistas eleitorais; da persistência das facilidades que viabilizam a compra de lugares na lista pelas candidaturas do poder econômico; do poder dos chefes partidários no preenchimento das listas com favorecimento de apadrinhados, vedando o evento de novas lideranças; além do espaço para a exacerbação dos conflitos partidários na ocasião da definição dessas listas.
São essas, entretanto, situações que constam no sistema atual e que as mudanças tendem a superar, ao invés de conservar.
E, a propósito desse debate, salientamos que o voto de legenda é reconhecido instrumento do sistema proporcional adotado entre nós, o qual jamais foi contestado em sua legitimidade e constitucionalidade.
Partidos mais fortes
Além disso, a nova situação poderá também pressupor uma alteração na tradicional relação de dependência, em especial a material e financeira, entre eleitor e candidato, e um maior engajamento militante na vida partidária e de massas, pois a representação parlamentar estará condicionada à presença dos filiados às agremiações nas listas eleitorais.
Esse fenômeno fortalecerá os partidos, visto que a opção do eleitor voltar-se-á para o programa e suas propostas, com o interesse e ênfase voltados para a resolução dos problemas concretos do nosso povo. Entre outros aspectos, esse dispositivo reduzirá os custos das campanhas pela mencionada via da opção partidária, ao submeter a publicidade pessoal dos candidatos àquela instância, facilitando inclusive a fiscalização e controle de gastos pela Justiça Eleitoral – que, como enfatiza o PL 2.769/03, ao invés das auditorias em milhares de contas dos postulantes a vereador, deputado estadual e federal, limitará suas preocupações à contabilidade das agremiações.
Em síntese, de acordo com o novo sistema proposto, os partidos apresentarão listas previamente ordenadas e os candidatos serão chamados na ordem em que foram registrados. Trata-se de um mecanismo bem diferente do atual, no qual, ao votar na legenda, o eleitor contribui com seu voto para definir o número de cadeiras destinadas ao partido sem exercer influência na precedência dos eleitos. No novo sistema proposto pelo PL 2.679/03 o voto na legenda respaldará os candidatos do partido em sintonia com a ordem (previamente) definida.
Algumas propostas para a adoção de listas pré-ordenadas tramitam também desde o início como projetos de lei e com a pretensão de alterar o Código Eleitoral. Entre as proposições discutidas, as variações se apresentam quanto ao modo pelo qual os partidos ordenariam as listas.
Na proposta da Comissão da Reforma Política, a ordem será definida nas convenções partidárias, mediante o voto secreto dos convencionais nos postulantes, que balizará o ordenamento da lista pela votação obtida por cada um deles. Na Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania da Câmara dos Deputados surgiu outra proposta, segundo a qual os convencionais votariam em chapas e a ordem da lista obedeceria à proporção de votos de cada uma delas. Adiante, veremos outras alternativas adotadas no mundo.
Com o modo de ordenação das listas inscrito na legislação, o que se pretende é a definição de um método democrático que impeça o livre arbítrio de oligarquias partidárias na composição da ordem dos candidatos, como ocorre hoje. Embora a novidade das listas pré-ordenadas seja estranha aos costumes políticos do País – onde sempre vigorou a lista aberta –, na maioria dos países (3) que adota o sistema proporcional há um predomínio das listas pré-ordenadas, que levam o eleitor a uma opção partidária. Apenas o Brasil, a Finlândia, a Polônia e o Chile adotam listas abertas, de acordo com as quais os partidos recorrem aos “puxadores de voto” que podem ou não se identificar com seus programas.
A experiência dos países que optaram pelo método do voto em lista não enfatiza a impessoalidade do voto: a formação dessas listas expõe naturalmente as lideranças mais expressivas – nas primeiras posições –, facultando ao eleitor a opção pelos candidatos mais identificados com suas convicções.
Noutro ângulo, a adoção desse sistema diminuirá o controle das oligarquias, com o estímulo para a permanência e luta pela democracia interna, enquanto a troca de partido é a opção mais comum para a insatisfação dos candidatos e filiados no sistema atual.
Opção pela alternância
É necessária ainda a atenção do legislador para um fato gritante: as mulheres têm sido, política e juridicamente, excluídas do cenário político-eleitoral em todo o mundo. No entanto, a correção desse absurdo requer amplitude das ações afirmativas a outros instrumentos e processos que ultrapassam a esfera do sistema eleitoral, considerando-se, sobretudo, a democratização da representação política e a ampliação dessas ações no âmbito da reforma política como lutas avançadas e progressistas da sociedade.
Pensamos que pelo menos 30% – e no máximo 70% – das vagas na lista pré-ordenada devem ser preenchidos por cada sexo, como ocorre hoje no sistema de lista aberta. No entanto, na lista fechada, o ordenamento da lista passará a ser o aspecto essencial, uma vez que os primeiros são os mais prováveis eleitos. Assim, é muito importante que seja previamente definido o lugar na lista segundo o critério de sexo.
Nesse sentido, duas experiências são de grande relevância por sua efetividade: 1) o sistema de cotas na Argentina, adotado em 1991, prevê que a lista fechada de candidatos para as eleições na Câmara dos Deputados deve ser organizada pelo critério de alternância, no qual se evita mais que duas pessoas consecutivas do mesmo sexo; e 2) o sistema de paridade, adotado nas eleições municipais de 2001, na França, a partir da lista fechada que assume a alternância eqüitativa entre homens e mulheres.
Valorização dos partidos
A proposta das listas pré-ordenadas surge, desse modo, ao lado do financiamento público exclusivo, como um meio adequado para a superação dos fundamentos responsáveis pela fragilidade dos partidos políticos brasileiros – oriunda, em especial, da ação histórica e antidemocrática da direita conservadora –, pois parte do princípio de que tais organizações são elementos fundamentais no processo democrático e que seu fortalecimento é a substância do processo político. Desse modo, entre outros aspectos, será possível substituir os arranjos partidários individuais por estruturas estáveis nas negociações que envolvem os interesses do País e de seu povo.
Tais mudanças, enfim, valorizarão os partidos como instâncias especiais de promoção política e a sua responsabilidade no trato do financiamento e na montagem das listas demandará o aprofundamento de práticas democráticas.
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Inácio Arruda é senador da República (PCdoB-CE).
Modalidades de lista
Destacamos algumas iniciativas de sistematização. Segundo o professor Giovanni Sartori (4), “a relação dos processos representativos envolve duas fases: entre os eleitores e os partidos, e entre os partidos e sua representação”. O relacionamento entre eleitores e os que devem representá-los, admite, então, duas modalidades: (a) o eleitor vota no candidato ou (b) no partido de sua preferência.
Nos sistemas majoritários, via de regra o eleitor vota no candidato. Em significativa fatia dos sistemas proporcionais, o eleitor vota nos partidos. Mas existe também a alternativa, como ocorre no Brasil, segundo a qual o cidadão pode votar no partido ou no candidato.
De acordo com a conceituação de Josep M. Vallès e Agustí Bosch (5) o voto na lista admite quatro modalidades (6): (a) “Voto de lista fechada e bloqueada. O eleitor expressa seu apoio a uma lista de candidatos, sem alterar sua composição ou manifestar preferência entre eles. Noruega, Israel, Portugal e Espanha encontram-se entre os países que adotam esta modalidade de voto”. (b) “Voto de lista fechada e não bloqueada. O eleitor expressa seu apoio a uma lista de candidatos, na qual pode assinalar alguma ordem de preferência entre os nomes nela contidos. Segundo determina a legislação, essa opção pode afetar todos os componentes da lista, alguns ou um deles — que se distingue entre os demais. Em todo caso, é a lista e não o candidato que se beneficia da decisão do eleitor. Esta modalidade é vigente na Bélgica, na Dinamarca, na Suécia, entre outros países”. (c) “Voto de lista aberta. O votante pode assinalar não só uma ordem de preferência entre os membros da lista, como também pode eliminar um ou alguns nomes dela. Só não pode é incluir qualquer nome que dela não conste. Esta é a modalidade usada na Áustria”. (d) “Panachage. Em francês, ‘mistura’ ou ‘combinação’. O eleitor pode eliminar nomes de uma lista e substituí-los por nomes de outra lista ou por candidatos independentes. Equivale à elaboração de uma lista própria de cada votante. Para alguns autores essa modalidade é diferente do voto de lista. É a alternativa da Suíça”.
Notas
(1) Arruda. Inácio. “A Cláusula Udenista”. Princípios n. 85.
(2) Entre outras proposições tramitam no Congresso Nacional: o PL 2679/03 (da Comissão Especial da Câmara), com um Substitutivo de autoria do deputado Rubens Otoni; e o PL 4593/01 (do Senado Federal), prevendo o financiamento público exclusivo.
(3) Entre esses há alguns países com a tradição de Áustria, Bélgica, Holanda, Suécia, Dinamarca, Irlanda, Portugal, Espanha, Grécia, Turquia, Israel; na América Latina, Argentina, Uruguai, Costa Rica, Nicarágua, República Dominicana, Honduras e El Salvador, entre outros.
(4) SARTORI, Giovanni. Elementos de Teoria Política. Alianza Editorial. Madrid, 1992
(5) VALLÉS, Josep M. e BOSCH, Agusti. Sistemas Electorales y Gobierno Representativo. Barcelona, Editorial Ariel, 1997, p. 111.
(6) Tradução do original italiano; verbete Sistemas electorales.
EDIÇÃO 89, ABR/MAI, 2007, PÁGINAS 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18