A reforma política é um tema recorrente na história brasileira. A cada crise, a cada CPI, todos dizem: “o Brasil precisa de uma reforma política”. E alguns chegam a dizer que ela é a mãe de todas as reformas. Superado cada momento desses, ela cai no esquecimento e só retorna na próxima crise.
O Brasil tem passado por muitas mudanças, mas o nosso sistema político-eleitoral perdura, acumulando vícios e distorções. Continua a impedir a consolidação dos partidos, estimulando a corrupção, e favorecendo a influência do poder econômico no processo eleitoral.

No meu entendimento, não existe um sistema político-eleitoral perfeito. Cada sociedade vive o seu processo e em momentos determinados realizam suas alterações, buscando corresponder a suas necessidades. Uma reforma política deve beber na fonte da academia, mas ao final será sempre uma obra da política.

Em uma sociedade que busca consolidar a democracia, a reforma política deve consertar os defeitos do sistema e ampliar a participação da população no processo político.

O tema é abrangente e polêmico. Cada um tem sua reforma na cabeça. Geralmente, a mídia entra neste debate, reforçando uma visão mais conservadora e autoritária. Aproveita-se do senso comum de que nosso sistema tem muitos defeitos para apresentar soluções que restringem a democracia: cláusula de barreira, fundo partidário apenas para os grandes e fidelidade partidária. Visam com isso à existência de apenas três ou quatro partidos, como se o nosso problema fosse a pluralidade da sociedade brasileira.

Com um diagnóstico errado não temos boas soluções. Qual é o nosso problema? Quais são nossos defeitos?

No Brasil as eleições são muito caras, a disputa é desigual, com forte influência do poder econômico. Apresenta um elevado grau de corrupção na administração pública, parte dela canalizada para alimentar os altos custos das campanhas. Os partidos são frágeis, pouco representativos, sem referência, uma mera exigência da legislação, sem compromisso programático – e isso estimula o troca-troca partidário. Estes fatores combinados dificultam uma melhor representação da população.
Os grandes partidos, em geral, defendem o status quo. Falam em reforma política, mas pretendem apenas mudanças pontuais para favorecê-los. Querem uma reserva de mercado, criando dificuldades para os outros.

Queremos uma reforma ampla e democrática. Neste artigo me aterei ao que considero a espinha dorsal da reforma: voto uninominal versus lista pré-ordenada, financiamento público, federação partidária, coligação, cláusula de barreira, reeleição e participação popular.

Voto uninominal

No Brasil o eleitor vota em um nome, tanto para o Executivo (majoritária) quanto para o Legislativo (proporcional). Isso na eleição para governador, prefeito ou presidente é assim mesmo. Mas em relação às Câmaras Municipais, Assembléias Legislativas e Câmara Federal, os eleitores estão formando bancadas, representações partidárias, com as quais mais se identificam. No voto nominal (uninominal), o eleitor é levado a se identificar individualmente com o candidato – a pessoa – e não com a representação e orientação partidária que sustentam a candidatura. Sendo assim, o parlamentar procura incessantemente a visibilidade pessoal, própria, particular, para justificar o voto recebido e para credenciar-se novamente como futura opção do eleitor.

Por saber que não precisa defender o programa do partido, nem justificar nada, nesta lógica, mais vantajoso é diferenciar-se, distinguir-se, e quanto pior o ambiente, mais reluzente será sua distinção. Acaba assim regido pela concepção de mostrar que os outros não prestam, mas que ele é bom.
Para isso cada um precisa de uma máquina bem equipada para lhe permitir chegar aos eleitores. É necessário buscar destaque para ser notícia, é indispensável botar a cara em frente às câmeras, encher as colunas de jornais com notinhas, montar estrutura para o próximo pleito. Por qual partido? Depende, por onde for mais conveniente, afinal o eleitor não está muito preocupado com isso – salvo uma pequena parcela.

Com o passar dos anos este sistema vem agravado nossas distorções, não permitindo o fortalecimento dos partidos. Esta lógica trabalha contra a seriedade programática, impede a coerência e transforma boa parte dos nossos políticos em ciganos partidários.
Com este sistema, surge sempre uma pergunta de resposta muito difícil: a quem o parlamentar deve fidelidade? À categoria ou ao partido a que pertence e pelo qual se elegeu? Em determinadas matérias, se ele votar com a categoria é razoável ser rejeitado pelos militantes e por seu partido. Se ele votar com o partido, é compreensível que boa parte da categoria prefira votar em outro da próxima vez. E então como deve ser?

No caso concreto da hipótese apresentada, se alguém é militante de um partido, foi eleito com este programa, deve estar com o partido. E esses eleitores têm o direito de não se sentirem mais representados por este partido. Escolher outro para votar. Assim seria coerente, o partido é favorecido e o programa valorizado. Por outro caminho, nem uma coisa nem outra. Contudo, o voto uninominal não permite tal postura, pois dessa forma esse candidato será derrotado até mesmo por um outro do seu próprio partido, que espera um passo em falso para destruí-lo. Esta é a dura realidade da política brasileira. No geral, o seu adversário não está na corrente oposta, e sim na sua própria. O seu correligionário, ou aliado, é o seu concorrente. Ele precisa subtrair seus votos para tentar ficar numa posição superior na relação dos mais votados.

Em uma campanha chega-se ao cúmulo de um candidato com força em uma categoria ou em uma região, não permitir que outros candidatos do seu partido ou coligação usem da palavra em eventos por ele organizados. Para evitar que outro ali tenha votos que deveriam ser seus. Ou seja, o voto uninominal traz o gene da discórdia para os partidos, da disputa individual, transformando-os em organizações de muitos grupos, mais parecidos às amebas, que só se multiplicam pela divisão.

Esta mentalidade eleitoral retira dos partidos a busca por coerência e criatividade. Não se inova em programas, cria-se muito pouco. Com essa regra vigente, uma pessoa não vence pelos seus méritos, mas se desmoralizar o outro. A disputa é para atingir a credibilidade de outros e ganhar por exclusão. É isto que a mídia quer; é isto que é notícia. Esta é a prática recorrente. Frágeis partidos, pobre democracia!

Contudo, a solução não é simples, o eleitor brasileiro não exige fidelidade partidária, na sua maioria ele nem liga muito para partido – e isto estimula infidelidade. No mandato passado mais de 220 deputados federais mudaram de partido. E nesta legislatura, com três meses de mandato, mais de 40 já trocaram suas agremiações partidárias.

A lista pré-ordenada

A solução para esse quadro é a lista pré-ordenada. Ela acaba com esta bagunça partidária, encerra o troca-troca, e inicia um processo de fortalecimento dos partidos, criando uma dinâmica interna que trará vida programática, existência real e democracia.

A lista pré-ordenada substitui o voto uninominal, o eleitor vota em uma lista de nomes determinada pela convenção partidária (há várias maneiras de confeccioná-la), disposta em ordem decrescente de prioridades. Ela seria uma mudança profunda no nosso sistema eleitoral e traria uma série de conquistas:

1º) Como a lista terá um peso importante, todos vão querer aproximar-se do partido. Ajudar a organizá-lo, construir e estruturar diretórios e núcleos, difundir sua doutrina, debater o seu programa e levá-lo para toda sociedade. Todos vão querer vida interna nos partidos, eles serão valorizados e fortalecidos. As reuniões terão audiência e serão importantes. As convenções preparadas com critérios para serem realmente democráticas. Algumas garantias de democracia na sua elaboração poderão inclusive ser colocadas na própria lei.

2º) A lista induzirá, de maneira positiva, à fidelidade partidária. Não por decreto, nem por mecanismos autoritários, mas sim por compromisso programático e convivência com a militância. Acabando o troca-troca, pois, é razoável perceber, que alguém que mude muito de partido terá dificuldade para a elaboração da lista. Como diz a sabedoria popular: Quem pega o ônibus atrasado, nem sempre consegue lugar na janela.

3º) Para que a lista do seu partido receba uma quantidade maior de votos e assim obtenha resultado mais favorável, é necessário dialogar com a sociedade, falar com o povo, e cada partido irá mobilizar todas as lideranças para atrair mais eleitores. Acaba a guerra interna e se desenvolve a valorização dos membros com algum prestígio. Como se pode verificar, a lista, ao contrário do voto uninominal, traz o gene da união, da unidade e da construção.

4º) A lista é uma exigência da realidade para a implantação do financiamento público exclusivo de campanha. Sem ela este não é possível. Com eleição em lista será feita uma campanha institucional do partido. Não será necessário repartir os recursos entre os candidatos individualmente (imagine o critério e a confusão), ela permitirá acompanhamento dos gastos durante a campanha, e poderá ter transparência. Do contrário, como seria dividido esse dinheiro? Com quanto fariam campanhas os detentores de mandato? Quanto seria destinado para os outros? Como o candidato faria quando o dinheiro acabasse? Todos que recebessem dinheiro fariam realmente campanha? Quem se responsabilizaria pela prestação de contas? Ou seja, só a lista viabiliza o financiamento e torna as campanhas mais baratas.

5º) A lista pode alterar a cultura de que o principal "partido" é a família. Alguns, para combater a lista, argumentam que ela pode se transformar numa coisa familiar. Talvez seja justamente o contrário. Hoje no sistema uninominal é que é assim. Em cada cidade, em cada estado, estão aí os exemplos. A lista procura atacar a raiz do problema: hoje há compromisso dos eleitos com seus apoiadores no plano pessoal, portanto sujeito a mudanças repentinas. Existe sempre o risco de "traição". Logo o eleito resolve montar outro projeto, e seus assessores começam a fazer intriga com o antecessor. Até parece uma regra. Justamente por isso vários prefeitos preferem perder para o rival a fazer um sucessor – pois este levará consigo, ao romper, parte de seu grupo, deixando-o fragilizado. Para prevenir-se, quem está na cadeira, procura ser substituído por "pessoas confiáveis", em geral, os seus familiares ou pessoas próximas. Visam com isso diminuir a chance de serem traídos. No voto uninominal é assim. Hoje é assim. A lista pré-ordenada é uma chance para se enfrentar as causas do problema, diminuindo, ao menos, a "oligarquização" da política. Com a lista, quem montar uma chapa familiar, terá muita dificuldade de obter votos no restante do estado. A tendência será o contrário, a busca de candidatos com representatividade política para angariar mais votos e eleger mais candidatos.

6º) A lista é a maior contribuição no combate à influência do poder econômico no processo eleitoral. Ela faz um ataque radical à mercantilização do voto. Ela acaba com a motivação individual para se investir dinheiro na campanha. Atualmente alguns candidatos com muito dinheiro (seja qual for a origem), valem-se disso e realizam acertos com prefeitos, ex-prefeitos, vereadores, e lideranças para contar com o apoio destes e tornarem-se os candidatos mais votados do partido ou da coligação. Ou seja, com muita estrutura (dinheiro) é quase certa a eleição, porque os concorrentes de menor estrutura são cercados e derrotados. Com a lista esse poder econômico é estéril, já que não produzirá mudança na posição relativa da lista. Esta lógica do voto uninominal é que nivela todos por baixo e faz os partidos se interessarem mais por estrutura do que por programa.

7º) A lista combaterá os denominados partidos de aluguel sem restringir a democracia. Isto ocorrerá porque um partido sem sustentação social e sem referência programática, terá muitas dificuldades para formar chapas se tiver de formatar uma ordem na lista. Em médio prazo estes partidos serão inviáveis. Sem proibição, sem barreira. Sobreviverá quem tiver representatividade.

Financiamento público

A influência do poder econômico nas eleições é um dos pontos fundamentais que precisamos enfrentar, combater e derrotar. A eleição será tanto mais democrática quanto menor for a influência financeira no resultado da peleja.

No Brasil temos uma das eleições mais caras do mundo. Com o financiamento público a disputa será mais igual e transparente. Será do conhecimento de todos o volume de recursos usado na campanha. Isto possibilita o controle pela sociedade, pela justiça eleitoral, e até mesmo pelos adversários, durante a própria campanha e não apenas no final dela. Seguramente a janela da corrupção na política é aberta na campanha eleitoral. Hoje até mesmo no campo da esquerda é preciso dinheiro para disputar, e isto é maléfico para o nosso processo político. Numa campanha, atualmente, cresce a chance de mistura entre interesse privado e interesse público. Uma situação perigosa que deve ser evitada. Nosso sistema eleitoral precisa oferecer oportunidade aos honestos de assim continuarem, sem perder completamente a possibilidade de disputar a eleição. Nossa democracia, embora jovem, já mostrou que entra governo sai governo, os problemas permanecem, é como se fosse uma outra regra. Para mim, isto reflete um problema sistêmico que precisa ser enfrentado. Não está ligado somente às pessoas.

O financiamento público em um país com tantas desigualdades, deficiências e injustiças, parece contraditório, mas não é. A vida já mostrou que o sistema atual sai mais caro para o contribuinte, pois, por vias transversas, o dinheiro público escoa pelos ralos da corrupção e vai financiar às escondidas as campanhas eleitorais. Precisamos de financiamento público, saudável e transparente. Com controle e fiscalização, com a proibição do financiamento privado. Para o bem das instituições e da democracia.

Federação

Ganha força no Congresso Nacional a proposta de criação da figura da Federação Partidária – uma espécie de coligação mais duradoura, mais permanente, que sobrevive mesmo depois da eleição. Para isso a Federação deverá ser formada entre partidos que tenham afinidade programática. A Federação será nacional e poderá atuar como uma "Agremiação Partidária" inclusive nas eleições e no funcionamento parlamentar. Este mecanismo, combinado com a lista pré-ordenada, poderá diminuir o número de candidatos e aglutinar algumas forças políticas, tornando a disputa mais compreensível aos olhos dos eleitores.

Coligações partidárias

Os grandes partidos defendem o fim das coligações, pois, para eles, elas oferecem sobrevida aos partidos médios e pequenos. Os grandes querem ficar sozinhos e julgam que sem coligações todos necessitarão lançar candidatos próprios em todos os níveis. Em vários estados se sentirão sem condições, e em médio prazo procurarão os grandes. Esta é a questão estratégica por trás da proposta.

No Brasil não temos partidos grandes, mas partidos maiores e menores, uma comparação relativa – pois até mesmo o PT teve apenas 18% dos votos em seu melhor resultado para a Câmara dos Deputados. Em 2006 elegeu apenas 16,7% dos deputados federais; 14,8% dos senadores e em 2004 apenas 7,66% dos prefeitos. Em uma eleição majoritária muitas vezes alguns se sentem representados por um candidato de outra legenda, por julgá-lo habilitado para o cargo. Isto aconteceu recentemente na eleição de Lula para presidente e na eleição de Aécio Neves para governador de Minas, apenas para citar dois exemplos.

Lógico, se alguém apóia um candidato majoritário de outro partido, este é o seu palanque nesta eleição. A majoritária é a eleição que mais mobiliza. Portanto se é possível apoiar um candidato de outro partido, a coligação deve ser também uma possibilidade. Vale ressaltar que ela não é impositiva. Só será feita se todos quiserem.

Cláusula de barreira

O Brasil precisa de mais democracia, não menos. Nossa Constituição assegura o principio da liberdade de expressão e de organização partidária. Nós que lutamos tanto por democracia não devemos aceitar passivamente nenhuma medida que restrinja a liberdade de imprensa, a liberdade religiosa, nem a liberdade política. Lamentavelmente os chamados grandes partidos investiram contra a democracia através da cláusula de barreira. Felizmente em decisão memorável, o Supremo Tribunal Federal decidiu contra este absurdo, por unanimidade, dizendo que a pretexto de regulamentar o princípio constitucional, os partidos grandes negaram-no.

Mas, eles, novamente se preparam para mudar a própria Constituição e negar a liberdade de organização partidária, através da PEC do senador Marco Marciel – que coloca, agora, a cláusula de barreira na Constituição. Nova guerra se aproxima. Vamos lutar para que esse tema seja tratado na reforma política e não de maneira isolada como ele pretende. E vamos lutar com toda força para assegurar a pluralidade política da sociedade brasileira.

Reeleição

A legislação brasileira sempre proibiu a reeleição. Ela surgiu no Brasil no final do primeiro governo de Fernando Henrique, com o objetivo de consolidar o projeto neoliberal. Teve uma tramitação contestada no Congresso Nacional e permitiu que FHC, governadores e prefeitos fossem reeleitos. Mais recentemente o presidente Lula e outra geração de governadores e prefeitos também.

Depois de realizadas cinco eleições com possibilidade de reeleição, a conclusão é de que pelas particularidades no nosso sistema, instável e sem partidos fortes, a reeleição cria praticamente uma obrigação nos detentores de cargos de novamente se candidatarem, agravando os vícios da administração pública brasileira, retardando nossa renovação política e quebrando o dinamismo do nosso processo eleitoral.

No meu entendimento, o fim da reeleição fará bem ao Brasil e estimulará a renovação dos quadros políticos e administrativos. Quanto à duração do mandato, ele poderá continuar com 4 anos, contudo pode ser analisada a possibilidade de 5 anos sem reeleição.

Participação popular

A reforma política deixou de ser feita na legislatura passada porque faltou um componente decisivo: a sociedade não entrou neste debate nem pressionou pela reforma, prevaleceu assim a lei da inércia.
Precisamos de uma reforma democrática que estimule a participação da população no processo decisório. Um dos caminhos para isso é baixar o número de assinaturas exigidas para apresentação de projetos de iniciativa popular, para tornar viável este instrumento. Devemos também estudar mecanismos que aumentem a realização de plebiscitos e referendos, aprovados pelo Congresso, para buscar a participação direta da população em torno de temas relevantes para o país.
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Renildo Calheiros é deputado federal (PCdoB/Pernambuco), líder da bancada de seu partido na Câmara dos Deputados e vice-presidente nacional do Partido Comunista do Brasil.

EDIÇÃO 89, ABR/MAI, 2007, PÁGINAS 6, 7, 8, 9, 10, 11