O cenário financeiro internacional tem apresentado, nas últimas décadas, um perfil de extrema volatilidade que, em determinados momentos, afeta a economia real, levando a quedas da demanda, da produção e do emprego. Esta volatilidade excessiva decorre diretamente das feições financeiras atuais que incluem a internacionalização dos fluxos de capitais. As finanças contemporâneas caracterizam-se pela concentração e a universalização das instituições financeiras, por um forte aumento das operações especulativas e por uma intensa utilização da alavancagem na incessante busca pela rentabilidade mais elevada. O uso de volumes extraordinariamente elevados dos instrumentos derivativos é parte integrante desta caracterização, tanto por constituírem um instrumento privilegiado de especulação quanto por embutirem uma elevada alavancagem em seus mecanismos.

Essas inovações financeiras são relativamente complexas. Para descrevê-las o mais claramente possível é necessário recorrer a uma comparação com as operações de compra e venda de bens e serviços. Transações de bens e serviços podem ser realizadas à vista ou, ainda, para entrega e pagamento futuros. As primeiras nos são mais familiares, pois as praticamos no nosso dia-a-dia. As segundas envolvem os bens por encomenda, que podem incluir desde uma roupa ou um móvel sob medida até, muito mais importante, encomendas de bens de capital (máquinas etc). Nessas, o preço final, o prazo para entrega e o pagamento – salvo um eventual sinal prévio – são definidos de antemão.

Os mercados de derivativos financeiros apresentam uma estrutura similar a essas operações para entrega e pagamento futuros. Empregando diversos mecanismos (futuros, opções, swaps etc) ativos financeiros – como divisas, ações, títulos que rendem juros – também podem ser negociados para entrega e pagamento futuros. Os preços negociados nos mercados de derivativos refletem, no tempo (ou seja, normalmente embutem um prêmio que tende a se aproximar da taxa de juros para o período), os preços vigentes no mercado à vista.

É a existência concomitante de mercados à vista e de mercados para vencimentos futuros com diversos mecanismos que torna possível a realização de operações de cobertura de riscos (hedge). Com efeito, um exportador que irá receber uma quantia determinada de dólares num prazo determinado pode, através do uso de derivativos, vender esses dólares a futuro, garantindo assim seu faturamento em reais. Já o importador que precisa pagar os produtos comprados do exterior pode comprar divisas para futuros pagamento e entrega, fixando desta forma os preços desses produtos em reais. Decerto, esse importador poderia também comprar essas divisas no mercado à vista, mas teria de pagar integralmente por elas. Ao utilizar os derivativos ele só paga, no presente, um pequeno sinal e não precisa dispor do dinheiro cash ou, se já o possuir, pode aplicá-lo a juros até o vencimento da operação com divisas. Em função da possibilidade de cobertura de riscos microeconômicos os derivativos financeiros são apontados por alguns economistas como um elemento de estabilização financeira.

Entretanto, é importante sublinhar que os riscos assim cobertos não desaparecem do sistema, só são transferidos para outros que aceitam assumi-los. Assim, paralelamente a esta função de cobertura de riscos, os mercados de derivativos financeiros tornaram-se o palco privilegiado da especulação por duas razões principais. A primeira advém do fato de, à medida que negociam ativos para entrega e pagamento futuros, esses instrumentos permitirem operar comprando uma mercadoria ou um ativo que não se deseja receber e/ou vendendo a descoberto algo que não se possui de antemão. Basta para isto a operação ser liquidada antes do vencimento ou o instrumento utilizado não prever a entrega do ativo no vencimento, mas apenas sua liquidação financeira. Nessa, a parte com prejuízo paga à parte com lucro a diferença financeira entre a cotação do mercado à vista no dia do vencimento e a cotação previamente acordada entre eles. As operações de compra ou de venda dos especuladores constituem apostas sobre os níveis de preços. Eles compram um ativo cujo preço esperam ver subir, ou vendem quando antecipam que seu preço venha a cair, com o objetivo de realizar lucros. Este lucro especulativo pode ser realizado tanto em mercados em alta, quanto em mercados em baixa, desde que as expectativas sobre a direção dos preços estejam corretas.

A segunda razão está relacionada à sua característica de permitir operar volumes elevados com apenas um pequeno desembolso na hora da realização do negócio. Denominada de alavancagem, ela amplia consideravelmente as possibilidades e os resultados da especulação. A alavancagem pode permitir resultados espetaculares, multiplicando os investimentos, mas podem também originar prejuízos teoricamente ilimitados, sem a possibilidade de dimensioná-los a priori. Um dos feitios próprios a esses instrumentos é justamente a “democratização” do acesso aos mecanismos de alavancagem que, anteriormente, eram reservados às instituições financeiras que alavancavam seus recursos próprios ao captar depósitos e outras formas de recursos junto ao público para emprestá-los.

O acesso amplo, geral, e quase irrestrito, a operações com alavancagem parece ser uma das principais razões para que os mercados de derivativos sejam apontados como fator de elevação do espírito especulativo dos agentes e de agravamento da instabilidade do sistema financeiro. Através do recurso aos mercados de derivativos, as operações com alavancagem deixam de ser privativas de instituições financeiras, em princípio bem informadas e conscientes do peso de suas decisões, e passam a ser acessíveis a todos que – com ou sem conhecimento de causa – dispõem de alguns recursos financeiros. A utilização de um forte grau de alavancagem na gestão de carteiras financeiras alcança níveis muito elevados em épocas de volatilidade relativamente normal dos preços dos ativos.

Mas, em momentos de crise, a liquidez dos mercados costuma cair e o esforço dos gestores de carteira para reduzir sua alavancagem pode constituir um fator adicional de pressão sobre os preços dos ativos.

Mas, os derivativos financeiros compartilham de outros fatores comuns que devem ser ressaltados. Um deles é o fato de eles nascerem do encontro de um comprador e de um vendedor, não existindo um estoque predeterminado de títulos emitidos. A liquidez dos mercados de derivativos financeiros depende, pois, exclusivamente da divergência de opiniões entre os participantes. Um mercado será tanto mais líquido quanto mais houver vendedores e compradores. Basta, por um evento fortuito, formar um consenso sobre a direção de preços e a liquidez deixará bruscamente de existir, ocasionando o fim das transações ou sua drástica redução. Os mercados desses ativos passam a ser considerados “completos” e “profundos” à medida que contam com mecanismos distintos nas negociações para diferentes temporalidades e que esses mecanismos apresentam liquidez elevada, permitindo assumir ou liquidar uma operação rapidamente e a baixos custos. O emprego concomitante de mercados à vista e mercados para vencimentos futuros com diversos mecanismos passou a ser parte integrante da gestão de carteira contemporânea, seja para cobrir riscos, seja para efetuar operações de arbitragem ou de especulação.

Os derivativos financeiros partilham também uma crescente desmaterialização, acentuada pelo fato de muitos dos mais recentes derivativos financeiros se referirem a “ativos virtuais” como os índices de valores ou um índice de catástrofes (naturais ou não) em que se fazem apostas sobre o montante de desembolsas das seguradoras em função de sua ocorrência em maior ou menor grau ou ainda os referentes à probabilidade de inadimplência dos tomadores de crédito. Por fim, é notável o fato de os derivativos constituírem um jogo de soma zero em que as somas perdidas por uns correspondem exatamente às ganhas por outros, se excetuarmos os custos de transação. Eles não criam riqueza, apenas a redistribuem entre os participantes. No agregado, só é possível ganhar, nos mercados de derivativos, os valores perdidos por outros participantes. A única riqueza criada nesses mercados é constituída pelas corretagens e os emolumentos às Bolsas pagos por todos os participantes, quer tenham tido ganhos, quer tenham tido perdas em suas operações.

Sua expressão contábil é bastante específica e reflete igualmente a virtualidade desses instrumentos. O balanço de toda empresa, financeira ou não-financeira, dá no ativo a imagem do que é possuído e no passivo do que é devido. Reflete assim as operações em curso tendo uma incidência no patrimônio. Mas as operações em curso não resumem toda a atividade da empresa; esta também é constituída por promessas e compromissos futuros por ela contraídos, ou recebidos de terceiros, que não têm – ou só têm parcialmente – incidência no patrimônio atual embora venham a tê-la no futuro. Esses compromissos e promessas futuros não podem ter, então, um registro contábil no balanço. No que concerne aos mercados de derivativos financeiros, enquanto a operação está em curso a escrituração contábil só consegue captar as somas efetivamente desembolsadas ou recebidas para que esta tivesse início (e, em alguns casos, prosseguimento), mas é impotente para mensurar os compromissos financeiros futuros potenciais ou efetivos implícitos na operação. Esses compromissos são registrados em contas especiais ditas “fora de balanço”.

Para uma parte das empresas industriais e comerciais o volume das contas fora de balanço permanece ainda marginal. Em compensação, o volume dessas contas teve um considerável crescimento nas instituições financeiras, frequentemente ultrapassando em muito os montantes inscritos em balanço. Segundo dados oficiais do governo americano, o valor no vencimento dos derivativos no portfólio dos bancos comerciais americanos atingiu US$ 131 trilhões no último trimestre de 2006. Esses contratos de derivativos estavam altamente concentrados, com os cinco maiores bancos representantes dos 97% desse total. O primeiro colocado, o JP Morgan Chase Bank, administrava uma posição em derivativos que embutia uma exposição ao risco de crédito (risco da contraparte) correspondendo a 742% de seu capital. Este elevado grau de concentração dos contratos em poucos bancos introduz problemas potenciais de fragilidade financeira. Nos mercados de opções de taxas de juros e de derivativos de crédito, por exemplo, apenas um banco americano detinha 1/3 das posições globais (não apenas americanas) – o que introduz um risco sistêmico de enormes proporções.

Outros agentes empregam igualmente elevados volumes de derivativos em suas operações. È, notadamente o caso dos hedge funds que se tornaram conhecidos por sua participação em diversos episódios de instabilidade financeira – como os ataques especulativos contra a libra esterlina em 1992, as moedas dos países do sudeste asiático em 1997 ou o real brasileiro – em particular em 2001 e 2002. Os hedge funds são fundos de investimento fechados, normalmente organizados como sociedades privadas e, freqüentemente, localizados offshore por razões fiscais e de regulamentação. O estilo extremamente agressivo de gestão de recursos, com farto recurso à alavancagem, foi lançado por eles. Os mecanismos da concorrência têm levado um número crescente de administradores de carteiras (inclusive fundos mútuos de investimento e investidores institucionais como fundos de previdência e seguradoras) a empregar esse novo estilo de gestão de recursos com o objetivo de maximizar os rendimentos.

Tornou-se paradigmático o episódio envolvendo o Long Term Capital Management (LTCM) em 1998. Este hedge fund especializado em sofisticadas operações de arbitragem e gerido por dois prêmios Nobel de Economia em função de seus trabalhos sobre derivativos – Myron S.Scholes e Robert H. Merton – só se salvou da falência em 1998 graças a uma decisiva atuação do Federal Reserve americano. O LTCM operava alavancando ao extremo os recursos de sua clientela com operações de derivativos financiadas por recursos emprestados pelos grandes bancos. Em finais de agosto de 1998, o LTCM detinha posições que, no vencimento, equivaleriam a US$ 1.525 bilhões, comparados com um capital de seus cotistas que não superava US$ 4,8 bilhões! As perdas do fundo chegaram a 90% do capital de seus cotistas. Como resultado do caso do LTCM, um relatório sobre o fato ao presidente americano recomendou encontrar mecanismos que restringissem a alavancagem excessiva, considerada como um ingrediente explosivo, porque “ao elevar a possibilidade de problemas em uma instituição financeira poderem ser transmitidos a outras instituições, a alavancagem pode aumentar a probabilidade de uma derrocada geral do funcionamento dos mercados financeiros”. Mas, nove anos depois, nenhuma medida neste sentido foi adotada.

Dada a acentuada interdependência dos mercados em escala nacional e internacional em função das medidas de liberalização dos fluxos de capitais, perturbações nos preços de um mercado particular podem propagar-se a outros, com imprevisíveis conseqüências. Já foi constatado o papel negativo da volatilidade financeira em inúmeras ocasiões. O relatório de abril de 2007 do Fundo Monetário Internacional alerta para uma nova elevação dos riscos financeiros em escala global. Se tais riscos potenciais se concretizarem, as atuais características das finanças globais acima descritas tenderão a agravá-los decisivamente.

Maryse Farhi é professora-doutora do Instituto de Economia da Unicamp e pesquisadora do Centro de Estudos sobre Conjuntura e Política Econômica.

EDIÇÃO 89, ABR/MAI, 2007, PÁGINAS 52, 53, 54, 55