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    Comunicação

    Idéias íntimas*

    Ossian – o bardo, é triste como a sombra Que seus cantos povoa. O Lamartine É monótono e belo como a noite, Como a lua no mar e o som das ondas… Que pranteia eternas monodias. Tem na lira do gênio uma só corda, – Fibra de amor e Deus que um sopro agita! Se […]

    POR: Álvares de Azevedo

    11 min de leitura

    Ossian – o bardo, é triste como a sombra
    Que seus cantos povoa. O Lamartine
    É monótono e belo como a noite,
    Como a lua no mar e o som das ondas…
    Que pranteia eternas monodias.
    Tem na lira do gênio uma só corda,
    – Fibra de amor e Deus que um sopro agita!
    Se desmaia de amor… a Deus se volta,
    Se pranteia por Deus… de amor suspira,
    Basta de Shakespeare. Vem tu agora,
    Fantástico alemão, poeta ardente,
    Que ilumina o clarão das gotas pálidas
    Do nobre Johannisberg! Nos teus romances
    Meu coração deleita-se… Contudo,
    Parece-me que vou perdendo o gosto,
    Vou ficando blasé: passeio os dias
    Pelo meu corredor, sem companheiro,
    Sem ler, nem poetar… Vivo fumando.
    Minha casa não tem menores névoas
    Que as deste céu d’inverno… Solitário
    Passo as noites aqui e os dias longos…
    Dei-me agora ao charuto em corpo e alma:
    Debalde ali de um canto um beijo implora,
    Como a beleza que o Sultão despreza,
    Meu cachimbo alemão abandonado!
    Não passeio a cavalo a não namoro,
    Odeio o lasquenet… Palavra d’honra!
    Se assim me continuam por dois meses
    Os diabos azuis nos frouxos membros,
    Dou na Praia Vermelha ou no Parnaso.

    II

    Enchi o meu salão de mil figuras:
    Aqui voa um cavalo no galope,
    Um roxo dominó as costas volta
    A um cavaleiro de alemães bigodes,
    Um preto beberrão sobre uma pipa
    Aos grossos beiços a garrafa aperta…
    Ao longo das paredes se derramam
    Extintas inscrições de versos mortos
    E mortos ao nascer!…Ali na alcova,
    Em águas negras, se levanta a ilha
    Romântica, sombria, à flor das ondas
    De um rio que se perde na floresta…
    – Um sonho de mancebo e de poeta,
    El-Dorado de amor que a mente cria,
    Como um Éden de noites deleitosas…
    Era ali que eu podia no silêncio
    Junto de um anjo… Além o romantismo!
    Borra adiante folgaz caricatura
    Com tinta de escrever e pó vermelho
    A gorda face, o volumoso abdômen,
    E a grossa penca do nariz purpúreo
    Do alegre vendilhão, entre botelhas,
    Metido num tonel… Na minha cômoda,
    Meio encetado o copo, inda verbera
    As águas d’oiro do Cognac ardente:2
    Negreja ao pé narcótica botelha
    Que da essência de flores de laranja
    Guarda o licor que nectariza os nervos.
    Ali mistura-se o charuto havano
    Ao mesquinho cigarro e ao meu cachimbo…
    A mesa escura cambaleia ao peso
    Do titânio Digesto; e ao lado dele
    Childe-Harold entreaberto… ou Lamartine
    Mostra que o romantismo3 se descuida
    E que a poesia sobrenada sempre
    Ao pesadelo clássico do estudo.

    III

    Reina a desordem pela sala antiga,
    Desce a teia de aranha as bambinelas
    À estante pulvurenta4. A roupa, os livros
    Sobre as poucas cadeiras5 se confundem.
    Marca a folha do Faust um colarinho
    E Alfredo de Musset encobre, às vezes,
    De Guerreiro, ou Valasco, um texto obscuro.
    Como outrora do mundo os elementos
    Pela treva jogando cambalhotas,
    Meu quarto,  mundo em caos, espera um Fiat!

    IV

    Na minha sala três retratos pendem:
    Ali Victor Hugo. – Na larga fronte
    Erguidos luzem os cabelos loiros,
    Como c’roa soberba. Homem sublime!
    O poeta de Deus e amores puros!
    Que sonhou Triboulet, Marion Delorme
    E Esmeralda – a Cigana… E diz a crônica
    Que foi aos tribunais parar um dia
    Por amar as mulheres dos amigos
    E adúlteros fazer romances vivos.

    V

    Aquele é Lamennais – o bardo santo,
    Cabeça de profeta, ungido crente,
    Alma de fogo na mundana argila
    Que as harpas de Sion vibrou na sombra,
    Pela noite do século chamando
    A Deus e à liberdade as loucas turbas.
    Por ele a George Sand morreu de amores,
    E dizem que… Defronte, aquele moço
    Pálido, pensativo, a fronte erguida,
    Olhar de Bonaparte em face austríaca,
    Foi do homem secular as esperanças:
    No berço imperial um céu de agosto
    Nos cantos de triunfo despertou-o…
    As águias de Wagram e de Marengo
    Abriam flamejando as longas asas,
    Impregnadas do fumo dos combates,
    Na púrpura dos Césares, guardando-o…
    E o gênio do futuro parecia
    Predestiná-lo à glória. A história dele?…
    Resta um crânio nas urnas do estrangeiro…
    Um loureiro sem flores nem sementes…
    E um passado de lágrimas… A terra
    Tremeu ao sepultar-se o Rei de Roma.
    Pode o mundo chorar sua agonia
    E os louros de seu pai na fronte dele
    Infecundos depor… Estrela morta,
    Só pode o menestrel sagrar-te prantos!

    VI

    Junto a meu leito, com as mãos unidas,
    Olhos fitos no céu, cabelos soltos,
    Pálida sombra de mulher formosa
    Entre nuvens azuis pranteia orando.
    É um retrato talvez. Naquele seio
    Porventura sonhei doiradas noites,
    Talvez sonhando desatei sorrindo
    Alguma vez nos ombros perfumados
    Esses cabelos negros e em delíquio
    Nos lábios dela suspirei tremendo.
    Foi-se a minha visão… E resta agora
    Aquela vaga sombra na parede
    – Fantasma de carvão e pó cerúleo! –
    Tão vaga, tão extinta e fumarenta
    Como de um sonho o recordar incerto.

    VII

    Em frente do meu leito, em negro quadro,
    A minha amante dorme. É uma estampa
    De bela adormecida. A rósea face
    Parece em visos de um amor lascivo
    De fogos vagabundos acender-se…
    E com a nívea mão recata o seio…
    Oh! quantas vezes, ideal mimoso,
    Não encheste minh’alma de ventura,
    Quando louco, sedento e arquejante
    Meus tristes lábios imprimi ardentes
    No poento vidro que te guarda o sono!

    VIII

    O pobre leito meu, desfeito ainda,
    A febre aponta da noturna insônia.
    Aqui lânguido à noite debati-me
    Em vãos delírios anelando um beijo…
    E a donzela ideal nos róseos lábios,
    No doce berço do moreno seio
    Minha vida embalou estremecendo…
    Foram sonhos contudo! A minha vida
    Se esgota em ilusões. E quando a fada
    Que diviniza meu pensar ardente
    Um instante em seus braços me descansa
    E roça a medo em meus ardentes lábios
    Um beijo que de amor me turva os olhos…
    Me ateia o sangue, me enlanguesce a fronte…
    Um espírito negro me desperta,
    O encanto do meu sonho se evapora…
    E das nuvens de nácar da ventura
    Rolo tremendo à solidão da vida!

    IX

    Oh! ter vinte anos sem gozar de leve
    A ventura de uma alma de donzela!
    E sem na vida ter sentido nunca
    Na suave atração de um róseo corpo
    Meus olhos turvos se fechar de gozo!
    Oh! nos meus sonhos, pelas noites minhas
    Passam tantas visões sobre meu peito!
    Palor de febre meu semblante cobre,
    Bate meu coração com tanto fogo!
    Um doce nome os lábios meus suspiram,
    Um nome de mulher… e vejo lânguida
    No véu suave de amorosas sombras
    Seminua, abatida, a mão no seio,
    Perfumada visão romper a nuvem,
    Sentar-se junto a mim, nas minhas pálpebras
    O alento fresco e leve como a vida
    Passar delicioso… Que delírios!
    Acordo palpitante… inda a procuro:
    Embalde a chamo, embalde as minhas lágrimas
    Banham meus olhos e suspiro e gemo…
    Imploro uma ilusão… tudo é silêncio!
    Só o leito deserto, a sala muda!
    Amorosa visão, mulher dos sonhos,
    Eu sou tão infeliz, eu sofro tanto!
    Nunca virás iluminar meu peito
    Com um raio de luz desses teus olhos?

    X

    Meu pobre leito! eu amo-te contudo!

    Aqui levei sonhando noites belas;
    As longas horas olvidei libando
    Ardentes gotas de licor doirado,
    Esqueci-as no fumo, na leitura
    Das páginas lascivas do romance…

    Meu leito juvenil, da minha vida
    És a página d’oiro. Em teu asilo
    Eu sonho-me poeta e sou ditoso…
    E a mente errante devaneia em mundos
    Que esmalta a fantasia! Oh! quantas vezes
    Do levante no sol entre odaliscas
    Momentos não passei que valem vidas!
    Quanta música ouvi que me encantava!
    Quantas virgens amei! que Margaridas,
    Que Elviras saudosas e Clarissas,
    Mais trêmulo que Faust, eu não beijava…
    Mais feliz que Don Juan e Lovelace
    Não apertei ao peito desmaiando!

    Ó meus sonhos de amor e mocidade,
    Por que ser tão formosos, se devíeis
    Me abandonar tão cedo… e eu acordava
    Arquejando a beijar meu travesseiro?

    XI

    Junto do leito meus poetas dormem
    – O Dante, a Bíblia, Shakespeare e Byron,
    Na mesa confundidos. Junto deles
    Meu velho candeeiro se espreguiça
    E parece pedir a formatura.
    Ó meu amigo, ó velador noturno,
    Tu não me abandonaste nas vigílias,
    Quer eu perdesse a noite sobre os livros,
    Quer, sentado no leito, pensativo
    Relesse as minhas cartas de namoro…
    Quero-te muito bem, ó meu comparsa
    Nas doudas cenas de meu drama obscuro!
    E num dia de spleen, vindo a pachorra,
    Hei de evocar-te dum poema heróico
    Na rima de Camões e de Ariosto,
    Como padrão às lâmpadas futuras!

    XII

    Aqui sobre esta mesa junto ao leito
    Em caixa negra dois retratos guardo:
    Não os profanem indiscretas vistas.
    Eu beijo-os cada noite: neste exílio
    Venero-os juntos e os prefiro unidos…
    – Meu pai e minha mãe! Se acaso, um dia,
    Na minha solidão me acharem morto,
    Não os abra ninguém. Sobre meu peito
    Lancem-os em meu túmulo. Mais doce
    Será certo o dormir da noite negra,
    Tendo no peito essas imagens puras.

    XIII

    Havia uma outra imagem que eu sonhava
    No meu peito, na vida e no sepulcro,
    Mas ela não o quis… rompeu a tela,
    Onde eu pintara meus doirados sonhos.
    Se posso no viver sonhar com ela,
    Essa trança beijar de seus cabelos
    E essas violetas inodoras, murchas,
    Nos lábios frios comprimir chorando,
    Não poderei na sepultura, ao menos,
    Sua imagem divina ter no peito!

    XIV

    Parece que chorei… Sinto na face
    Uma perdida lágrima rolando…
    Satã leve a tristeza! Olá, meu pajem,
    Derrama no meu copo as gotas últimas
    Dessa garrafa negra…

    Eia! bebamos!
    És o sangue do gênio, o puro néctar
    Que as almas do poeta diviniza,
    O condão que abre o mundo das magias!
    Vem, fogoso Cognac! É só contigo
    Que sinto-me viver. Inda palpito,
    Quando os eflúvios dessas gotas áureas
    Filtram no sangue meu correndo a vida,
    Vibram-me os nervos e as artérias queimam,
    Os meus olhos ardentes se escurecem
    E no cérebro passam delirosos
    Assomos de poesia… Dentre a sombra
    Vejo num leito d’oiro a imagem dela
    Palpitante, que dorme e que suspira,
    Que seus braços me estende…

    Eu me esquecia…
    Faz-se noite: traz fogo e dois charutos
    E na mesa do estudo acende a lâmpada…

     

    Lira dos Vinte Anos – Álvares de Azevedo
    Editora Martins Fontes
    Edição preparada por Maria Lúcia Dal Farra 1996