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    Comunicação

    Deus de violência

    Estou com vida mas estive sempre à espera De viver. Não sei por que estou isolado e só Sentimos a inutilidade em existir. Se houver Deus É de violência; nos deixa apodrecer ainda caminhando É o dono de moléstias pavorosas. Alimenta As dores dos recém-nascidos, do homem, da mulher, Do velho e do cão. Há […]

    POR: Candido Portinari

    5 min de leitura

    Estou com vida mas estive sempre à espera
    De viver. Não sei por que estou isolado e só
    Sentimos a inutilidade em existir. Se houver Deus
    É de violência; nos deixa apodrecer ainda caminhando
    É o dono de moléstias pavorosas. Alimenta
    As dores dos recém-nascidos, do homem, da mulher,
    Do velho e do cão. Há repetição de ruídos
    Furacões, lamento de crianças com fome
    Andamos, mal-encarados, e com o pensamento
    Em enganar alguém. Desconfiados, temerosos
    Das doenças incuráveis. Ignoramos estarmos
    Já inscritos numa delas.

    Quem seriam aqueles três rasgados
    E sem cara? Vinham a cavalo.
    Mais próximos não davam impressão de gente,
    Mas de três volumes se movendo como bandeiras
    Esfarrapadas. Rentes a mim, estenderam
    algo como uns braços, com vestígios
    de dedos, segurando uma caneca de folha.
    Eram restos de três criaturas
    Espaventosas carregando a lepra.
    Vinham das bandas do Triângulo. Os sons
    que emitiam eram como
    Sombras de palavras.
    Meu pai chamou-os
    para o almoço. Sentaram-se à nossa mesa.
    Nós crianças olhávamos intimidados
    Depois confraternizados. Quando se foram,
    perguntamos: – Que santos
    são aqueles?

    Os cavalos dos leprosos se parecem com eles.
    Manchas no focinho e no corpo, o mesmo olhar
    Mortiço e desacorçoado.
    Homem e cavalo
    Vinham vagarosamente
    De porta em porta. Teriam
    A mesma doença?
    Arrepiados da cabeça aos pés,
    O sol os acariciava, e se moviam lentamente.
    Nas noites de treva
    O cavalo era o guia, só ele enxergava.
    Eram como dois irmãos. O alimento,
    Repartido e o descanso também…
    Seriam dois reis?

    Os retirantes vêm vindo com trouxas e embrulhos
    Vêm das terras secas e escuras; pedregulhos
    Doloridos como fagulhas de carvão aceso

    Corpos disformes, uns panos sujos,
    Rasgados e sem cor, dependurados
    Homens de enorme ventre bojudo
    Mulheres com trouxas caídas para o lado

    Pançudas, carregando ao colo um garoto
    Choramingando, remelento
    Mocinhas de peito duro e vestido roto
    Velhas trôpegas marcadas pelo tempo

    Olhos de catarata e pés informes
    Aos velhos cegos agarradas
    Pés inchados enormes
    Levantando o pó da cor de suas vestes rasgadas

    No rumor monótono das alparcatas
    Há uma pausa, cai no pó
    A mulher que carregava uma lata
    De água! Só há umas gotas – Dá uma só

    Não vai arribar. É melhor o marido
    E os filhos ficarem. Nós vamos andando
    Temos muito que andar neste chão batido
    As secas vão a morte semeando.

    No povoado sonhando
    Viu o mar. Um dia o
    Veria de verdade.
    Passaram alguns dezembros.

    Chegou à praia
    Sem saber se era dia ou noite,
    Distante dali deixara o
    Campo, os animais e as flores.

    Faziam parte de sua
    Vida de menino pobre.
    Lembrava-se da chuva do rio e dos pássaros.
    Não pôde ver o mar: estava cego.

    Mulheres com dor-d’olhos cobertas de trapos e
    Sempre grávidas. Saindo dos panos há uma cara
    Canelas finas e feridentas. Desde o seu nascimento
    Penam. Noite e dia trabalham. Muitas já cegas,
    Os filhos tracomosos e opilados.

    As mocinhas de dezesseis anos
    Só trazem na boca uns cacos de
    Dentes. São assombrações. Espantam as águas dos
    Rios e o arvoredo. Morrem trabalhando e
    Ressurgirão no azul do céu vestidas de Lua.

    Faltam-me as pernas.
    Tenho um braço e meus
    Olhos são fracos. O coração palpitando
    Sempre.

    Vim da terra vermelha e do
    Cafezal.

    As almas penadas, os brejos e as matas virgens
    Acompanham-me como o espantalho,
    Que é meu auto-retrato.

    Todas as coisas
    Frágeis e pobres
    Se parecem comigo.

    Minha pupila estará cheia
    De tanta gente? Mas está vazia…
    Fantasmas movendo-se
    Sem existência.

    Levarei meus olhos fugindo
    Procuro os escondidos inutilmente…
    Na mediocridade – nem
    Uma quinta-feira de folga…

    Trabalham vestindo-os e o
    Vento os move.
    Não entendem. Tempo gasto
    À-toa à-toa.

    Se soubesse conversar com a erva
    Macia. Sem jeito piso-a esmagando-a
    Impedido de um encontro desejado.

    Agitam-se meus cabelos
    Correndo. Meus braços vão para
    O sul e as pernas para o norte
    Boneco Carlitiano.

    Faltam-me as lágrimas e o
    Entendimento. Não vejo a lua e
    Nem o sol ao meio-dia…
    Eu não existo talvez.

    Me darão a morte em noite de
    Lua? Mas bom seria
    Sem ninguém perto de mim.

     

    Candido Portinari
    Portinari Poemas
    Iniciativa: EPTV – Emissoras Pioneiras de Televisão
    Realização: Projeto Portinari
    1999