Noveleta – ainda continuação
Estava longe, sumido no mundo. Saíra de casa tinha uns dez anos, dizendo que ia buscar a sorte onde gostassem dele. Ali, naquele lugar, onde nascera e roubara a primeira carambola; onde comera a primeira mulher-dama; onde pugnara nas inúmeras oficinas – ali, naquele lugar lazarento, o futuro não se escondia. Antes, mostrava-se inteiro em desgraça ou monotonia.
Rodou estrada. Conheceu muitos ofícios, uma infinidade de mulheres (quase casou), um sem conta de pousos e moradas. Aos vinte e cinco anos bem vividos, enrolado num poncho em meio à umidade que emanava do Guaíba, fez um balanço cuidadoso e resolveu voltar. Nada de saudade. Nem melancolia, desejo, nostalgia. Somente a memória acre e cristalina, aguda, de si mesmo.
Enrolou na manta a pouca roupa que tinha e foi buscar o salário da semana. O mestre-de-obras bem que tinha estranhado sua ausência. Nunca faltara. Não, não estava doente. Ia embora.
O velho parece que já esperava aquilo. Olhou-o por um largo silêncio. “Vá falar com o apontador” foi a frase que proferiu com vapor e tristeza.
Era, coincidentemente, dia de pagamento. Todavia, ainda não era hora. Os envelopes seriam entregues ao final da jornada. Mas ele não queria esperar. Foi entrando sem pedir licença, como era de seu feitio, e abordando o apontador. O homem o mediu da cabeça aos pés. Disse que não podia ir assim entrando, sem se anunciar, sem autorização.
Ele não respondeu. Repetiu seu pedido e aguardou, parado, em silêncio.
O apontador se irritou. Ordenou que se retirasse, que fosse trabalhar. Voltasse com os outros, no fim do expediente. Silêncio, seguido de um sereno e neutro “preciso de meu dinheiro agora”.
O apontador se levanta furibundo. Dá volta à mesa e já mete-lhe um empurrão. Ele ouve um vagabundo. Quando se dá conta, está no chão defronte ao almoxarifado, ouvindo impropérios do apontador que, depois do um fuzuê de palavrões entremeados de tchês e bahs, vira-lhe as costas e bate a porta.
Ele se levanta, bate os fundilhos para limpá-los da areia úmida. Mira a porta, como se refletisse. Vai até o armazem, pede um trago, vira e sai. Já no alojamento, levanta o colchão de um dos companheiros. Revolve uns panos e acha o trinta e oito. Seis balas ocupavam o tambor.
Espera dar cinco da tarde.
Volta ao almoxarifado, mete o pé na porta, apóia o braço direito no ombro do primeiro da fila e descarrega a arma. O apontador já é uma mina de sangue. Vai até a mesa, procura seu envelope. Diante do terror de todos, conta sua féria, mete-a no bolso e sai, pra nunca mais ser visto.