Cultura e Barbárie
“Nach Auschwitz ein Gedicht zu schreiben ist barbarisch.”
Theodor Adorno
(Depois de Auschwitz escrever um poema é algo bárbaro)
O projeto maior do processo civilizatório da idade moderna talvez esteja expresso numa frase de Goethe, escrita há pouco mais de 150 anos: a civilização elimina a barbárie. Seu país de poetas e pensadores, sua cultura tão refinada e seleta infelizmente provou o contrário. A grande contradição desta cultura portanto é ter produzido o melhor e o pior da humanidade. O Holocausto, por sua vez, foi um divisor de águas na história da cultura e da civilização. Os valores se inverteram a tal ponto que seria preciso não somente reconstruir as cidades e os edifícios destruídos pela guerra, mas sobretudo os pressupostos da civilização.
A idéia de cultura, tal como a entendemos, é proveniente do século 18. Tem base em movimentos dotados de ímpeto libertador e revolucionário. É o que chamamos de Iluminismo e Romantismo. Trabalhar em prol da cultura significava então tornar o mundo mais humano. Este o grande ideal dos iluministas: criar uma sociedade livre e, ao mesmo tempo desenvolver no indivíduo o senso de responsabilidade e o humanismo. Os grandes ideais românticos, por sua vez, foram sem dúvida a liberdade de espírito, o individualismo criador e a noção do Todo, do Absoluto. Basta lembrar do conceito de Weltliteratur de Goethe. Neste sentido, a cultura é algo que une os homens, fundamenta a ética e exalta o que há de comum e sublime em nossa espécie.
Neste contexto, afirmou Adorno:
“Sua concretização deveria corresponder à concretização de uma sociedade cívica de indivíduos livres e iguais. (…) Cultura seria, então, o que cabe ao indivíduo livre, que fundamenta sua vida na própria consciência, mas estende sua ação à sociedade e sublima seus instintos. Era a condição de uma sociedade autônoma: quanto mais esclarecido o indivíduo, mais iluminado o todo…”
A arte grega, por exemplo, as tragédias, a poesia de Homero, os templos, a arquitetura e a escultura, nos mostra que o ser humano pode elevar-se através da arte saindo da barbárie e incorporando o Humanismo. Para muitos a Grécia serve assim como exemplo de uma humanização bem sucedida por meio do cultivo da arte. A harmonia entre razão e sensualidade atinge ali seu ponto elevado.
Os iluministas e os românticos sonhavam com o indivíduo autônomo e tinham a esperança de atingir tal objetivo com o auxílio da cultura e da arte. Acreditavam que a existência iluminada, esclarecida, fosse capaz de transformar a mediocridade da vida. A burguesia, no século seguinte, passou a amar a cultura como símbolo de status e exagerou em seu refinamento chegando a usá-la como arma para a exclusão social.
De certo modo, a arte vive hoje um momento semelhante ao da frase de Adorno – a impotência diante da destruição e do aniquilamento – o vazio diante da sociedade de consumo que privilegia o supérfluo em detrimento do duradouro. Vivemos hoje formas mais sutis e refinadas de Holocausto. Vemos na televisão os espetáculos de fogos de mortifício promovido pelos americanos e israelenses e nos mantemos tão impassíveis quanto os vizinhos dos campos de concentração na Alemanha nazista.
Um economista hoje, por exemplo, diria que a poesia nem deveria existir. Pois se forem calculados os custos de produção e o lucro, a relação custo/benefício etc, ele provavelmente teria razão. Mas a economia de mercado, graças a Deus, não é a dona da verdade, não é a pedra filosofal. Aliás, as coisas mais importantes da vida são justamente aquelas das quais a economia e o mercado não abarcam em seus raciocínios e argumentos.
Adorno em 1959, cria um conceito – o semiculto – para tentar definir a formação cultural, depois da reconstrução e da superação do trauma da 2° guerra, num ensaio Theorie der Halbbildung (Teoria da semicultura). Ele analisa a modernidade que privilegia um indivíduo semiculto aquele que conhece um pouco de tudo e nada de nada, que se limita aos resumos e se orienta pela ambição. Adorno vê nisso um enorme perigo. Pois:
“Compreender e saber pela metade não é uma etapa preliminar da cultura e sim um inimigo mortal desta: elementos culturais que cheguem à consciência sem pressuporem sua continuidade transformam-se em substâncias tóxicas malignas…”
Qual a saída, então? Para Adorno só há uma: uma vida autodeterminada. Como? Através da reflexão crítica sobre a semicultura, sobre o semiconhecimento que impera hoje no mundo atual.
De volta à Auschwitz – essa palavra tão carregada de animalidade e crueldade refinada: é como se o Holocausto significasse o esgotamento da imaginação. Afinal depois dos campos de concentração, retomado agora através do remake moderno criado pelos norte-americanos em Guantánamo e em alguns países do Oriente Médio, o que poderia haver de pior?
Hoje novamente nos defrontamos com a oposição cultura/barbárie, mas temos a indústria do entretenimento para ajudar-nos a deglutir as grandes contradições e as vergonhosas incoerências. Vivemos desse modo o vazio em meio à abundância. Propaga-se a todo momento o culto ao supérfluo e à aparência. Mesmo nos noticiários, o entretenimento se sobrepõe à informação. Embora falemos o tempo todo em comunicação, poucos são os que têm algo a comunicar. Há jornais bem sucedidos que não contém nenhuma informação significativa. A maioria dos programas de TV atingiram o estágio do vazio total. Os espectadores os usam como tranqüilizantes, segundo o intelectual alemão Hans Magnus Enzensberger.
A abundância e o vazio talvez seja um dos grandes binômios presentes no cotidiano do homem contemporâneo. Temos mais tempo e mais condições materiais, mas nos dedicamos menos às coisas realmente relevantes.
A televisão busca cada vez mais a sensação de maior realidade mostrando simultaneamente catástrofes, corridas, eventos esportivos de toda ordem, seqüestros, guerras. Busca-se o frisson da experiência real nestes tempos de globalização, como se a todo momento ela nos dissesse: isto não é faz-de-conta, é real. Mas não se corre perigo, pois se trata de puro voyerismo a uma distância segura da verdadeira realidade.
Por conseguinte, numa tal sociedade a sensação de estar marginalizado deixou de ser exclusiva dos mais fracos; ela está em toda parte e em todas as classes sociais; entre os favelados e entre os filhinhos de papai. A marginalização não é mais apenas um fato econômico, é também um fato psíquico; desaparece a sensação entre ser realmente marginalizado e sentir-se como tal. Mesmo um indivíduo de uma escala social superior pode ser assolado pelo obscuro sentimento de não fazer parte, de estar excluído da verdadeira vida.
Hoje, assolado pela mídia por produtos de toda ordem, o indivíduo se vê impotente e encarcerado numa realidade onipresente e manipuladora. A indústria cultural gerou como tipo mais recente de indivíduo semiculto o viciado, que anseia por uma satisfação de seus desejos cada vez mais rápida, cada vez mais perfeita e cada vez mais atualizada.
E o setor da cultura de massa ao ingressar nesta lógica incentiva o vício: os museus e as galerias mostram uma exposição melhor que a outra, uma mais extraordinária que a anterior, um filme que o fará esquecer-de de todos os outros e assim por diante. No mercado livreiro, um lançamento sensacional se sobrepõe a outro, e o filme ou minisérie baseado em um livro aumenta ainda mais a oferta de consumo. Nas grandes gravadoras a música é destituída de tudo aquilo que não entra facilmente pelos ouvidos, sendo repetida dia e noite em pequenas doses. O consumidor fica com uma sensação de vazio, um vácuo que precisa ser preenchido o mais rápido possível com novas substâncias. Difunde-se uma avidez de sensações e de novidades que mal disfarça o desesperança e a agressividade reinantes no mundo atual.
Na frase de Adorno está implícito que a arte perdeu o sentido, a cultura perdeu o sentido, a barbárie venceu. Temporiamente. Será verdade? Que valor teria então um verso diante do Holocausto? Um quadro diante de Guantánamo? Uma canção diante da fome e da miséria? Uma obra de arte diante dos inúmeros crimes hediondos de cada dia?