O poema sujo de política
Ferreira Gullar construiu sua obra poética no fio da navalha da participação ou do engajamento. Para a maioria dos poetas ou críticos, essas duas palavras soam abomináveis, mas Gullar, com perfeita consciência da sua posição no modo de produção literário de seu tempo, jamais furtou-se a correr riscos e testar os limites da poética de cunho político. Intelectual ativo, crítico de arte refinado, embora não acadêmico, poeta da melhor linhagem de nossa literatura, o maranhense acaba estigmatizado pelo conteúdo evidentemente participante de sua obra, sendo presa fácil dos irritadiços advogados da poesia etérea. Compreender o alcance e a potência poética e política de sua obra necessariamente passa por conhecer bem a sua trajetória de artista, homem público e crítico.
Essa oportunidade nos proporciona a pesquisadora Poesia e política: a trajetória de Ferreira Gullar (Revan, 2006). O livro apresenta o percurso da obra de Gullar relacionando-a com os fatos mais importantes da história recente do Brasil. Fruto de rigorosa pesquisa para tese de doutoramento, a obra da professora de Literatura Comparada da UFRJ Eleonora Ziller Camenietzki é uma importante contribuição para os estudos sobre o poeta.
Eleonora enfoca a obra de Gullar valendo-se de um discurso crítico pendular, que vai da análise literária de poemas ao levantamento rigoroso de fatos históricos, para evidenciar a condição política de um poeta que teve o conjunto de sua poesia marcado por dois vetores fundamentais: a busca de repostas para os impasses do fazer lírico e a necessidade de ser a expressão de um determinado grupo. Essa dicotomia condensa-se muito bem no conhecido poema “Traduzir-se”: “uma parte de mim/ é todo mundo:/ outra parte é ninguém:/ fundo sem fundo.”
Dessa forma, a autora expõe os dilemas da participação do poeta Gullar tanto no movimento Concretista, com quem rompe por intermédio do Neoconcretismo, quanto do poeta “de feira” que foi o Gullar dos “Romances de Cordel” da época do CPC. Ziller recupera e analisa também boa parte da obra crítica de Gullar, como os seus artigos publicados no suplemento dominical do Jornal do Brasil na década de 50 e na Revista Civilização Brasileira na década seguinte.
Ao leitor que, em princípio, poderia ressentir-se de uma análise mais miúda da poética de Gullar, a autora reserva, no terceiro capítulo do livro, uma detida leitura do impressionante “Poema Sujo”, que está, certamente, entre os mais importantes textos de nossa poesia. Segundo Eleonora, dado o momento histórico dilacerado da nação, o “Poema Sujo” apresenta uma lírica dolorosa, na qual “a palavra e a memória se tornam o último recurso frente à derrota política e ao instante de perigo, em que se pressente a morte”. Assim, segundo ela, o “centro nervoso do poema” é a sua sujeira, ou seja, a vida que urge e pulsa, contaminando com o real a linguagem.
O momento alto do livro de Eleonora, ele mesmo de grande força política, encontra-se na conclusão. A partir da análise da atitude do poeta Ferreira Gullar hoje em dia, Ziller faz um painel crítico da nossa literatura e da atuação dos intelectuais contemporâneos. Com vigor, a autora critica a mercantilização da universidade, processo segundo o qual é preciso produzir, embora o leitor seja cada vez mais escasso, e o “dar de ombros” dos intelectuais que desdenham os acontecimentos da nossa história. Desse modo, pelo exemplo de Gullar, Poesia e política contribui para manter aberta a trilha aos que conseguem perceber a dimensão inteira do problema da arte em um país periférico. Nas palavras de Eleonora, é preciso: “manter o inconformismo e o desassossego, duvidar sempre.”