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    Comunicação

    Por você por mim

    A noite, a noite, que se passa? diz que se passa, esta serpente vasta em convulsão, esta pantera lilás, de carne     lilás, a noite, esta usina no ventre da floresta, no vale, sob os lençóis de lama e acetileno, a aurora, o relógio da aurora, batendo, batendo, quebrado entre cabelos, entre músculos mortos, na […]

    A noite, a noite, que se passa? diz
    que se passa, esta serpente vasta em convulsão, esta
    pantera lilás, de carne
        lilás, a noite, esta usina
    no ventre da floresta, no vale,
    sob os lençóis de lama e acetileno, a aurora,
    o relógio da aurora, batendo, batendo,
    quebrado entre cabelos, entre músculos mortos, na podridão
    a boca destroçada já não diz a esperança,
        batendo
    Ah, como é difícil amanhecer em Thua Thien.
         Mas amanhece.

    Que se passa em Huê? em Da Nang? No Delta
         do Mekong? Te pergunto,
    nesta manhã de abril no Rio de Janeiro,
         te pergunto,
    que se passa no Vietnam?

    As águas explodem como granadas, os arrozais
    se queimam em fósforo e sangue
        entre fuzis
                          as crianças
    fogem dos jardins onde açucenas pulsam
    como bombas-relógio, os jasmineiros
    soltam gases, a máquina
           da primavera
           danificada
           não consegue sorrir.

    Há mortos demais no regaço de Mac Hoa.
            Há mortos demais
    nos campos de arroz, sob os pinheiros,
    às margens dos caminhos que conduzem a Camau.

    O Vietnam agora é uma vasta oficina da morte, nos campos
           da morte, o motor
           da vida gira ao contrário, não
           para sustentar a cor da íris,
           a tessitura da carne, gira
    ao contrário, a desfazer a vida, o maravilhoso aparelho
           do corpo, gira
           ao contrário das constelações, a vida
           ao contrário, dentro
           de blusas, de calças, dentro
    de rudes sapatos feitos de pano e palha, gira
    ao contrário a vida feita de morte.
                                                           Surdo
               sistema de álcool, gira
               gira, apaga rostos, mãos,
               esta mão jovem
         que saiba ajudar o arroz, tecer a palha. Há mortos
         demais, há mortes
                demais, coisas da infância, a hortelã, os sustos
         do amor, aquela tarde aquela tarde clara, amada,
         aquela tarde clara tudo
                 tudo se dissolve nas águas marrons
         e entre nenúfares e limos
         a correnteza arrasta para o mar o mar o mar azul

    É dia feito em Botafogo.
    Homens de pasta, paletó, camisa limpa,
    dirigem-se para o trabalho.
    Mulheres voltam da feira, as bolsas cheias de legumes.
    Crianças passam para o colégio.
    As nuvens nuvem
    e as águas batem naturalmente em toda a orla marítima.
    Nenhuma ameaça pesa sobre a cidade.
                                                                 As pessoas
    marcaram encontros, irão ao cinema, à buate, se amarão
                                                                 nas praias
    na cama
    nos carros. As pessoas
    acertam negócios, marcam viagens, férias.
              Nenhuma ameaça
    pesa sobre a cidade.
    Os barulhos apitos sem alarma. O avião no céu
              vai para São Paulo.
    O avião no céu não é um Thunderchief da USAF
    que chega trazendo a morte
             como em Hanói.
    Não é um Thunderchief da USAF que chega
    seguido de outros
             e outros
             da USAF
    carregados de bombas e foguetes
             como em Hanói
    que chega lançando bombas e foguetes
             como em Hanói
             como em Haiphong
    incendiando o porto
    destruindo as centrais elétricas
    as estradas de ferro
          como em Hanói
          como em Hoa Bac
    queimando crianças com napalm
          como em Hanói
          como em Chien Tien
          como em Don Hoi
          como em Tai Minh
          como em Vihn Than
          como em Hanói
    Como pode uma cidade, como pode
          uma cidade
                            resistir

    Os americanos estão agora investindo muito no Vietnam
           O Vietnam agora nada em ouro
           e fogo
           Bases aéreas
           Arsenais
           Depósitos de combustíveis
           Laboratórios na rocha
           Radar
           Foguetes
    A ciência eletrônica invade a selva
           gases novos, armas novas
           O lazy-dog
    lança em todas as direções mil flechas de aço
           o bull-pup
    procura o alvo com seus 200 quilos de explosivos
           o olho-de-serpente
    pousa sobre uma casa e espera a hora certa de matar
    O Vietnam agora está cheio de arame farpado
           de homens louros
           farpados
           armados
           vigiados
           cercados
           assustados
    está cheio de jovens homens louros
    e cadáveres jovens
           de homens louros
           enganados

    Próximo à base de Da Nang
            que tudo escuta e tudo vê,
            próximo à base de Da Nang, esgueira-se
            entre árvores um homem,
            próximo à base cheia de soldados,
            metralhadoras, bombas,
            aviões, cheia
            de ouvidos e de olhos
    eletrônicos, um homem, chamado Tram,
    entre as folhas e os troncos que cheiram a noite,
    cauteloso se move
    entre as folhas da noite, Tram Van Dam,
    cauteloso se move
    entre as flores da morte
    Tram Van Dam
    quinze anos se move
    entre as águas da noite
    dentro da lama
    onde bate a aurora
    Tram Van Dam
    onde bate a aurora
    Tram Van Dam
    com a sua granada
    entre cercas de arame
    entre as minas no chão
    Tram Van Dam
    com seu coração
    Tram Van Dam
    onde bate a aurora
    por você por mim
    sob o fogo inimigo
    com o grampo no dente
    com o braço no ar
    por você por mim
    Tram Van Dam
    onde bate a aurora
    por você por mim
    no Vietnam

     

     

    Ferreira Gullar – Toda Poesia (1950/1980)
    Licença editorial para Círculo do Livro por cortesia da Editora Civilização S.A

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