Para que, ou a quem tenta falar alguém que se dedica a escrever poesia? E por que ainda insiste em fazê-lo, sabendo ser seu ofício tido como de inutilidade pública? Para que serve a poesia? A quem se dirige o artista da palavra, na solidão que ele mesmo busca ter, mergulhado na insônia e no sofrimento existencial dos nervosos e dos grandes angustiados, de que são notáveis exemplos Marcel Proust, Charles Baudelaire, Fiodor Dostoievski, Nicolai Gogol, Cruz e Sousa e Augusto dos Anjos? A quem dirige o som de sua voz, e de seu instrumento, o músico, consagrado ou anônimo, bem pago ou sobrevivendo no ventre da mais negra miséria? Fazemos arte para ser amados ou porque amamos? Escrevemos para não morrer? A alquimia da arte é um dos mais fascinantes mistérios desta vida, e não há ninguém que possa entendê-la ou entendê-la plenamente, por ser intraduzível em palavras. Para o artista, seu trabalho é um meio de explorar a vida e alcançar seu mais secreto e profundo significado. Nathaniel Hawtorne escrevia ficção “para elevar o coração dos homens… para dizer não à morte”.

      Para a ensaísta e mitóloga Carlinda Patê Nuñez, “a linguagem conserva mapas que não se acham em nenhum território”. O Real é indizível nos limites do discurso. Somente em símbolo, metáfora, mito ou alegoria pode ser representado. O limite não pode desvendar o mistério insondável. Impenetrável em seu cerne, o enigma do Ser em signos e símbolos se deslinda — mas não pode ser desvendado, por ser erigido em feitio de mito. A paixão de criar há de ser vertiginosa, e ser sempre perigosa, ou o que dela resultar não poderá ser chamado de arte. Sabemos, hoje, que só se pode mudar o mundo com uma mudança de coração. E quem pode mudar o coração dos homens? Não obstante este anseio para alcançar e difundir a luz, a arte deste grande escritor tinha um lado escuro e assombrado (como toda grande arte). Acreditando que são necessárias as reformas sociais, para aprimorar e melhorar a vida de todos, Hawtorne defendia, no entanto, que antes era preciso reformar o coração do homem, onde reside a fonte de todo o mal: “O demônio ri quando o homem supõe que os duradouros progressos favoráveis ao bem podem ser trazidos com simples mudanças externas e sociais”.

      A Maldade de Escrever — “Apenas por afrontamento insisto na maldade de escrever”, dizia Ana Cristina César. Escrever é uma maldade de que dificilmente se recupera. Até porque nos libera do assédio eterno de nossos medos, nossos demônios interiores. Quando a palavra poética é potencializada pela visão cósmica do vate iluminado (de que Walt Whitman foi exemplo), o bardo torna-se vidente e é capaz, em lavra de signos, de decifrar tanto o passado quanto o futuro. Não pode haver limite para o vôo do Ser, depois que a Consciência arrebatada passa por secreta alquimia interior.

      Mas, sobretudo, a verdadeira arte há de trazer, inteira, a marca da nossa mais antiga maldade: enchemos o palco de nossos livros de personagens monstruosos, para esconder dos leitores que somos pessoas pérfidas, maldosas e atrozes. E aqui lembro Nelson Rodrigues: “O personagem é vil para esconder que o somos. Ele realiza a miséria inconfessa de cada um de nós. Para salvar a platéia, é preciso encher o palco de assassinos, de adúlteros, de insanos e, em suma, de uma rajada de monstros. São os nossos monstros, dos quais virtualmente nos livramos, para depois recriá-los”. Porque, para Nietzsche, isto é mais difícil: fechar, por amor, a mão aberta, e conservar o pudor ao dar”. Entre um e outro copo de absinto, o pálido Nicolai Gogol dizia: “E ficou claro que espécie de criatura é o Ser humano, o sábio, o inteligente, o sensato em que tudo o que se refere aos outros, mas não a ele próprio”.

      Estou entre os que, como Ana Cristina César, escrevem por afrontamento, e para não renunciar à sua maldade. Ser muitas vezes reincidente no crime de escrever torna-me mais perigoso para a sociedade dos normóides bem-sucedidos. Mas sinto-me impotente para romper com tal vício. Até porque escrever é uma maldade de que dificilmente se recupera, visto que nos libera do assédio subterrâneo de nossos medos e de nossos demônios interiores. Nossa arte há de ser a marca de nosso degredo, a solidão de nosso exílio aqui — a pena auto-imposta pelo artista que recusa a mornidão da mediocridade, a falácia e a mesmice da normose social, como assinala Hélio Pellegrino: “As palavras — e, de resto, quaisquer símbolos — são um código e uma álgebra. Elas operam através das leis do discurso, através de signos que se põem no lugar das coisas, sem a presença delas. Toda arte, portanto, é tingida de ausência, e fala sempre de uma pátria perdida. Toda arte é exílio”.

      O exílio é a condição natural do homem, e voltar à pátria da felicidade é o seu maior anseio. O que busca o desterrado, em sua ânsia interminável? Assumir a sina de Ulisses, o mais obscuro dos homens? Tenta o eterno viajante, em sua errância interminável, encontrar a pátria da sua alma? Ou sonha deparar-se com o seu Eu Verdadeiro — sua verdadeira e eterna identidade? Ao que foi condenado à vida errante de jamais se aquietar, só resta sonhar em voltar ao chão da pátria, ao aconchego dos seus, em meio à fumaça do lar.

      Exilados somos todos, do berço ao túmulo, enquanto não tecemos um cosmos do caos em que nos transformamos. Saber que nascemos para morrer é o nosso maior desterro. Ao que perdeu o sol da pátria não se permite que habite o cosmo de seu eu. A nostalgia do exílio segue artistas e poetas, como se o desterro, o viver no entre-lugar, longe da pátria da infância, fosse um símbolo e um signo da condição humana. Por isto mesmo, escreveu Ovídio: “Tu, que podes, parte, meu livro, e contempla Roma!”. No mesmo sentido, assim falou Herman Broch: “Ó nostalgia de quem é sempre estrangeiro, nostalgia do homem que não poderá ser outra coisa que isto: estrangeiro, nostalgia do Homem!”.

***

      O linear morre de si mesmo, por overdose de necrose. Nega a dinâmica do infinito, o infinito movimento da vida. Tudo o que vive e se move (ou não) é mágico-mutante. Estando em todos os lugares, é como a poesia em tudo: “Não respeita pai nem mãe / e desrespeita o código das águas”. Não pede licença para chegar. O jornalista é como o diplomata: mente honestamente em favor de quem o paga. O poeta finge a dor que não sente, porque fingir é seu ofício, mesmo que seja mal pago. Se o simulacro é o seu buraco, nele recria o mundo, e vê num átimo a biblioteca labiríntica do universo. Se é sua, ou não, toda dor é maior que seu narrador. Ulisses não inventou Ítaca. Ela sempre existiu na sua alma exilada. Uma nova mudança pode acontecer quando o poeta se põe a escrever a jornada épica do morto a mudar em multidão. No silêncio criador de sua linguagem aberta rompe o mutismo cego. Torna-se Ícaro-vidente, xamãs o chamam ao mito. Escuta o grito de Prometeu, e diz ao universo: Neste momento o meu Deus Sou Eu!

      Poetas do Ego — Há poemas ditados pelo ego, e poetas cujas visões e imaginações cristalizam-se em palavras inspiradas pelo Eu (seu profundo e ancestral Ser Verdadeiro). A diferença de Força, Verdade e Beleza Real entre um e outro chega a ser abissal. Escreve Gaston Bachelard, em O Ar e os Sonhos: “Há naturezas que banalizam as imagens mais raras. Têm sempre conceitos prontos para receber as imagens. Outras naturezas, as dos verdadeiros poetas, fazem reviver as imagens mais banais! No próprio vazio de um conceito eles fazem repercutir o bulício da Vida! (…) Mas então os poetas da vulgaridade se revoltarão, dizendo-nos: Nós também falamos no sentido forte, no sentido pleno, no sentido vivo. E exibem ricas imagens, que ressoam em sonoras aliterações. Mas todas essas riquezas são heteróclitas, todas essas sonoridades são tinidos. A todos estes ornamentos falta o Ser, a constância poética, a matéria mesma da beleza, a verdade do movimento. Só a imaginação material e a imaginação dinâmica podem criar verdadeiros poemas”.

      Diga-me se teu infinito em tudo o que julgas grandioso e eterno é o teu ego, e te direi se o teu verso é fogo de palha, que o vento apaga, ou se é chama essencial do verbo criador, que se inflama em fulgor, no esplendor ardente de tua alma. E porque “gente é outra alegria diferente das estrelas”, segundo o poeta Caetano Veloso, Walt Whitman tinha prazer em vê-las: dos orbes do universo inteiro, fazia soar seu “grito bárbaro sobre o mundo”. Esvaziado do Ego, que nele era o Eu não-nascido, intraduzível ao espaço e ao tempo, jamais sentido pelos hipócritas e os cegos deste mundo.

      Nascimento do Poema — Tudo o que vive teve uma gênese. Como nasce o poema? De que insondáveis profundezas do intelecto, ou da alma nasce a obra de arte, “quando o campo da glória está ceifado,e a colheita já começou?” O poema nasce em silêncio, como nasce a rosa, ou como madura, na solidão da semente, a árvore futura, na sozinhez de um fruto abandonado, em um canto de quintal, entre dois muros do mundo. O poema irrompe, nasce, como um ovo — ou um mundo novo. E nasce, muitas vezes, não como uma explosão, como quando a anarquia desaba sobre a terra, mas como um gemido, um choro de criança, quando uma vida nova floresce, no corpo da Vida.

      O poema perfeito nasce em estado de graça. E o poeta que o partejou, de alegria inundado, por ter sido o ventre em que o Belo foi gestado, sente que os deuses desejam renascer entre nós. O poeta “escuta os sussurros que ecoam no silêncio da sua alma” e compreende que todo instante é sem fim, até passar ao momento seguinte. E em sua lucidez de se saber e se aceitar poeta, sabe que jamais poderemos fugir de nossa sombra, se quisermos ser fiéis à nossa luz — pois a sombra sempre haverá de se esconder no lado obscuro dos espelhos.

      O poema acontece na noite escura da alma como na alva a flor desabrocha. Se nasce como rocha, pela alquimia da vida, muda-se em rosa. Eis como o poeta Geir Campos captou, em palavras, o mistério do alvorecer do dia, da obra, enfim, do milagre da vida: “Não faz mal que amanheça devagar, / as flores não têm pressa, nem os frutos: / sabem que a vagareza dos minutos / adoça mais o outono por chegar. Portanto, não faz mal que devagar / o dia vença a noite em seus redutos de leste / o que nos cabe é ter enxutos / os olhos, e a intenção de madrugar”.

      À esta altura da navegação poética a que me entrego, como argonauta do nada, há exatamente 30 anos, sabendo serem muitas as emoções já navegadas, havendo oceanos de palavras ainda por navegar, já não tenho dúvida. Agora sei que, se viver é devagar, não é preciso sofrer. Pois a vida segue lenta, silente, como o lento caminhar da seiva, na solidão da semente. “Viver é perigoso” e arde dentro da noite, incendiando os homens. Só é feliz, e se acalma, apaziguado, quem busca por ofício o sonho impossível. Viver é calmo silêncio, como quando o poema nasce, na alquimia da arte: a poesia é como um silêncio abissal, madurando dentro da mente. Viver tem que ser como a leveza da arte: madurar no cio das coisas, e ser inteiro, como a árvore a germinar na solidão da semente.

      “Para escrever um único verso, é preciso ter visto muitas cidades, homens e coisas. É preciso conhecer os animais, é preciso sentir como voam os pássaros e saber que movimentos fazem as florzinhas quando se abrem de manhã”, escreveu Rainer Maria Rilke — um que viveu e realizou a poesia da vida, ao contrário de muitos poetastros para si mesmos, e poetisas gloriosas (para os de seu círculo familiar), cujo escrever é movido pela cegueira acesa de seus egos inchados — pois são pálidos palradores de vanidades egolátricas, biógrafos de suas miudezas e mesquinharias existenciais.

      Para a escritora e poetisa Érica Jong, escrever absorve mais energia do que o poeta imagina possuir: “A energia vem do amor. Leva um espasmo de amor para escrever um poema, e vários espasmos para escrever um conto, e centenas para escrever um romance”. Mas só se a energia que impulsiona o ato criador tiver boa qualidade, e se for verdadeira, e não um ato masturbatório da vaidosura humana. Se a arte que se gesta no ventre do espírito humano não for puro cristal, e não nos ajudar a sonhar, não valerá o esforço de ser lida, nem compensou a vanglória de ser escrita.

      A Coragem de Criar — “Os artistas são em geral pessoas tranqüilas, preocupadas com suas visões e imagens interiores. Mas isto é justamente o que assusta a sociedade opressora. São os portadores da capacidade humana, antiga como o mundo, de se insurgir. Adoram mergulhar no caos para nele criar a forma, do mesmo modo que Deus criou o mundo. Eternamente insatisfeitos com tudo o que é mundano, apático e convencional, estão sempre nos conduzindo a mundos novos. São os criadores da consciência não criada da raça”. Assim falou Rollo May, professor, teólogo e psicanalista, em seu livro A Coragem de Criar (Nova Fronteira). Os artistas são criaturas ao mesmo tempo maravilhadas e apavoradas, pois estiveram à margem do Grande Segredo. Perderam muito cedo um bem vital — uma pessoa querida, e o resto de suas vidas não foi senão o dia seguinte a este terrível acontecimento.

      Os verdadeiros artistas são antenas da raça. Vate é aquele que vaticina, porta-voz de Apolo, no santuário de Delfos, onde o vidente vê o futuro em meio às sombras do mundo. Se, como nos diz Kierkegaard, “o Eu é apenas aquilo que está em processo de vir a ser”, para Rollo May, o poder de criarmos o nosso próprio Eu com base nessa liberdade é inseparável do conhecimento de nós mesmos. E o insondável mistério, que todo artista busca, por toda a vida, compreender, pode ser resumido no fato de que, nesta busca eterna de revelar para si mesmo o seu Eu, ele não conhece sua mãe, sua mulher, que dorme com ele todos os dias — não conhece os seus filhos, e a si mesmo não conhece. E se conhecesse a si mesmo correria de medo. O país que escuta seus artistas é diferente da nação que os ignora, ou despreza, afirmou Ezra Pound. Os primeiros impõem-se como nações civilizadas, enquanto os últimos desaparecem, sem deixar vestígios de que refletiram um dia a voz e a vida de um povo: “Não é, Raana, que eu cante mais alto ou melhor do que os outros. É que eu bebo da Luz, enquanto os homens menores bebem vinho”.

      O mundo será o melhor dos mundos, no dia em que todas as criaturas humanas se transformarem em Pessoas. E depois deste prodígio coletivo nunca mais os homens passarão pelos homens “como se os homens fossem apenas homens”. A missão de criar implica em perigo e vertigem — e criar, hoje, é criar perigosamente, em um mundo em que tudo é permitido e que nada perdoa. Não a “criação de lodo”, que se alimenta do pântano da mesmice, em que a metáfora mais ousada é invocar o telurismo urbano de nosso jardim de inverno, a saborosa manga, ou a cheirosa jaca que deram sabor e sentido à nossa longínqua e morta infância. O trabalho do poeta “consiste em não esperar que o grito se forme na garganta”.

      O Preço da Solidão — Para Rollo May, a eterna ansiedade é o preço a pagar pelos que assumem seu destino de Sísifo e Ulisses: o de mergulhar, de cabeça, na vertigem do vazio — a aventura de criar. Embora seja alto o preço a pagar pela graça de conduzir o facho da “loucura divina”, que é criar, os verdadeiros artistas “não fogem ao não-ser, lutam com ele e o obrigam a produzir o Ser. Batem à porta do silêncio, à espera da resposta musical; perseguem a ausência de sentido, e a obrigam a significar. Van Gogh, Cézane, Arthur Rimbaud, Baudelaire, Dostoiévski, Antonin Artaud — todos pagaram, com dor e sofrimento, o preço que a sociedade lhes cobrou, pelo “crime hediondo” de terem sido eles mesmos, na vertigem de não negar suas visões, e de não trair a estrela da fantasia, e a miragem dos sonhos que os guiaram à loucura e ao desespero.

      Se foram “suicidados pela sociedade” do tempo dos homens sem alma, não importa. Eles buscaram o Encontro, e nunca mais foram os mesmos, depois que se viram diante do oceânico alumbramento. Só quem, como William Butler Yeats, um grande poeta, pode ter a lucidez profética de ver “a simples anarquia reinar sobre a terra”. Assim como Virgílio anunciou a morte do tempo antigo, e a aurora de um tempo novo, na figura de um menino (Jesus Cristo) cuja missão seria a de trazer a esperança ao mundo morto, só um grande vate poderia vaticinar A Segunda Vinda: “Mal se anunciam estas palavras/ e uma figura imensa perturba-me a visão;/ em algum lugar, sobre as areias do deserto,/ uma forma com corpo de leão e cabeça de homem,/ olhar vazio e impiedoso como o sol,/ move os francos lentos…/ que animal bravio, chegada afinal a sua hora,/ arrasta-se em direção a Belém para nascer?”.

      Para o ensaísta e poeta Fernando Py, “o mundo ideal seria aquele em que o emprego de polícia seria considerado uma sinecura”. Para mim, ideal seria um mundo que dispensasse o desemprego crônico dos poetas, pois a poesia, estando escrita em tudo, por todos seria vista a flamejar, vibrante e calma, no corpo poroso da vida. O poeta escreve porque olha para o mundo e, ao ver seu rosto mais antigo no espelho do tempo, vê a vida incompleta. Em vão, busca o esteta mirar, no espelho das idades, o seu primeiro rosto — seu primeiro rosto, dentre todos. Muitas vezes o poema surge com urgência e alarido de grito de alguém que olha para o mundo e não vê sentido lógico, em tanto absurdo a galopar sobre a terra como besta do apocalipse. Se sabe que não pode mudar o mundo caduco, que não acredita na vida e duvida das coisas, então para que escreve o poeta? Sabendo que, praticamente, escreve para outros poetas, lobos das estepes, como ele, a ganir para a eternidade, a quem dirige seu murmúrio e vagido? O poeta escreve para não morrer? Ou escreve para que o amem?

     Visto ser o poema, em si mesmo, um mistério indecifrável, ninguém teria o poder de decifrar tal enigma essencial. Rosebud é, e será sempre, a palavra que falta no quebra-cabeças da vida. A palavra que falta. E se viesse, seria pobre e rasa, como tudo visível. O artista entrega-se às vertigens da criação sabendo que ela não é nem jamais será o encontro, mas a viagem. No itinerário de sua angústia e de sua incompletude, sem saber porque escreve, muitas vezes acorda, dentro da noite, a escrever vertigens de sonâmbulo, sem ao menos saber o que escreve. Como se deu com Jorge de Lima quando, alta noite, noite adentro, escreveu este poema: “Alta noite, quando escreveis / um poema qualquer, sem sentirdes o que escreveis / olhai vossa mão / que vossa mão não vos pertence mais / olhai como de instante em instante / repousa sobre vossa mão inativa / uma luz misteriosa. / Se não credes, / olhai as chagas sobre a mão que escreve”. Terrível é saber que a mão que escreve pode ser a mesma que apedreja e mata, uma vez sabendo que Deus colocou sobre nosso rosto a marca de Caim. A boca que escarra sempre é a mesma boca que beija, sendo desejável, somente, que uma coisa e outra sejam feitas em instantes diferentes.

      Sobre isto escrevi, em meu livro O Tempo dos Homens Sem Rosto: “A boca é ponte de comunhão, e estranhamento,/ no insondável mundo dos homens / A boca aceita, ou recusa,/ conforme a fome e o desejo, / o nojo e o nirvana./ Não escovo os dentes/ com a escova da bem-amada, / mas chupo-lhe a língua,/ e a minha língua, toda / a sua boca/ gulosa, entrego./Minha boca guarda a memória /de beijos que nunca dei./ São gritos, gemidos, nirvanas, gestos,/que o tempo / e a vida carregaram? Trago na pele a memória / de gestos que adiei./ Agora, que roço a pele/ e o pênfigo das palavras, / e não mais temo / as solidões do corpo, / posso habitar o frêmito / e ver, no espelho, que / em meu rosto estrangeiro / ainda há nirvana. / Na memória da pele / um anjo gauche me contou: / a única anormalidade é não amar. Nos labirintos do dia / um anjo bêbado / ainda me diz: / só é imoral / não ser feliz”.

      O poeta, muitas vezes, é profético, em suas palavras, como o foi Carlos Drummond de Andrade, quando, antecipando (e quem sabe se desejando) o horror dos ataques terroristas a Nova York, escreveu: “O poeta escreve poemas porque não pode, sozinho, dinamitar a ilha de Manhhattan”. Além do anjo gauche itabirano, outros poetas profetizaram as cenas dantescas, que vimos, pelas televisões, como se fosse algum filme B americano, em que eles, tantas vezes, filmaram o que a vida copiou. Em sua visão do terror e da insanidade a semear o medo e a violência sobre todas as vidas, o poeta escreveu: “O mundo se despedaça / nada mais o sustenta / a simples anarquia / desaba sobre a terra”. Eu mesmo, já em 1972, em meu livro de estréia, Sermões do Ateu, escrevi um recado apocalíptico de pânico de pessoas a fugir do horror e do absurdo: “Serão muitos para um só beco / mas as avenidas estarão engarrafadas / e não haverá gesto / que represente / em símbolo alguma coisa”.

       Lutar com palavras é a luta mais vã. No entanto, lutamos, mal rompe a manhã. Se, em sua luta pela liberdade, o poeta vê-se aprisionado, como Thiago de Mello, nas paredes do cárcere, escreve palavras libertárias: ‘É preciso que liberdade / seja a primeira palavra / a ser escrita nesta cela / pra que amanhã / seja companheira / de quem precise dela”. Para quem escreve o poeta, dentro das noites vazias da velha boemia, a que se entrega, com desespero de náufrago? Na visão de Osman Lins, o poeta escreve por não poder brincar de soltar pandorgas ao vento, com as crianças de sua rua. Não sabendo ser impossível penetrar profundamente nos mistérios da vida, o poeta penetra surdamente no reino das palavras. E mergulha, feito um Ícaro de asas quebradas, na infinitude do esplendor, que refulge, flamejante, em todas as coisas, em tudo o que vive.

       Aos poetas se cobra o crime de terem ou de não terem um cão, e a eles se imputa a arrogância de irem ao mercado para comprar uma calça, quando já têm uma. Tudo porque o amargo Augusto teve a sugismunda idéia de escarrar na boca que o beijaria. Talvez porque Marcela amou a sombria figura do bruxo de Cosme Velho — Machado de Assis — durante três meses e onze contos de réis, construiu-se, em torno dos poetas, a idéia de que só podem amar, não lhes tendo sido concedida a graça de também serem amados. Certo, o velho e sábio Rilke já dizia que o amor é uma balança sempre a pender para um lado: “Quem mais ama é o mais fraco, por isto tem que sofrer”. Sentindo ser um eterno devedor do universo — e por todos sendo cobrado, por esta dívida infinita e impagável —, o poeta revolta-se contra o fato de, quando vai ao mercado, comprar uma calça, ser admoestado: “Para que mais uma calça? Já não tens uma?”

       Nos que são poetas, de verdade, a anatomia ficou louca: eles são todo coração. Se são antenas da raça, não sei não… Se a imagem manifestada anda sujeita a trevosas trovoadas, não é culpa da antena: é que o projeto de Deus deu defeito; ou então o criador desistiu de tentar consertar o erro fatal e fatídico, de sua criação. Sabendo ser um eterno devedor do universo, como o gigante Maiakovski, todo poeta pode dizer aos néscios e aos ignaros, que não acreditam nos homens, e duvidam da essencialidade de cada coisa: “Se vocês acham que ser poeta é escrever palavras a esmo, eis aqui minha pena! Podem escrever vocês mesmos!”.

       O poeta é um fingidor? Ou é um criador de sentido? O poeta finge que não sente a sua dor, ou toma como sua, a dor dos outros? O poema só desabrocha quando chega a sua hora de florescer. Se veio à luz, em um barco bêbado, de palavras alucinadas, foi porque o poeta o carregou no útero de sua mente porosa e mutante. Quando chegou, já tinha um rosto quase perfeito. Lívido de vertigem, como descida da Luz, foi um momento de esplendor — um raio fúlgido — no oceano da unidade, a refletir a antiga idade da alma do mundo.

       E porque tudo é belo, é essencial, para quem pretende assumir, neste mundo de aparências, a significante insignificância de ser poeta, ver o belo em tudo. “Pessoas, problemas. Sem pessoas, sem problemas.” Assim falou Joseph Stálin, que via a si mesmo como guia genial dos povos, e farol da humanidade. Mas se não existem pessoas, como podem existir poemas? A pedra no caminho do poeta não é só o fato de a humanidade não suportar muita realidade. É que os humanóides não aprenderam ainda a viajar na alquimia das infinitas verdades. Muitas vezes não é o poeta quem escreve seu poema. O poema escreve o poeta, ou então escreve-se sozinho. O poeta apenas tem um lampejo de seu esplendor, na escuridão do mundo.

       O espírito das palavras, para transmutar-se em poesia, há de passar pela alquimia da Liberdade, e ser caminho do Ser, e não chegada, como deve ser a alma da água. Pois a “água anônima” sabe todos os segredos, como ressalta Gaston Bachelard: “Assim, o cheiro da menta aquática acorda em mim uma espécie de correspondência ontológica que me faz acreditar que a vida é um simples aroma, que a vida emana do Ser como um cheiro emana da substância, que a planta do riacho deve ressumar a alma da água”. Se a poesia for apenas a expressão lacrimosa de diarréias emocionais, e exprimir somente as sentimentalidades egóicas, os destemperos verbais de quem só é capaz de ver beleza e arte no jardim de inverno de sua mansão senhorial, não vale a tinta e o papel gastos para o seu feitio. Pois, segundo Pasolini, há os que escrevem poesia, mas não são poetas: “Só merecem o nome de poetas os que ousam desafiar os valores cantados pelas potências do mundo”.

 Artigo publicado originalmente em: http://www.revistabula.com

  Brasigóis Felício, é goiano, nasceu em 1950. Poeta, contista, romancista, crítico literário e crítico de arte. Tem 36 livros publicados entre obras de poesia, contos, romances, crônicas e críticas literárias.