Um mundo socialmente justo e economicamente sustentável é apenas uma utopia ou ele já se manifesta no horizonte estreito do capitalismo? O que é esse novo mundo e de quais partituras nasce a sua irreverente sinfonia? A história o alimenta, o contradiz ou é sua grande parteira?

Nesse novo mundo haverá harmonia entre o homem e a terra com os seus bens naturais e as forças produtivas da civilização. É possível, no século XXI, a instauração de uma sociedade desse tipo ou isso não passa de um sonho romântico das primitivas sociedades tribais? É pretensão romântica querer realizar neste tempo de lobos, de forma superior, o modo de vida de que desfrutava o homo sapiens arcaico?

Como dialogar, na Amazônia, sobre a utopia socialista e sustentável? É possível unificar o discurso sustentável ao socialista?

Eles não são fraternos

Nunca na história da humanidade um modo de produção e de apropriação dos recursos naturais foi tão excludente e tão poluidor. O mundo atual é uma fábrica gigantesca e incontrolável de exclusão social e de degradação ambiental. O novo mundo, sustentável e socialista, terá de se confrontar com o mundo capitalista, sua brutal exclusão econômica e sua irreparável destruição do planeta, como fonte de vida para todas as espécies.

Alguns dados – aqui relatados a várias mãos – sobre a destruição das condições de vida do planeta Terra nos alertam para uma catástrofe de proporções inimagináveis.

O mundo cresce à razão de 90 milhões de pessoas a cada ano. Nessa projeção, a população do planeta poderá vir a se estabilizar em 11 bilhões de pessoas, por volta de 2100. Os padrões de produção e consumo no mundo, hoje, estão 20% acima da capacidade de reposição da biosfera – considerando a existência de mais de 1 bilhão de pessoas passando fome.

Entre 1500 e 1850 foi eliminada uma espécie em cada 10 anos. Entre 1850 e 1950, uma em cada ano. Em 1990 desapareceram 10 por dia. Atualmente, cerca de uma espécie desaparece por hora. Entre 1975 e 2000 desapareceram aproximadamente 20% de todas as espécies de vida.

A partir de 1950 perdeu-se a quinta parte da superfície cultivável e das florestas tropicais. De 1970 a 1988 houve desmatamento de 20 milhões de hectares. Atualmente, em torno de 10 milhões de hectares são desmatados ou degradados por ano, o que representa uma área do tamanho de um campo de futebol a cada dois segundos.

A floresta amazônica está desaparecendo três vezes mais rapidamente do que na década de 1990. Vinte por cento dela já foram destruídos. Oitenta por cento das florestas originais já foram destruídos e somente 20% das florestas nativas permanecem intactos. Uma árvore é plantada para cada dez derrubadas. Nesse ritmo, a floresta tropical restante estará destruída até 2035. O planeta já perdeu metade de sua extensão florestal original, principalmente nos últimos 100 anos.

Para muitos cientistas esta é a maior onda de extinções desde o desaparecimento dos dinossauros há 65 milhões de anos. Quase 24% dos mamíferos, 12% dos pássaros e quase 14% das plantas enfrentam essa ameaça, em grande parte devido à destruição do seu habitat.

A cada ano perdem-se 25 milhões de toneladas de húmus por causa da erosão, salinização e desertificação e, devido à degradação do solo, o planeta perde por ano mais de sete milhões de hectares de terras cultiváveis.

Na última metade do século passado o mundo perdeu 62% de suas reservas de água potável. A quantidade de água potável acessível – seja em lagos, rios ou represas – representa menos de 0,25% do total de água doce. Em 1995, 27% da população da América Latina e do Caribe não tinham acesso a essa fonte vital. Estima-se que mais de 2 bilhões de pessoas no mundo não tenham acesso à água potável e mais de 5 milhões (um número dez vezes maior que o de mortos em guerras em todo o mundo), crianças na maioria, morram, a cada ano, de doenças causadas por água contaminada que provoca mais de 1 bilhão de enfermidades. A cada ano 500 milhões de toneladas de lixo perigoso são produzidas no mundo. Apenas os Estados Unidos da América são responsáveis por 50% desse lixo! A biodiversidade dos ecossistemas de água doce diminuiu 45% de 1970 até 1996. Já o ecossistema marinho perdeu 35% de sua biodiversidade nestes mesmos 26 anos. O consumo de fertilizantes aumentou de 12 para 80 milhões de toneladas por ano no intervalo de 26 anos.

Desde 1950 em torno de 600 mil espécies têm desaparecido e cerca de 40 mil estão ameaçadas. O aumento da extinção pode ser agravado pelo desenfreado consumo humano, pela poluição dos recursos naturais.

De acordo com uma forte corrente de cientistas, a Terra ingressou numa nova era – o “antropoceno” – caracterizada por mudanças globais no meio-ambiente como produto da ação humana. Devido ao seu sucesso como espécie, os seres humanos se transformaram em uma “força geológica” de certa importância.

Estamos começando a pagar um alto preço pela crueldade imposta às árvores, aos animais e pela deterioração das condições de sobrevivência e da qualidade de vida de todos os seres que aqui habitamos.

O bondoso lobo mau

Como frear essa destruição e iniciar a reconstrução das condições originais do planeta? O capitalismo é capaz de interromper a barbárie por ele mesmo criada contra os recursos naturais da Terra? Por que o planeta continua esquentando se, com apenas 1% do Produto Interno Bruto mundial, é possível reduzir entre 30% e 40% as emissões de carbono na atmosfera? Elas são uma das principais causas para o aquecimento global.

O capitalismo não tem cura! Destrói a Terra e suas fontes de vida, mas se movimenta dando a aparência de que quer salvá-la. Esse movimento tem um nome bonito e charmoso. Perfumado por “teorias” ambientais, e protegido por grandes corporações empresariais, o ecocapitalismo é um contra-senso e uma fantasia.

Os românticos acreditavam numa Terra sadia, apesar da exploração de classe (escravista, feudal, capitalista). [O movimento de sustentabilidade atual os segue.] Ingenuamente, para parte substancial da humanidade, o capitalismo, que transformou os bens naturais em mercadoria, matará a sua própria filha: a poluição, em todos os seus ângulos.

O capitalismo se entrelaça no Paradoxo de Jevons, assim chamado depois de William Stanley Jevons ter publicado, em 1865, A questão do carvão. Segundo ele, a melhoria nos motores a vapor que diminuíam a utilização de carvão por unidade de output também serviu para aumentar a escala de produção, pois mais e maiores fábricas foram construídas. Portanto, o aumento da eficiência na utilização do carvão teve o efeito paradoxal de expandir o consumo total de carvão.

Dessa forma, o problema ambiental do planeta não será superado nos marcos do capitalismo, com seu desenvolvimento das forças produtivas e com sua crescente evolução tecnológica. Bastaria o restante do mundo ter níveis de consumo semelhantes ao dos Estados Unidos e o petróleo acabaria em 30 dias. Enquanto, por exemplo, os milhões de carros particulares não forem substituídos por centenas de ônibus, trens e metrôs de qualidade, a humanidade continuará sonhando em deter a inexorável destruição das condições de vida no planeta.

Amor à primeira vista

Os primeiros críticos desse modelo de civilização capitalista foram os românticos: de Rousseau até nossos dias, o romantismo protestou contra a quantificação, a mecanização e o desencantamento do mundo, em nome de valores culturais, sociais, éticos pré-capitalistas. Leonardo Vieira e Cláudio Francisco Medeiros nos levam a uma viagem entre o romantismo e o marxismo, demonstrando que a perspectiva socialista morre em si mesma se não unir o desenvolvimento das forças produtivas à preservação dos recursos naturais.

Em Tempos difíceis – um dos romances preferidos de Karl Marx – Charles Dickens descreve a cidade industrial imaginária como uma “vilã cidadela” onde o “tijolo opunha uma resistência tão grande à entrada da natureza quanto à saída do ar e dos gases mortíferos”.

O socialismo e a ecologia são, cada um à sua maneira, herdeiros da crítica humanista. Seus objetivos comuns implicam a superação da racionalidade instrumental, do reino da quantificação, da produção como objetivo em si, da ditadura do dinheiro, da redução do universo social ao cálculo das margens de rentabilidade e à necessidade da acumulação do capital. Tanto o socialismo quanto a ecologia reivindicam valores qualitativos: o valor de uso, a satisfação das necessidades, a igualdade social para o primeiro, a salvaguarda da natureza e o equilíbrio ecológico para a segunda.

Dito isso, divergências de fundo têm mantido, até aqui, uma separação entre “vermelhos” e “verdes”, entre marxistas e ecologistas. Estes acusam Marx e Engels de produtivismo. Será que tal acusação é justificada?

Não, na medida em que – mais do que ninguém – foi Marx quem denunciou a lógica capitalista de produção, a acumulação do capital, das riquezas e das mercadorias como objetivo em si. A própria idéia de socialismo é de uma produção de valores de uso, de bens necessários à satisfação de necessidades humanas. Para Marx, o objetivo supremo do progresso técnico não é o crescimento infinito de bens [o ter], mas a redução da jornada de trabalho e o aumento do tempo livre [o ser].

Marx e Engels deixaram textos que mostram uma visão mais crítica das “forças produtivas”. Por exemplo, em A ideologia alemã há a seguinte informação:
“‘No desenvolvimento das forças produtivas chega-se a um estágio em que surgem forças produtivas, e meios de circulação, que só podem ser nefastos no âmbito das relações existentes e já não são forças produtivas, mas forças destruidoras [o maquinismo e o dinheiro]”.

Encontra-se, em O Capital, o célebre trecho sobre a agricultura capitalista:
“Assim, ela destrói não só a saúde física do operário urbano, mas também a vida espiritual do trabalhador rural. Cada passo dado em direção da agricultura capitalista, cada semente de fertilidade em curto prazo, constitui, ao mesmo tempo, um agravamento na ruína das fontes duradouras de tal fertilidade. Quanto mais um país – por exemplo, os Estados Unidos – desenvolve-se na base da grande indústria, tanto mais rapidamente realiza-se esse processo de destruição”.

Portanto, a produção capitalista só desenvolve a técnica e a combinação do processo de produção social ao mesmo tempo em que esgota as duas fontes de onde brota a riqueza: a terra e a força de trabalho.

Em O Capital, Marx não se limitou à análise das conseqüências da acumulação capitalista para o trabalhador, mas também para o próprio meio natural:
“Com o predomínio sempre crescente da população urbana, acumulada em grandes centros, a produção capitalista concentra, por um lado, a força-motriz histórica da sociedade, mas, por outro, dificulta o intercâmbio entre o ser humano e a natureza, isto é, o regresso à terra dos elementos do solo gastos pelo homem na forma de meios de alimentação e vestuário, ou seja, perturba a eterna condição natural de uma fecundidade duradoura da terra”.

Até mesmo em Engels, que celebrou amiúde o “controle” e o “domínio” humanos sobre a natureza é possível encontrar escritos que chamam a atenção, da forma mais explícita, para os perigos de tal atitude. Vejamos, por exemplo, o seguinte trecho do artigo “O Papel do Trabalho na Transformação do Macaco em Homem”:

“Não devemos vangloriarmo-nos demais com nossas vitórias humanas sobre a natureza. Para cada uma dessas vitórias, a natureza vinga-se à nossa custa. É verdade que cada vitória dá-nos, em primeira instância, os resultados esperados, mas em segunda e terceira instâncias, apresenta efeitos diferentes, inesperados, que, freqüentemente, anulam os resultados já obtidos. As pessoas que, na Mesopotâmia, Grécia, Ásia Menor e alhures, destruíram as florestas para obter terra arável, nunca imaginaram que, ao eliminarem juntamente com as florestas os centros de coleta e os reservatórios de umidade, estavam lançando as bases para o estado desolador de tais países”.

E, mais adiante: “Os fatos lembram-nos, em cada instante, que não reinamos, de modo algum, sobre a natureza como um conquistador reina sobre um povo estrangeiro à semelhança de alguém que estivesse fora da natureza, mas que fazemos parte dela como nossa carne, nosso sangue, nosso cérebro, que estamos em seu seio e que todo domínio sobre ela reside na vantagem que temos, em relação ao conjunto das outras criaturas, de conhecer suas leis e poder servir-nos dela de forma criteriosa”.

Não seria difícil encontrar outros exemplos.

Socialismo num planeta destruído?

A necessidade de frear a destruição do planeta, mesmo nas condições do capitalismo, decorre da constatação de que o socialismo não se realizará no espaço vazio. Não haverá socialismo numa terra destruída, sem recursos naturais, para distribuí-los entre os homens. A água, o ar, as florestas e os recursos minerais precisam ser preservados e/ou repostos, em parte, para que se possa empreender sua distribuição. Os capitalistas – com seu estômago de lagarta – estão consumindo a riqueza que pertence ao homem, na sua forma universal.

O teórico marxista Michel Löwy nos brinda com um texto que exige uma reflexão sobre a aliança entre os comunistas e os ecologistas – entre “vermelhos” e “verdes”. O objetivo dessa aliança é expressar a necessidade de conter, nas condições do capitalismo, a destruição das riquezas naturais – ecologia – que pertencerão, no futuro, a todos os homens – socialismo.

A grande contribuição da ecologia foi – e continua sendo – levar-nos a tomar consciência dos perigos que ameaçam o planeta em conseqüência do atual modo de produção e consumo: o crescimento exponencial da poluição do ar, do solo, da água, a eliminação de espécies vivas, a desertificação das terras férteis, a acumulação de dejetos nucleares incontroláveis, a destruição em um ritmo acelerado das florestas, o efeito estufa e o perigo de ruptura da camada de ozônio (que tornaria impossível a vida orgânica no planeta) configuram um cenário de catástrofe que coloca em questão a própria sobrevivência da humanidade. Estamos enfrentando uma crise de civilização, que exige mudanças radicais.

É preciso uma estratégia de aliança entre os “vermelhos” e os “verdes” – o movimento operário e a ecologia – e de solidariedade com os oprimidos e explorados do Sul.

A utopia revolucionária de um socialismo verde não significa que não se deva agir desde agora. Não ter ilusões sobre a possibilidade de “ecologizar” o capitalismo não quer dizer que não se possa empreender o combate em favor de reformas imediatas. Por exemplo, algumas formas de ecotaxas podem ser úteis com a condição de que sejam aplicadas a partir de uma lógica social igualitária (fazer os poluidores pagarem, não os consumidores) – com a condição de que seja abandonado o mito do cálculo econômico pelo “preço de mercado” dos estragos ecológicos: trata-se de variáveis incomensuráveis do ponto de vista monetário. Temos uma desesperada necessidade de ganhar tempo e lutar imediatamente pela proibição dos CFCs que destroem a camada de ozônio e pela limitação severa das emissões de gás responsáveis pelo “efeito estufa”, assim como privilegiar os transportes coletivos em relação ao carro individual poluente e anti-social. O combate em favor das reformas ecossociais pode ser portador de uma dinâmica de mudança, de “transição” entre as demandas mínimas e o programa máximo:

• A promoção de transportes coletivos – trem, metrô, ônibus, bonde – baratos ou gratuitos como alternativa aos engarrafamentos e à poluição provocados nas cidades e zonas rurais pelo carro individual e pelo sistema dos transportes rodoviários;
• a luta contra o sistema da dívida e dos “ajustamentos” ultraliberais imposto pelo FMI e pelo Banco Mundial aos países do Sul, com dramáticas conseqüências sociais e ecológicas: desemprego massivo, destruição da proteção social e das culturas alimentícias, assim como dos recursos naturais destinados à exportação;
• defesa da saúde pública contra a poluição do ar, da água (lençóis freáticos) ou da alimentação pela avidez das grandes empresas capitalistas; e
• a redução do tempo de trabalho como resposta ao desemprego e como visão da sociedade que privilegia o tempo livre em relação à acumulação de bens.

A deusa Amazônia em trabalho de parto

Quando um ecossistema morre, ele morre para proprietários de meios de produção e para os não proprietários (ricos e pobres), mas isso não significa que o mundo acabará uniformemente para todos.
Aqui na Amazônia vemos de perto a destruição desses ecossistemas. Como meninos desarmados, sabemos o que fazer, mas não temos os meios. Identificamos na produção capitalista e no seu irracional consumo a fonte de toda a destruição. Alguns fenômenos são tenebrosos.

O gás carbônico está mudando o padrão de crescimento das árvores da Amazônia. Os cientistas suspeitam de que a elevação da concentração de gás carbônico esteja fertilizando as florestas e aumentando a competição pela luz, água e nutrientes no solo. Desta forma, as árvores grandes e de crescimento rápido têm uma vantagem.

Há muito a relatar, aqui, sobre os fenômenos estranhos que vêm ocorrendo na Amazônia. As condições originais de sua pujante floresta e de seus majestosos rios estão sofrendo uma mutação irreversível. Como uma criança atingida por gases mortais, a Amazônia se contorce em dor.

Meu futuro tem valor

Nossa luta será conter a destruição das formas de vida ainda existentes e dos recursos naturais. Precisamos de alianças amplas em torno dessa luta. O capitalismo não fará concessões. Os capitalistas sabem que quem sofrerá, com a escassez de recursos naturais, são os pobres do Sul, da África, da Ásia e do Oriente Médio. Os ricos encontrarão formas de se proteger. São os pobres os verdadeiramente atingidos pela estúpida destruição das condições de vida no planeta.

Nessas condições adversas precisamos incorporar a nosso cotidiano político as principais bandeiras do movimento ecológico, mesmo reconhecendo sua limitação nas condições do capitalismo. Será fundamental a contribuição dos comunistas, ao interpor o componente socialista na luta pela preservação do planeta. Assim como será decisiva a incorporação das bandeiras ecológicas ao imaginário marxista, não permitindo que o desenvolvimento das forças produtivas cause sofrimento e morte às formas de vida indefesas e aos recursos naturais finitos.

O grande objetivo será acumular forças na luta ambiental e socialista, atraindo aliados para a grande tarefa de devolver o planeta a seus verdadeiros donos. Realizada essa tarefa, cuidaremos da Terra como um filho cuida de sua mãe. Nossa atenção estará voltada para as mais modernas tecnologias de utilização dos recursos naturais e, principalmente, para sua distribuição. O consumo será sustentável, na compreensão de que a Terra não é inesgotável, como uma mulher que, em determinada idade, cessa sua capacidade de reprodução.

Moisés Diniz é deputado estadual pelo PCdoB/AC.

EDIÇÃO 90, JUN/JUL, 2007, PÁGINAS 47, 48, 49, 50, 51, 52