Os desafios da esquerda no México
O auge do processo de renovação dos poderes federais no México aconteceu em 1º de dezembro passado com a legitimidade do protesto do novo presidente da República, Felipe Calderón Hinojosa. Assim teve início o segundo governo do partido da direita mexicana, o PAN (Partido Ação Nacional), depois de Vicente Fox, em 2000, ter derrotado o PRI (Partido Revolucionário Institucional) há 71 anos no poder. Para a esquerda mexicana organizada no PRD (Partido da Revolução Democrática) e para Andrés Manuel López Obrador, o candidato da CPBT (Coalizão Para o Bem de Todos), o início do governo calderonista marca uma nova etapa em sua luta, trazendo grandes desafios. Este artigo refere-se a eles.
Enquanto na América Latina os triunfos eleitorais da esquerda, em suas diferentes expressões, abrem-lhe caminho para chegar ao governo em grande número de países, no México ela ficou na ante-sala com apenas 0,58% de diferença – em termos quantitativos isso significa 244 mil votos. Certamente, uma eleição bastante disputada que merecia, como pediu a CPBT no momento oportuno, uma recontagem dos votos para obter a certeza necessária aos resultados. Tal pedido não foi aceito por Calderón Hinojosa nem pelo TEPJF (Tribunal Eleitoral do Poder Judiciário da Federação), cujas decisões são inatacáveis em razão de seu caráter de máxima urgência jurisdicional na matéria.
Desse modo, o novo presidente da República chega ao poder com um grande déficit de legitimidade, apesar de preencher os requisitos legais para ser nomeado como chefe do Executivo federal. Em relação a isso, é bom lembrar que a fonte da legitimidade não é somente a lei, mas também – e muito importante – a aceitação social dos governados. Com um México dividido em dois, esse não é o caso do novo presidente da República.
Uma longa crise de fim de regime
Essa conjuntura política não poderia ser explicada sem nos lembrarmos de que no México nos encontramos afundados em uma grande crise de fim de regime, iniciada há aproximadamente duas décadas – precisamente em 1988. A partir de então – e em conseqüência dos estragos sociais provocados pela política neoliberal iniciada em 1982 – registrou-se uma rebelião cidadã nas urnas, causando surpresa ao regime priísta. Até esse momento todos indicadores apontavam um insignificante interesse por parte da população em relação aos processos eleitorais. A ela era essencialmente indiferente votar ou não devido à certeza de que o PRI sempre ganharia as eleições.
Isso se explicava não apenas pelo sistema de partido quase único, mas também porque na realidade esse partido funcionava também como um partido de Estado de modo que não havia uma competência eleitoral real. Daí que fosse um fenômeno recorrente saírem das urnas votos para o partido oficial – inclusive em maior número que o de votantes registrados. O milagre explicava-se facilmente: o governo mantinha controle sobre os processos eleitorais do início ao fim.
Dessa forma o massivo afluxo de votantes a favor de Cuauhtémoc Cárdenas Solórzano significou um divisor de águas na história política mexicana. A partir daí o velho regime foi ferido de morte, pois se tornou evidente que a funcionalidade eleitoral de seus controles corporativos e clientelistas havia sido debilitada. Nessa época ficou evidente também o surgimento de um novo sujeito social, o cidadão, que, massivamente deu vida a um movimento democrático cujo eixo foi o respeito à vontade popular para eleger seus governantes. Esse movimento não retrocedeu em seu empenho até tirar das mãos do governo a organização das eleições. Desse processo resultou a reforma eleitoral aprovada em 1996.
Mas em 1988, apesar de todas as evidências do triunfo da oposição de esquerda, com a sutileza de uma suposta “queda do sistema” na contagem dos votos, foi possível ocorrer uma grande fraude contra a Frente Democrática Nacional e o seu candidato Cárdenas Solórzano. A partir daí Carlos Salinas de Gortari chegava ao poder com um caudal de legitimidade bastante semelhante à que hoje pesa sobre Calderón Hinojosa.
O fato de quase duas décadas depois ser gerada uma situação política semelhante em torno de uma eleição presidencial no México nos diz que, apesar do avanço atingido na conquista da democracia eleitoral, este país continua sofrendo com a ausência de um pacto social democrático que atinja a plena democratização de suas instituições e uma mudança de política econômica que garanta a inclusão das grandes maiorias nos benefícios do crescimento, bem como a recuperação de sua soberania. Refiro-me, certamente, à necessidade de ajustar a transição democrática – um desafio não resolvido desde 1988.
Alternância política sem mudança de regime
Sem dúvida, a conquista democrática da reforma de 1996, criada na cidadanização dos órgãos eleitorais, permitiu a alternância política de 2000. Uma alternância que significou apenas mudança de partido no poder, pois deixou intactos os principais pilares do velho regime – como o controle corporativo dos sindicatos. E apesar de esses sindicatos corporativos já não exercerem a funcionalidade eleitoral de antigamente indubitavelmente continuam sendo peça-chave para o rebaixamento salarial e para as condições trabalhistas de que sofrem os trabalhadores nos últimos 25 anos. A alternância tampouco significou o fim dos privilégios e da corrupção – práticas apreciadas com as quais são articuladas as cumplicidades entre o poder econômico e o poder político.
Para a manutenção desses privilégios e cumplicidades foi necessário romper com o único acordo da classe política, criado na reforma eleitoral de 1996: o respeito ao voto cidadão. Esse rompimento foi deflagrado no governo de Vicente Fox. Primeiro pelo desaforo de Andrés Manuel López Obrador como chefe de governo do Distrito Federal com a intenção de retirá-lo da disputa eleitoral de 2006 – tentativa fracassada graças à grande mobilização popular – e, segundo, por sua intromissão na campanha eleitoral.
Desse modo, evidentemente, a democracia formal converteu-se num avanço político precário diante da necessidade de dar vida a um regime autenticamente democrático que permita resolver os graves problemas sociais do país. Evidentemente, a direita também tudo faz para difamar tais avanços e com isso abrir caminho à política de mão de ferro. Em seu último ano de governo, Vicente Fox aplicou essa política de modo sistemático como resposta aos movimentos trabalhistas e populares. Refiro-me às graves repressões sofridas pelos trabalhadores mineradores de Sicartsa em Michoacán; pela população de Atenco; e pela APPO (Assembléia Popular dos Povos de Oaxaca). Agora, a poucos dias do início do governo calderonista, essa política de mão de ferro tornou-se patente com a detenção e envio para uma prisão de segurança máxima do principal dirigente da APPO, minutos antes de entrar na Secretaria de Governo em busca de um início de diálogo com o novo governo.
Além disso, dentre as primeiras ações de Felipe Calderón, encontra-se também a operação de aperfeiçoamento do exército em Michoacán para combater a insegurança pública gerada pelo narcotráfico (mais de 500 execuções em 2006). Quantas dessas medidas que se pretende estender a outras regiões podem tornar-se efetivas sem um trabalho de inteligência eficaz e de redução das tropas policiais é uma interrogação que fica no ar. O certo é que à política de violação de direitos humanos, aplicada no país, essas ações de força são muito convenientes ao propósito de legitimar a presença das Forças Armadas nas ruas e também de legitimar o virtual estado de exceção criado ao seu redor.
Por isso, a petição do Executivo Federal à Câmara de Deputados para aprovar um significativo aumento de recursos orçamentais para 2007 nas áreas de Defesa Nacional e Segurança Pública, em detrimento de prioridades sociais como educação.
Sem dúvida, apenas iniciado o respeito à vontade popular – que, em 2000, deu vida à primeira alternância política no país –, essa conquista converteu-se imediatamente em obstáculo à continuidade dessa política de privilégios ao capital financeiro internacional, à inversão estrangeira direta e aos capitais nacionais associados que mantêm a economia mexicana quase-extinta. Ao insuficiente crescimento econômico soma-se a forte deterioração das condições de vida da população enquanto persistem salários de miséria. E os empregos gerados, além de sua baixa qualidade, são insuficientes para absorver 1.250 milhões de jovens a cada ano incorporados ao mercado de trabalho. Essa política econômica excludente requer procuradores da direita para garantir sua continuidade, que se viu claramente ameaçada pelo aumento das preferências eleitorais por Andrés Manuel López Obrador.
Esse temor de perder seus privilégios é que provocou o desenvolvimento da campanha de medo contra a candidatura de López Obrador, desenvolvida não apenas pelo ex-presidente Vicente Fox e o PAN como também por grandes grupos empresariais. A isso é necessário incluir a ação de um exército de mapaches eleitorais no dia da votação, comandado pela líder real do poderoso SNTE (Sindicato Nacional de Trabalhadores da Educação), que manipulou as cédulas eleitorais para alterar os resultados em favor de Calderón Hinojosa. Isso foi possível em razão da ausência de representantes da CPBT nas seções eleitorais, principalmente na região norte do país. Uma lamentável falta de organização.
Dessa forma, no contexto da grande crise aberta a partir de 1988, obviamente a direita reorganizou-se para impedir a esquerda de chegar ao poder e, com isso, à mudança da política econômica e à plena democratização do país. Em 1994 houve um confronto eleitoral parcial, como reconheceu o próprio candidato priísta vencedor, Ernesto Zedillo. Em 2000, a combinação de um candidato carismático com recursos de duvidosa origem para sua campanha, captados por uma organização paralela denominada Amigos de Fox, cujos atos ilegais foram encobertos com a cumplicidade do PRI. E, atualmente, para que em 2006 a direita retornasse ao poder, além da ingerência do ex-presidente Vicente Fox a favor do candidato do seu partido na batalha eleitoral, houve muitos favores que fizeram dessa campanha tudo menos um confronto democrático e legal. Ficaram muito longe os princípios constitucionais de “certeza, legalidade, independência, imparcialidade e objetividade” como guia das eleições. Se antes de 2 de julho a transição democrática no México encontrava-se paralisada, com a sentença do TEPJF tal transição foi usurpada.
A ruptura do pacto social
Na raiz dessa grande crise de fim de regime encontra-se a ruptura do pacto social que surgiu na Revolução Mexicana, plasmada na Constituição de 1917, vigente até 1982 – um pacto corporativo cuja novidade, em relação ao século XIX, foi o reconhecimento dos direitos sociais dos trabalhadores e uma política de distribuição de benefícios – num oceano de profundas desigualdades sociais –, mas também a negação de direitos políticos, que deu vida a um regime autoritário que, apesar de tudo, nega-se a morrer. Não em vão, pois, graças a esse autoritarismo enraizado na ausência de liberdade e de democracia sindicais, os poderosos grupos econômicos obtiveram gordos rendimentos e a classe política pôde reproduzir-se num mundo de benesses, corrupção e benefícios. Muito distante está a experiência de milagre econômico mexicano, expressa a partir de 1950 ao longo de três décadas com níveis de crescimento em 6% em média e sem inflação durante os primeiros vinte anos. No contexto dos países latino-americanos, não é casual que apenas no México tenha sido registrado fenômeno semelhante. Ele pode ser explicado pelo pacto social corporativo desenvolvido na primeira revolução social do século XX, a Revolução Mexicana. No entanto, esse pacto foi rompido em 1982 com o início das políticas neoliberais. Vinte e quatro anos depois, o desafio da esquerda é conseguir articular um pacto democrático do século XXI; em outras palavras, alcançar a transição democrática ameaçada cada vez mais pelo avanço da direita.
A resistência pacífica
Diante dos resultados eleitorais de 2 de julho passado, o centro da estratégia traçada pelos partidos políticos que apoiaram a candidatura de López Obrador – Partido da Revolução Democrática, Partido do Trabalho e Convergência Democrática – hoje agrupados na FAP (Frente Ampla Popular), é a recusa de reconhecer o governo de Felipe Calderón e de desenvolver um movimento de resistência pacífica, encabeçado por aquele. Para tal fim, o passado 20 de novembro – dia da Revolução Mexicana – López Obrador fez um protesto como presidente legítimo, junto com seu gabinete. Essa decisão foi tomada na Convenção Nacional Democrática de 15 de setembro.
São muitos os desafios que esse movimento de resistência pacífica começa a enfrentar. O primeiro deles vem do âmbito em que ele se desenvolve. Um desses é a organização do movimento social nas ruas encabeçado por López Obrador a partir de uma excursão incessante por todo o território nacional, tentando ser a expressão de uma presidência itinerante e articulada em torno da impugnação de instituições caducas e antidemocráticas. Um outro âmbito encontra-se na relação com o governo espúrio a que estão coagidos os governantes perredistas em suas entidades federativas e os parlamentares da FAP no Congresso da União. O desafio é saber articular a luta expressa nas ruas com as manifestas nos âmbitos do governo. No entanto, isso indubitavelmente apresenta suas dificuldades. Na grande maioria dos meios de comunicação, certamente, se aposta na fragmentação das frentes de luta – sem dúvida, trata-se de uma opinião interessada no fracasso do movimento de resistência pacífica.
O primeiro entrave
Semanas antes de 1º de dezembro – a partir das decisões tomadas na Convenção Nacional Democrática – tornou-se pública a decisão de impedir a legitimidade do protesto de Felipe Calderón, requisito fixado pela Constituição dos Estados Unidos Mexicanos que, se não tivesse sido cumprida, teria aberto uma séria crise constitucional que em termos legais teria, seguramente, favorecido a Suprema Corte de Justiça da Nação apesar de que, em termos políticos, teria significado um duro golpe para o resplandecente presidente. Nada disso aconteceu, porque depois de três dias – nos quais a tribuna da Câmara dos Deputados havia sido tomada por panistas e perredistas, aviltada com golpes e arruaças – finalmente a cerimônia foi realizada na sede legislativa e, inclusive, em termos constitucionais, com a presença do proeminente presidente Vicente Fox.
Do meu ponto de vista, esse desenlace significou um sério entrave para a estratégia da resistência pacífica. Ou não houve a disposição necessária para impedir, com efeito, tal protesto, ou essa disposição foi ineficazmente implementada. Em ambos os casos, o certo é que foi desperdiçada uma conjuntura privilegiada para fazer valer a força de aproximadamente 15 milhões de votos, e para reivindicar um acordo transparente de uma vez à nação visando a obter avanços democráticos significativos, ou pelo menos para intimar publicamente a direita a cumpri-lo. Não foi o caso. Embora possivelmente minha proposição seja ingênua, para mim, aparentemente um movimento democrático requer uma análise coletiva e ágil sobre a realidade que lhe permita tomar decisões que muitas vezes podem ser diferentes às consignas adotadas há semanas ou meses. Um dos desafios do movimento encabeçado por Andrés Manuel López Obrador é, precisamente, desenvolver essa capacidade. Uma direita de duas cabeças
Por outro lado, e nas condições em que se desenvolve esse movimento, é necessário ter presente a função do PRI no âmbito político-legislativo. Dou como exemplo sua atuação na conjuntura desses três dias. A legitimidade do protesto de Felipe Calderón não teria sido possível sem a anuência do PRI para conseguir quorum necessário a fim de realizar a sessão do Congresso Geral. Com apenas 22% da votação, mas com um PAN que não controla o poder legislativo, o PRI soube vender caro o seu reconhecimento a Felipe Calderón. Nessa conjuntura, uma das moedas de troca entre ambos os partidos foi o auxílio (sustentação) do governador priista de Oaxaca, Ulises Ruiz, expressão dos poderes coronelistas dessa entidade e que enfrentou prolongadas mobilizações populares exigindo sua destituição. Isso explica por que não tenha sido cumprida essa reivindicação de sua destituição, ou com a declaração da eliminação de poderes nessa entidade federativa por parte do Senado da República (para o que se requer a anuência do PAN); medidas que haviam aberto caminho à distensão política e, como já destaquei, apenas três dias depois da legitimidade do protesto de Calderón, Flavio Sosa, principal líder da APPO, foi preso traiçoeiramente pelo governo federal.
Entretanto, para além da conjuntura, o apoio do PRI ao governo de Calderón não deveria surpreender ninguém, pois se trata de expressão mais de uma aliança histórica entre ambos os partidos iniciada no sexagenário de Salinas de Gortari, quando o PAN – apesar da combativa oposição à fraude priista de seu então candidato presidencial Manuel Clouthier – deu legitimação ao governo salinista em troca de que lhe fossem reconhecidos seus triunfos eleitorais. Esse foi o período das tristemente célebres concertacesiones entre ambos os partidos, em cujos objetivos havia – além de outros – o desaparecimento do PRD do panorama político para dar vida a um cômodo bipartidarismo de acordo com o modelo estadunidense.
Essa aliança entre PRI e PAN – até hoje permanente – em boa parte explica a capacidade dos governos mexicanos de – sem ditaduras como intermediário – ter aplicado de maneira acelerada as reformas estruturais esboçadas no Consenso de Washington pelo Banco Mundial e o FMI, incluindo a assinatura do TLDAN (Tratado de Livre Comércio com a América do Norte). Por isso, é bom lembrar que – apesar de diferente origem histórica – no México os interesses da direita se fazem representar pelos partidos PRI e PAN.
O ressurgimento da guerrilha
Por outro lado, um dos riscos para o futuro do movimento de resistência pacífica e do desenvolvimento democrático do país é o ressurgimento de grupos guerrilheiros – exposto nas últimas semanas. O descrédito da via eleitoral, surgido de um processo eleitoral acomodado em todas as suas fases, certamente gera condições propícias para esse ressurgimento. O escritor Carlos Montemayor fala do fenômeno em termos de “guerrilha recorrente” porque, com efeito, no México existe uma tradição histórica desse tipo de enfrentamento, desde a revolução de independência, passando pela luta contra a intervenção francesa e, ainda, durante a revolução mexicana, para ressurgir como guerrilha socialista a partir de 1965. De fato, os movimentos guerrilheiros se dissipam, mas não desaparecem.
Em novembro passado, uma coalizão de cinco organizações armadas realizou um ato de presença no Distrito Federal com a explosão de poderosas bombas na sede nacional do PRI, no TEPJF e em dois bancos. Sem dúvida, esses grupos têm uma origem real, mas também é alta a probabilidade de que sejam manipulados e impregnados pelo governo, ou por facções, com o objetivo de – mediante provocações – tentar justificar políticas repressivas ou situações de ingovernabilidade para benefício de interesses particulares.
Em qualquer um dos casos, sua proliferação dificultaria a organização do movimento democrático pela via pacífica e legal – embora também fosse certo que um movimento de resistência pacífica como o de López Obrador poderia neutralizar a generalização das organizações armadas. Sem dúvida, na conjuntura de 1988 o crescimento da guerrilha no México pôde ser contido pelo esforço de organizar e tornar o PRD uma opção para o desenvolvimento democrático do país e para o cumprimento das reivindicações populares. Trata-se de um desafio que se renova em 2006 e que não pode ser evitado pelo movimento de resistência pacífica.
O desafio de democratizar o PRD
Voltemos à resistência pacífica encabeçada por Andrés Manuel López Obrador. Sem dúvida, manter a mobilização cidadã em torno de símbolos que tornam evidente a fratura social e política gerada pela eleição presidencial – sobretudo a ilegitimidade do presidente eleito – pode ser uma estratégia adequada para resistir ao continuísmo da direita, imposto pela aliança com o PRI. No entanto, essa estratégia teria de incluir a decisão do PRD, o principal componente da FAP e o mais importante partido da esquerda mexicana, de superar suas divisões internas e resolver o desafio de sua democratização, ao qual evitou desde seu nascimento em 1989. Contribuiu para essa situação a presença de lideranças carismáticas e caudilhistas. Primeiramente, como a de Cuauhtémoc Cárdenas e, agora, a de López Obrador. No entanto, indubitavelmente, também está presente a incapacidade da esquerda mexicana de superar seus interesses de grupo, que reproduzem – em uma convivência – o interior do PRD, que está bem longe de ser democrático.
Certamente, esses faccionalismos da esquerda perredista tiveram como custo político o distanciamento das causas sociais e cidadãs. O paradoxo de esse distanciamento da sociedade combinar-se ao crescimento eleitoral é explicado, precisamente, com lideranças como a de López Obrador, que extrapolam o partido. Conseguir que uma institucionalidade democrática conviva com a presença desses valiosos dirigentes seguramente contribuiria para o fortalecimento do movimento social que, em diversos momentos e ao longo dos últimos 25 anos, fez-se presente com grande energia em defesa de um projeto alternativo de nação. Por infelicidade, até agora a esquerda perredista preferiu subsistir sob o abrigo de tais lideranças antes de resolver o desafio de construir um partido de esquerda, democrático e moderno.
No entanto, a complexidade da situação nacional exige forjar a vitalidade dos movimentos sociais num partido democrático. Deixar tudo à relação direta entre as massas e o líder pode garantir um movimento opositor, mas não significa necessariamente assentar as bases para a democratização do regime político no país. O restabelecimento funcional do regime priista – festejado pelo PAN no poder – é um dos fantasmas que rondam a esquerda mexicana.
À guisa de conclusão
O futuro do movimento de resistência pacífica contra a imposição da direita exige dele ter claro que a diferença entre um projeto de esquerda e outro de direita não é a mudança das siglas no poder, nem tampouco a quantidade de migalhas repartidas de cima para baixo para suavizar a miséria, mas, sim, a distribuição do poder com a sociedade. A partir da esquerda, isso teria de nos fazer conseqüentes com o fato de que a democracia eleitoral não é suficiente para mudar de regimes políticos e tornar realidade um projeto econômico includente e soberano e que, em troca, esses regimes exigem da abertura à democracia participativa. Isto seria obtido não apenas com a aprovação de aparentes tipos de democracia direta, como o plebiscito, o referendum e a anulação de mandatos, mas, sim, sobretudo, com a concessão de liberdade e democracia sindicais e, ainda, de direito à autonomia aos povos indígenas como sujeitos de plenos direitos. Estes seriam os principais eixos do pacto democrático do século XXI, em torno dos quais deveria ser acrescentada a força política dos 15 milhões de votos depositados nas urnas de 2 de julho passado em favor de mudanças no país.
Se o movimento de resistência pacífica não toma como responsabilidades suas tais desafios – particularmente o PRD – então dificilmente se conseguirá capacidade para deter o avanço da direita no México á qual, tal qual a Hidra, cada vez mais lhe surgem cabeças. Nessa perspectiva, o mínimo que podemos exigir é que a esquerda recupere a experiência de luta histórica desenvolvida no século XX.
Rosa Albina Garavito Elias é professora pesquisadora do Departamento de Economia da Universidade Autônoma do México e Conselheira Nacional Emérita do Partido da Revolução Democrática. Publicado originalmente em Contexto latinoamericano, março 2007 Tradução: Maria Lucília Ruy.
EDIÇÃO 90, JUN/JUL, 2007, PÁGINAS 67, 68, 69, 70, 71, 72