Rio-lato de viagem sincrônica às ilhas da criaturada grande
“Uno precisa salir de su aldea para descobrir el mundo, y saber que el mejor lugar del mundo es su aldea.” (David Cabrera, em conversa de compadre com José Varella, na Ilha do Diabo, 1985)
Aleph: o problema das Origens e o destino do caroço de tucumã de Alfredo
“Nenhum vento será favorável àquele que não tem um porto” (Provérbio grego)
A ruak – paresque – é o aleph marajoara (voz e fi gura estúrdia do pequeno ba tráquio totêmico, mais tarde signo do matriarcado que pariu o emblemático muiraquitã na Guiana brasileira? Da onomatopéia da jia à magia da proso popéia! Vigia…, palavra-chave que abre o coração do segredo e revela o mito seminal da Primeira Noite do Mundo. Por ela (objeto do nigredo psi-canalítico de Jung), havera de se chegar – talvez – ao fundo abissal do inconsciente coletivo, no indivíduo caboco (caa boc): saído do mato, medium entre a civilização e a barbárie. O menino Alfredo (alter ego de Dalcídio Jurandir: ma non troppo) sonda o futuro das crianças da Amazônia: obstinado sonho de libertação através da escola do Professor Chiquinho Leão, busca novos rumos com a magia da semente de palmeira espinhosa (Astrocarium vulgare). Porto imaginado além da foz daquele rio Arari… Porta estreita pela qual havera de passar e descobrir o mundo lá fora, conquistar a Cidade grande e a Terra-Firme (continente)…
Pulsão vital da primitiva diáspora, desde a noite dos tempos no coração da África, mãe de todas culturas e espírito das viagens… A grande serpente mãe dos homens: o espaçotempo que se reduz a uma ilha filha do rio-mar, dentro desta uma insula jita (a ilha do Quati?) que se transforma em Cobra grande e navio encantado. No fundo o rio, a terceira margem, esconde um caroço de tucumã, dentro dele a Primeira Noite, diz-que.
Geração espontânea do jogo infantil, adivinhação do pirralho Alfredo que assim foge do laço da Cobra grande: a injustiça social na maior ilha marítimo-fluvial do Planeta. Foi, portanto, rica em intuição e felicíssima a frase de Jorge Amado ao saudar seu camarada Dalcídio, chamando-o de “índio sutil” na entrega do prêmio Machado de Assis 1972, sessão solene da vetusta Academia Brasileira de Letras, fundada no Rio de Janeiro, pelos amazônidas paraenses Herculano Inglez de Souza e José Veríssimo, dentre outros brasileiros ilustres liderados pelo autor de Dom Casmurro: sincronidade oblige…
Filho da preta descriminada do Campinho com o branco descendente de emigrante cristão-novo, o marajoara Dalcídio José Ramos Pereira (10/1/1909 – 16/6/1979), nascido na Vila de Ponta de Pedras e criado na Vila de Cachoeira, à força do meio ambiente e da cultura local “indianizou-se” – até o talo! – de tal arte, que hoje se poderá dizer que ele incorporou a oralidade remanescente da Língua-Geral e através do bárbaro esperanto tupinizado, em meio à babel de arcaísmos lusos e dialetos afros veio a inserir na literatura brasileira o falar marajoara herdado, paresque, de derradeiros vocábulos aruã, anajá, mapuá, guaianá, mocuã, yona, samanajá, maruanã e outros povos confederados sob rótulo pejorativo de “nheengaíbas”, progenitores dos caboclos.
Nome pelo qual o inimigo tupinambá estigmatizou os marajoaras que lhe embargavam a passagem, em árdua e sangrenta peleja pela conquista do paraíso no “Araquiçaua”; antes do Bom Selvagem vir depor armas no Rio dos Mapuá (município de Breves), no dia 26 de Agosto de 1659, sob alto patrocínio da Companhia de Jesus na pessoa do venerável Payaçu, Antônio Vieira, esperança da prometida e jamais cumprida Lei de Abolição dos Cativeiros, de 9 de abril de 1655.
No que toca ao secreto desejo do coração apostólico do jesuíta, o chão de Dalcídio, há três séculos, foi cenário de visões sebastianistas do Quinto Império do Mundo; esta sublime loucura sem a qual não haveria outras mais nestas paragens brasileiras, inclusive a última que é, precisamente, este estúrdio relato para todos e para ninguém.
Antão, a primeira pegada neste espaçotempo, paresque, deixou rastro do primeiro passo (para não dizer remada) da primeira gente – por necessidade e acaso – quando saiu do útero da mãe Terra (pelo buraco sagrado, lá nos confins do Rio Negro, onde os Aruak vieram ao mundo). Dali, há milhares de sóis e luas, os antepassados deram partida à história amazônica em círculos concêntricos desde o aleph rionegrino – Uruna, Guainía – águas abaixo do Uaupés ao Amazonas e arriba ao Orenoco pelo canal de Cassiquiare (cacique ari, “rio do cacique”): cursos da dispersão circum-caribe. Fomos até à extrema ilha do mar das Caraíbas seguidos pelos Kalina com os quais pelejamos em guerra canibal.
Fomos canibalizados em mãos dos ditos cujos e dos Cariuás (brancos) assassinos, desde a chegada de Colombo. Voltamos à Terra-Firme já povoada e assim chegamos a estas ilhas filhas do rio grande e do vasto Oceano: Analau Yohynkaku dos Aruã; Marajó chamado pelo inimigo Tupinambá…
Relato ligeiro do terceiro Colóquio
O preâmbulo é para não dizer que Jorge Amado se enganou de endereço ao chamar Dalcídio Jurandir de “índio sutil”… Pois, em Marajó, um branquelo é semelhante a “negro da terra” e um índio pode ser branquizado debaixo da pele de caboclo. Nada mais natural, portanto, que afro-descendente possa ter alma e coração de índio… Foi o caso do criador de Alfredo: ademais, meio-irmão de Eutanazio (retrato falado do índio desajustado no mundo dos brancos)…
Vamos ao colóquio, sem esquecer as fases precedentes dos estudos dalcidianos até o primeiro e segundo colóquios. Convém tomar pé, pelo menos, a partir da fundação do Instituto Dalcídio Jurandir (IDJ), no Rio de Janeiro, e o beneditino trabalho do Professor Doutor Gunter com seus alunos até a criação da Associação dos Professores Para Estudos Literários – Dalcídio Jurandir (ASPELPP-DJ), em Ponta de Pedras, chegando à constituição pela Prefeitura Municipal de Cachoeira do Arari em parceria com o Museu do Marajó, www.museudomarajo.com.br, da Comissão do Centenário de nascimento de Dalcídio Jurandir e revitalização da academia do Peixe-Frito, em Belém, iniciativa do projeto “Universidade Livre Marajó-Amazônia (Unilivre-MAM), www.unilivre.org, oriundo da experiência do Grupo em Defesa do Marajó (GDM), fundado em parceria da SOPREN, com ajuda da Pró-Reitoria de Extensão da UFPA, em 20 de dezembro de 1994.
Com o ajuri, ou mutirão dalcidiano, a SECULT atendeu ao pedido do comitê gestor da Comissão do Centenário DJ 2009 (CGDJ) para albergar, temporariamente, o dito comitê instalado em sala no andar térreo do CENTUR, em Belém.
O terceiro Colóquio foi precedido por sessão de especial no Instituto de Artes do Pará (IAP), Belém, iniciativa do gerente de Literatura do Instituto e membro do CGDJ, o escritor Vicente Cecim. Vídeo com entrevista de Willi Bolle, da USP, no programa Sem Censura Pará (TV Cultura canal 2) deu início à sessão. Dela podemos reter o parecer: se o Brasil tivesse retirada a Amazônia de seu território sentiria uma enorme perda, porém no que concerne à literatura não perceberia quase nada.
Com isto, o especialista alemão de Guimarães Rosa queria lastimar o desconhecimento do Brasil a respeito dos escritores amazônidas, notadamente Dalcídio Jurandir considerado à altura dos mais renomados romancistas do País e até mesmo do exterior. Walcyr Monteiro abordou a contribuição do romance de DJ na transposição da oralidade para a escrita; Gunter relembrou a retomada dos estudos dalcidianos pela revista Asas da Palavra, da Unama e o primeiro Colóquio; Vicente Cecim tocou no aspecto da divulgação da obra pela valorização primordial do personagem Alfredo; Walkíria Pereira Casanova e José Varella deram notícias do autor em relação a sua família em Belém e Marajó. Foi exercício de aviamento da viagem no dia seguinte.
Viagem ao chão natal de Dalcídio
O barco regional “Luiz Guilherme” partiu do Porto do Sal (anexo Brilhante) em direção a Ponta de Pedras, na ilha do Marajó, sexta-feira, dia 15 de junho, às 13 horas. A bordo entre os passageiros: Gunter Pressler, Vicente Cecim, Jonas Furtado, Bruno Cecim e José Varella repetiam pelo “método” de conversa de compadres mais uma rodada espontânea do que se considera a verdadeira “universidade livre”, professada toda primeira sexta-feira de cada mês na academia do Peixe-Frito (Hotel Ver-O-Peso)…
Com a conversa de compadres, as três horas de travessia voaram em ondas filosóficas e logo o “Luiz Guilherme” estava entrando pela boca do Marajó-Açu e atracava no porto da cidade. Não sem antes o viajante Gunter localizar na margem, pouco acima do sítio Recreio Malato, a entrada obscura do rio Paricatuba, onde Missunga e Alaíde deram curso ao romance Marajó, completando 60 anos agora em 2007. Na recepção Angelina Rodrigues, Marlene Sarges, Jorge Batista e outros membros da ASPELPP estavam a postos. Logo mais, chegada da delegação de Cachoeira do Arari com trinta pessoas, conduzida pelo secretário de cultura e turismo, Adriano Figueiredo.
Abertura do colóquio, às 20 horas desse mesmo dia, na sede da Associação Musical Antônio Malato (AMAM), vizinha ao Espaço Cultural Dalcídio Jurandir – feliz coincidência, ambos prédios construídos em terreno que foi outrora o chalé de residência do capitão Alfredo Nascimento Pereira e sua primeira mulher, a tapuia e sua ex-aluna Antônia Silva; e casa onde José Varella passou grande parte de sua infância e juventude. Após formalidades de praxe, Vicente Cecim apresentou sua contribuição com considerações para melhor divulgação da obra. Em seguida o grupo coreográfico Ester Mouta exibiu-se colhendo aplausos, enquanto amostra fotográfica sobre a memória da cidade, organizada pelo professor Edinelson Castro, tinha lugar na galeria da AMAM.
No dia 16 – 28º aniversário de falecimento de DJ – deu-se continuidade ao colóquio, a partir das 8 horas; com Gunter Pressler abordando o tema “O romantismo nas obras de Dalcídio Jurandir”, seguido de debate. Apresentaram suas contribuições o poeta Antônio Muribeca, que falou sobre o poeta Joaquim Felismino e sua militância em defesa da vila de Camará. Tadeu Gama fez exercício comparativo da denúncia social nas obras de DJ, João Viana e Giovanni Gallo. Socorro Macedo discorreu sobre a influência da água na narrativa de DJ. Dilma Meireles abordou o potencial da obra dalcidiana como produto para turismo literário, como expressão comunitária e inclusão social coerente com o escritor marajoara. A vereadora Ruth Helena Maia informou sobre seu trabalho legislativo para reconhecimento da ASPELPP-DJ como utilidade pública municipal; bem como Jonas Furtado, discorrendo sobre sua experiência pedagógica e literária com foco no romance Marajó, além de outras apresentações previstas no programa. E o poeta e filósofo Antônio Juraci Siqueira veio de Belém para participar do colóquio, sendo saudado em sua chegada.
À tarde, Jorge da Costa Batista fez leitura de conto de sua autoria denominado Caroço de Tucumã; precedido de palestra de José Varella sob o tema “O caroço de tucumã na literatura paraense”, a partir duma interpretação do mito da Primeira Noite do Mundo. O vereador Emiliano Ribeiro comentou a lei de sua autoria criando a “Bienal de Cultura” do município. Antônio Juraci Siqueira fez apresentação da poética cabocla recebendo demorados aplausos. Seguiram-se diversas intervenções de membros da Comissão do Centenário de DJ (2009) e entrega de réplicas do “caroço de tucumã de Alfredo” pela Secretaria de Cultura e Turismo de Cachoeira do Arari aos anfitriões e convidados.
No encerramento do terceiro colóquio, ocorreu bela surpresa com apresentação do jovem grupo de teatro de Cachoeira do Arari encenando trecho do romance Marajó. Aluna da escola de música de Ponta de Pedras deu magnífico show de flauta, enquanto a compositora Jesus Rodrigues empolgou o auditório com seu violão lançando nova canção com tema no romance dalcidiano. O momento alto foi o esperado show musical de Zezinho Viana e a apresentação do Boi Prata Fina que colheu muitos aplausos.
Considerações finais
Foi programada sexta-básica da academia do Peixe-Frito para o dia 06 de julho, a fim de examinar possibilidade de excursão ao rio Paricatuba (Ponta de Pedras) comemorativa aos 60 anos do romance Marajó. Em princípio, o grupo poderia sair em barco de Belém ou ônibus até Barcarena para travessia a Ponta de Pedras. Com pernoite de sábado para domingo no sítio Recreio Malato, onde assistiria à ladaínha tradicional de São Francisco de Borja e sarau. Na manhã seguinte realizaria passeio ecológico ao rio Paricatuba, com regresso a Belém previsto para segunda-feira às 6 horas.
Notável consenso foi obtido no terceiro colóquio sobre a necessidade de se buscar a sustentabilidade dos eventos, como modo de orientar a população para organização social tendo a cultura e o meio ambiente como elementos de geração de emprego e melhoria do IDH local. Para o que o apoio institucional do setor público e econômico do setor privado encontrem na comunidade disposição cooperativa e crítica construtiva favorecendo o desenvolvimento regional sustentável como um todo.
“Mestre não é quem ensina, mas quem de repente aprende” (João Guimarães Rosa)
José Varella Pereira é professor da Unilivre-MAM/Belém, Pará. Autor dos ensaios Novíssima Viagem Filosófica (Belém, 1999) e Amazônia Latina e a terra sem mal (Belém, 2002); organizador do projeto “Universidade Livre Marajó-Amazônia” www.unilivre.org , membro da Comissão do Centenário de nascimento de Dalcídio Jurandir (2009) e assessor institucional do Museu do Marajó www.museudomarajo.com.br.
EDIÇÃO 90, JUN/JUL, 2007, PÁGINAS 43, 44, 45, 46