Renomeando o cotidiano
Já é quase lugar comum dizer que os “anos zero” têm revelado poetas de grande qualidade para o sempre pequeno público de leitores de poesia. O que permanecerá da poesia dessa primeira geração do século XXI, entretanto, ainda não podemos determinar. É certo que há joio e trigo. De qualquer modo, algo que parece comum aos bons jovens poetas dessa geração é a proposição subliminar de uma questão bipartida: “a que veio o poeta? e o que pode a poesia?”. Tais questões também parecem perpassar a dócil e incomodada poesia de Valeska de Aguirre. Atos de repetição (7letras), seu último livro, revela uma poesia dócil por um lado, pois é capaz de pincelar com sutileza alguma luz na opressão do cotidiano. Por outro lado, é incomodada por atestar que, apesar de debater-se em busca de uma saída, a linguagem poética dificilmente supera a lógica histórica da irrestrita reificação. Portanto, para tentar renomear o dia-a-dia, veio a poesia de Valeska.
Quando bem realizado, um poema sempre é uma tentativa de penetrar fundo no reino da coisificação, para dar a ver o seu despropósito. Talvez com essa intenção, Valeska de Aguirre mapeie a rotina, tentando encontrar fissuras nos “atos de repetição” que franqueiem ao leitor a visão de lampejos de um mundo não-administrado, mais livre e cheio de vida. É o que diz ao leitor a foto da capa de Atos de repetição, com dois vãos de porta abertos, quase espelhados, símbolos de mínima liberdade, contrapostos ao frio assoalho. Também funciona assim a epígrafe de Sílvio Ferraz: “todo ato de composição é um ato de repetição do diferente, uma repetição que se faz diferença e não reiteração.”
Sob o prisma da não reiteração devem ser lidas as três partes de Atos de repetição: “Assobio você”, “Pela janela adentro” e “4 histórias”. Na primeira delas, Valeska testa o cotidiano nas coisas pequenas em tom de tocante simplicidade. Aqui a poesia é engendrada pelo eu que explora, em câmara lenta, as rachaduras da rotina. O destaque dessa seção é o par de poemas “1992” (1 e 2), em que uma mesma cena é descrita duas vezes, exibindo as flexões da linguagem a fim de reconquistar para si algo que areje o poema, para levá-lo além da repetição. O assobio da segunda pessoa (você) pode ser lido, assim, como assobio da própria poesia, que se deseja perder em ar e música, recusando a fixidez e a dureza da letra escrita, tornando-se naturalmente visceral: “a glote/ a direção do vento/ o lábio superior e inferior/ assobio você”.
A seção “Pela janela adentro” delimita um “quadrilátero” socialmente bem definido, no qual emergem, contra a suave opressão da vida de classe média, contornos de alto simbolismo, como em: “Minúsculos peixes em ziguezague/ rodeiam o musgo/ O céu da boca sangra./ O pulôver sangra água.” A temática do amor atravessa vários poemas dessa seção, dando-lhes um timbre doce que, no entanto, pode encontrar-se, às vezes, no limite da desilusão: “Neste quarto sou a rainha/ dos objetos/ dos bichos que voam/ pela janela adentro”. Uma desilusão cuja referência são as possibilidades do signo poético, na busca pelas coisas mínimas e pela revelação do que dizem os rumores, como em: “…e o tempo/ tapou-lhe a boca/ há um rumor dizendo/ aquilo que poderia ser dito.”
Captar tal rumor é o esforço lírico da última parte de Atos de repetição, composta por quatro pequenos poemas em prosa, em que a utilização dos verbos no infinitivo marca com tintas rudes a dor da rotina. Esta, no entanto, é contraposta sempre à possibilidade de, pela poesia, tudo caminhar de uma outra forma, que, todavia, é igualmente dilemática: “O poema é o andamento das coisas em si. As idéias permanecem aéreas.” São quatro pequenos poemas que tratam do desejo de dizer de “todas as palavras que ainda não chegaram”, sendo que o afogar da vida nos pequenos limites da desilusão sorridente da mediania ainda abafa qualquer rumor de poesia.
Contra o abafamento da linguagem, portanto, Valeska de Aguirre faz brotar o poema, feito alguém que tenta decifrar a si mesmo, aguardando, diante do espelho, seus movimentos traírem suas próprias intenções. Seu livro evidencia uma poeta de grande habilidade técnica, que sabe trabalhar bem com as imagens, com a métrica e com o ritmo dos versos. Mas, sobretudo, Valeska é uma poeta que assume, com atitude e entrega, uma posição marcada diante das palavras e do mundo. Por meio dessa atitude, lírica no limite, o seu Atos de repetição rabisca uma sensível cartografia do cotidiano e da busca do ser humano por si mesmo em meio às coisas. Se é júbilo ou vazio o que se encontrará, pouco importa diante da surpresa da revelação de uma voz que tem personalidade própria. Sua atitude é firme e delicada, sorridente e melancólica, mas é aquilo que dá lastro real a uma poesia que gera vivo interesse, pois traz para dentro do poema o desejo de vida, que é sempre mais importante e urgente que o mero jogo da linguagem em si e para si.