Anita
O que motivara minha partida para São Simão fora o projeto – infrutuoso – de comandar a construção de alguns escaleres, feitos de um único tronco de árvore, com o auxílio dos quais eu pretendia abrir comunicações com a outra margem da lagoa. Todavia, ao longo dos poucos meses que lá permaneci, as árvores prometidas jamais apareceram e nosso projeto, por conseguinte, não pôde concretizar-se. Disso e da minha aversão ao ócio resultou que, em lugar de me ocupar das barcas, ocupei-me dos cavalos. De fato, havia em São Simão uma grande quantidade de potros, os quais serviram a fazer dos meus marujos cavaleiros.
São Simão era uma belíssima e vastíssima fazenda, embora se encontrasse abandonada e parcialmente destruída. Pertencera a um certo conde de São Simão, outrora exilado, creio eu, e cujos herdeiros também se achavam exilados na condição de inimigos da República. Ignoro se ele era aparentado ao famoso conde de Saint-Simon, fundador do credo cujos adeptos haviam-me iniciado no cosmopolitismo e na fraternidade universal. Porém, por ora, aqueles São Simão eram nossos inimigos e tratamos a sua fazenda como um bem confiscado, isto é, fizemos das casas alojamento e dos animais o nosso recurso alimentar. Entretínhamo-nos domesticando os nossos poldros, ou antes, os poldros dos senhores de São Simão.
Foi lá que minha querida Anita pôs-me entre os braços o nosso primeiro filho. Eu, ao invés de dar a ele o nome de um santo, ofereci-lhe o de um mártir: Menotti1.
O nosso Menotti nasceu em 16 de setembro de 1840 e fora engendrado, muito provavelmente, no dia do combate de Santa Vitória. Sua vinda sem acidentes a este mundo era um verdadeiro milagre, após as privações e os perigos enfrentados pela sua mãe. Essas privações e esses sofrimentos, sobre os quais nada falei, a fim de não prejudicar a narrativa, devem receber menção no ponto em que chegamos. Piedosamente, dou a conhecer, se não ao mundo ao menos aos poucos amigos que lerão este diário*, algo da admirável criatura que perdi.
Como sempre, Anita quisera acompanhar-me na campanha que acabáramos de fazer e que acabo de contar. Ora recordaremos que, de par com os serranos do coronel Aranha, derrotáramos o brigadeiro Acunha em Santa Vitória – e de um modo tal que a divisão inimiga terminara completamente aniquilada. Durante aquele combate, Anita, montada em seu cavalo, não arredou-se do meio do fogo cruzado, espectadora da nossa vitória e da ruína dos militantes do Império. Ela fora, naquele dia, a providência dos nossos feridos, que, na ausência de ambulância e de cirurgião, vinham recebendo de nossa parte um tratamento algo canhestro. Aquela vitória recolocava, pelo menos momentaneamente, os três territórios de Cima da Serra, Vacaria e Lajes sob a autoridade da República, e já descrevi como foi que, ao cabo de alguns dias, ingressamos triunfalmente neste último. O mesmo, porém, não se repetiria no combate de Curitibanos.
Também contei o modo pelo qual, malgrado a coragem de Teixeira, a nossa cavalaria fora desmantelada, e como, com os meus setenta e três soldados de infantaria, acabei cercado por mais de quinhentos homens da cavalaria imperial. Anita deveria assistir, naquele dia, aos incidentes mais bárbaros da guerra.
Submetendo-se a contragosto ao papel de simples espectadora do combate, e temendo que viessem a faltar cartuchos aos soldados, ela provia o abastecimento das nossas munições. O fogo que éramos obrigados a fazer permitia de fato supor que, se estas não fossem repostas, em pouco tempo achariam-se esgotadas.
Com esse objetivo ela aproximava-se do local principal do combate quando cerca de vinte cavaleiros inimigos, que perseguiam alguns fugitivos, passaram a atacar os nossos soldados encarregados do transporte. Excelente amazona e montada num admirável ginete, Anita poderia ter disparado e escapado àqueles cavalarianos; porém, o seu peito de mulher encerrava um coração de heroína. Em lugar de fugir, ela tratou de exortar os nossos soldados a defenderem-se, achando-se de súbito rodeada pelos imperiais. Um homem rendeu-se. Ela cravou as esporas no ventre do seu cavalo e, arrojando-se vigorosamente, avançou por entre os inimigos, não recebendo senão uma única bala, que traspassou o seu chapéu, alteando-lhe os cabelos, mas sem roçar-lhe o crânio. Anita teria podido evadir-se se o seu animal não houvesse sido atingido por um segundo tiro. Ela teve então de render-se e foi levada à presença do coronel inimigo.
Sublime em sua coragem em face do perigo, ela ainda se engrandecia (fosse isto possível!) diante da adversidade. Assim, frente a frente com aquele estado-maior assombrado com a sua bravura – mas que não tivera o escrúpulo de dissimular à vista de uma mulher a sua empáfia de vitorioso -, ela repeliu com uma áspera e orgulhosa altivez alguns termos que pareciam-lhe exaltar o desprezo pelos republicanos vencidos. Anita combateu tão energicamente com as palavras quanto o fizera com as armas.
Ela acreditava-me morto. Movida por essa idéia, rogou e obteve a permissão para ir procurar o meu corpo entre os cadáveres no campo de batalha. Por muito tempo ela perambulou só, à imagem de uma sombra sobre a lhanura ensangüentada, à procura daquele que ela temia encontrar, volvendo entre os mortos aqueles que haviam tombado com o rosto contra o solo, como aqueles que, em suas vestes ou em suas estaturas, ela encontrava alguma semelhança comigo. Uma escusada procura. Ao contrário, era a mim que o destino reservava este suplício, o de banhar com as minhas lágrimas as suas faces gélidas. E, ao enlaçar-me essa aflição suprema, me será vedado o direito de desparzir um punhado de terra, o direito de deitar uma flor sobre a sepultura da mãe dos meus filhos!
Com a quase absoluta convicção da minha sobrevivência, Anita passou a nutrir um único desejo: fugir. A ocasião não tardaria a apresentar-se. Valendo-se da ebriedade do inimigo vitorioso, ela escapou para uma casa vizinha àquela onde a mantinham prisioneira, e no interior da qual, sem conhecê-la, uma mulher a acolheu e a protegeu.
Lembro ainda: meu casacão, que eu havia jogado longe para sentir-me mais livre em meus movimentos, ficara de posse de um inimigo. Anita propusera-lhe uma troca pelo seu próprio agasalho, mais vistoso e de maior valor…
Veio a noite e ela lançou-se floresta adentro, sumindo-se em suas brenhas. Era imperativo possuir a um só tempo os corações de leoa e de gazela daquela santa criatura para arriscar-se assim. Só quem viu aquelas vastas florestas que envolvem os cimos do Espinilho – com os seus pinhos seculares que parecem destinados a escorar o céu e que são as colunas de um suntuoso templo da natureza, cujas lacunas povoam-se de gigantescos canaviais e onde fervilham animais ferozes e répteis cuja picada é fatal – poderá aquilatar os perigos que ela teve de correr e as dificuldades que teve de superar. Felizmente, a filha das estepes americanas ignorava o sentido do medo. De Curitibanos a Lajes havia vinte léguas a serem transpostas através de matas impenetráveis. Sozinha, sem se alimentar, como ela pôde? Só Deus sabe.
Os poucos habitantes daquela região da Província que Anita poderia ter encontrado eram hostis aos republicanos: tão logo souberam da nossa derrota, eles armaram-se e prepararam emboscadas em vários pontos, e particularmente nas picadas por onde enveredariam os fugitivos no trajeto de Curitibanos a Lajes.
Nos cabeçais, isto é, nos trechos quase impraticáveis daquelas sendas, os nossos infelizes companheiros foram alvo de uma bárbara carnificina. Anita percorreu à noite aqueles perigosos passadouros e, por graça da sua boa estrela, ou por obra da admirável resolução com a qual ela os transpôs, sempre o seu vulto alvoroçou os assassinos, que fugiam – diziam eles – perseguidos por um ser misterioso!
Com efeito, era algo fantástico a imagem daquela valente montada sobre um árdego corcel (que ela pedira e obtivera numa casa onde recebera guarida), numa noite tempestuosa, lançando-se a galope através dos penedos, sob o clarão dos relâmpagos, naquele céu troante, pois que assim mostrava-se aquela desventurada noite.
Quatro cavaleiros, postados na passagem do rio Canoas, esquivaram-se à visão daquele vulto, despenhando-se atrás das moitas da riba. Enquanto isso, Anita alcançava a beira da torrente. A torrente, transbordada pelas chuvas, duplicada pelos ribeiros descendentes das montanhas, transformara-se num rio. E, mesmo assim, ela o atravessou, aquele rio furioso, e não como o fizera alguns dias antes, sobre uma barca, mas a nado, aferrando-se às crinas do seu cavalo, que a sua voz animava. As águas caíam, impetuosas e bramantes, e não num espaço exíguo, mas sobre uma extensão de quinhentos passos. Anita, incólume, atingiu a margem oposta.
Uma xícara de café, engolido açodadamente, foi tudo o que bebera a intrépida viajante ao longo dos quatro dias consumidos para reunir-se em Vacaria ao regimento do coronel Aranha.
Lá, reencontramo-nos, Anita e eu, após uma separação de oito dias, quando nos acreditávamos mortos, os dois. Imagine-se a nossa alegria! Pois uma alegria ainda maior esperava-me no dia em que a minha Anita, na península que cerra a Lagoa dos Patos do lado Atlântico, num rancho onde ela recebera a mais generosa acolhida, daria à luz o nosso bem-amado Manotti.
A criança veio ao mundo com uma cicatriz estampada em sua fronte, cicatriz que lhe advinha de uma queda da montaria sofrida pela sua mãe. E que aqui, uma vez mais, seja-me permitido reafirmar toda a minha gratidão às generosas pessoas que nos ofereceram hospitalidade. Reservo-lhes – que estejam certas disso – um eterno reconhecimento. No acampamento, onde carecíamos das coisas mais imprescindíveis e onde, por certo, eu não teria encontrado um lenço para a pobre parturiente, ela não teria podido vencer o momento supremo em que a mulher demanda tantas atenções e tantos desvelos.
Para mitigar as necessidades dos meus queridos, privados de tantas coisas, decidi-me a fazer uma breve viagem a Setembrina. Lá, eu compraria alguns agasalhos. Eu tinha bons amigos na cidade; entre eles, um excelente camarada chamado Blingini. Parti em viagem através do aguaçal das campanhas, um aguaçal que subia ao ventre do meu cavalo. Cruzei a extensão de um campo anteriormente cultivado, cognominado Roça Velha, onde encontrei Máximo, o capitão dos lanceiros, que me recebeu na qualidade de fiel companheiro. Naquela ótima invernada, ele encontrava-se preposto na guarda da cavalhada. Cheguei à noite, sob uma chuva torrencial. O dia seguinte não se apresentou melhor. O capitão instou-me reiteradamente a permanecer no local. Porém, a razão que me fizera partir era demasiado importante para que pudesse demorar-me no trajeto, e, não obstante as observações do bom amigo, retomei o caminho através daquelas campinas que ora assemelhavam-se a um vasto lago.
Já distanciado em algumas milhas, ouvi uma estrepitosa fuzilada dos lados que eu acabara de deixar. Sobrevieram-me algumas suspeitas plenas de angústia, mas eu não podia tornar ao ponto de onde partira. Assim, cheguei em Setembrina onde adquiri os agasalhos de que necessitava. Depois disso, ainda preocupado com aquela fuzilada, tomei o rumo de São Simão. Ao repassar pela Roça Velha, apreendi a causa do estrépito que ouvira e o lamentável acontecido do exato dia de minha partida.
Moringue – o mesmo que me havia salteado em Camaquã e que os meus quatorze homens e eu obrigáramos a bater em retirada com um braço quebrado – surpreendera o capitão Máximo, todo o seu pessoal e todos os seus quadrúpedes, cavalos em sua maioria. Destes, os melhores foram embarcados; os outros, sacrificados. Moringue executara o golpe com navios de guerra e infantaria. Feito isso, após reembarcar os seus infantes, ele e sua cavalaria tomaram a direção de Rio Grande do Norte2, terrorizando em seu caminho todos os pequenos bandos republicanos que, não crendo-se ameaçados, haviam se disseminado pelo território. Entre estes achavam-se os meus poucos marujos, assim compelidos a se refugiar no interior da floresta.
A minha primeira reação, será fácil compreender, foi: “Anita! Onde está Anita?”. Anita, no décimo segundo dia posterior ao seu parto, sob uma inclemente tempestade, montada em seu cavalo, andrajosa, com o seu pobre filho de través sobre a sela, vira-se forçada a buscar refúgio na mata. No rancho, então, não encontrei nem Anita nem a boa gente que lhe dera albergue. Localizei-os, porém, na ourela de um capão, de onde não se haviam arredado, sem saber exatamente por onde andava o inimigo e se tinham ainda alguma coisa a temer.
Voltamos a São Simão, onde permanecemos por mais algum tempo. De lá, transferimos nosso acampamento e assentamo-nos na margem esquerda do Capivari, vale dizer, na orla do mesmo rio em que, um ano antes, laborávamos para transportar sobre carretas as nossas naus, com vistas à expedição de Santa Catarina – expedição de tão contundente malogro. Ai! O meu coração então batera pleno de esperanças! Melancolicamente, elas esvaeceram-se.
O Capivari nasce de diferentes regatos com cabeceira nos numerosos lagos que cobrem a parte setentrional da Província do Rio Grande, no costado marítimo e na vertente oriental da cadeia do Espinilho. O seu nome deriva do de capivara, espécie de cana muito comum na América meridional e que, nas colônias, é chamada capineios [sic].
Foram inimagináveis as nossas dificuldades para reunir alguns escaleres. Do Capivari e do Sangradouro do Abreu – canal que é via de comunicação entre um charco e a lagoa -, fizemos algumas viagens à costa ocidental desta, estabelecendo o contato entre as suas duas margens e transportando della gente**.
Alexandre Dumas
Memórias de Garibaldi
Tradução de Antonio Caruccio-Caporale
Editora L&PM Editores – edição 2000