Logo Grabois Logo Grabois

Leia a última edição Logo Grabois

Inscreva-se para receber nossa Newsletter

    Comunicação

    O telefone e o amigo morto

    (Crônica-poema para Hélio Pellegrino) Nesta límpida manhã de março o telefone ainda não anunciou a morte do amigo. A lagoa e as montanhas sabem já que algo morreu longe de mim e, no entanto, disfarçam a notícia numa cumplicidade azul. Quanto tempo levará ainda esta notícia retida em outras bocas e ouvidos até me atingir […]

    POR: Redação

    4 min de leitura

    (Crônica-poema para Hélio Pellegrino)

    Nesta límpida manhã de março
    o telefone ainda não anunciou a morte do amigo.
    A lagoa e as montanhas sabem já que algo morreu longe
    de mim
    e, no entanto, disfarçam a notícia numa cumplicidade azul.
    Quanto tempo levará ainda esta notícia
    retida em outras bocas e ouvidos
    até me atingir como um tijolo no peito?
    Ainda não começou a morrer (em mim) aquele que
    já morreu
    e que as gaivotas da praia não ousam anunciar.
    Há uma tocaia atrás do azul desta manhã.
    Desprotegido, recorto jornais, dou telefonemas,
    azulejo a manhã na minha mesa,
    organizando a burocracia do dia. 

    Nesta límpida manhã de março
    o telefone na anunciou ainda a morte do amigo.

    Se alguém, súbito, o mencionasse vivo
    o veria no consultório das falas aflitas
    ouvindo o relatório das paixões desnorteantes
    o admiraria nas festas e mesas, nos comícios e textos
    alternando revolução e ternura.

    O telefone, porém, ainda não soou.
    Estou no minuto anterior à notícia da morte
    em que a felicidade é consentida.
    No minuto anterior à morte
    em que é possível o gesto salvador
    que resgate o jovem no fatal mergulho,
    o carro que se desgovernou na pista,
    a bala que atravessou a noite.
    Aquele minuto anterior à morte
    em que a mão do médico prolonga e tece
    com novos fios, a vida.

    O telefone ainda não soou
    e não sei que à tarde estarei no cemitério
    lado a lado com seu corpo, caminhando
    entre desconhecidas covas, desvalido
    abraçando outros desvalidos.

    Não acordei hoje para ir ao cemitério
    e à luz dos refletores da tarde ter que formular o pasmo
    sobre o ocaso de uma geração que vai se dizimando.
    Mas a manhã azul, traiçoeira, como o alcagüete
    escolhe a vítima e antegoza a tortura da notícia.
    Impossível, contudo, ver no Sol desta manhã o eclipse da
    face amiga.
    Ao contrário, o vejo: Hélio – o fulgurante
    Hélio – solar criatura, verbo coruscante, mediterrânea
    fagulha
    versando sagrada fúria.
    Hélio – lírico desassombro entre ruínas
    com o tropismo de sua voz nos ensinando
    que é possível ser grego e tropical, nascendo em Minas.
    Ah! Héliovívida aventura, Héliodescentrada figura
    lançando sóis na órbita da loucura.

    O telefone ainda não soou sua morte
    que venha quando venha será sempre prematura.
    O telefone ainda não soou
    e não sei ainda como o infarto estanca na madrugada
    uma usina de sonhos em forma humana.
    Não posso portanto perguntar ainda
    o que será de seus três eus restantes.

    O telefone me dá tempo de olhar estúpido
    a límpida manhã de março
    ainda sem amargura.

    Mas a ditadura deste azul é sufocante.
    O telefone ainda não lançou manchas roxas na pele
    da manhã.
    O telefone não sabe o que se prepara no inconsciente
    das manhãs.
    Por ora, contemplo a manhã desta janela. É eterna.
    Arrumo os papéis azulejando a burocracia do dia.
    Tenho um dia pela frente
    – e sou quase feliz.

                                          

    Affonso Romano de Sant’Anna
    Textamentos
    Editora Rocco edição 1999