O debate acerca dos aspectos ideológicos da imprensa faz parte de uma razoável polêmica nos meios intelectual-acadêmicos, político e entre os próprios veículos de comunicação. As principais questões estão ligadas à independência dos meios de comunicação que se auto-intitulam apartidários e não ideológicos, independentes e comprometidos com a verdade. No entanto, existem fatos para explicar como a grande imprensa se alinha às teses do neoliberalismo e cumpre papel decisivo na oposição aos governos distintos de suas opiniões.

A tese de uma imprensa não ideológica está explícita na orientação jornalística de alguns veículos de comunicação, na propaganda da maioria de jornais, rádios e TV’s e na sustentação dos argumentos de colunistas, articulistas e editoriais da imprensa. Destaca-se a orientação do jornal Folha de S.Paulo, em seu manual de redação: “Em documentos anteriores a este, a Folha cristalizou uma concepção de jornalismo definido como crítico, pluralista e apartidário. Tais valores adquiriram a sua característica doutrinária que está impregnada na personalidade do jornal e que ajudou a moldar o estilo da imprensa brasileira nas últimas décadas”1. Outros periódicos não são explícitos em seus manuais, mas sempre registram seu caráter independente. O Globo, em recente editorial respondendo a uma resolução do PT sobre a cobertura tendenciosa da crise aérea, afirmou em seu editorial: “Notícia não tem ideologia nem partido. Ela fala por si para os verdadeiros profissionais de imprensa e a mídia profissional. Reduzir o destaque de um fato por conveniências políticas só em diários oficiais, no antigo ‘Pravda’ soviético e no ‘Granma’ cubano”2. Com esse entendimento cria-se uma falsa idéia de um jornal que não se influencia por critérios ideológicos, sendo substituídos por critérios técnicos da informação. Isto se deve, provavelmente, a uma visão de que as estruturas ideológicas tais como conhecemos estão superadas, em uma franca adesão ao pensamento pós-moderno e o fim das matrizes iluministas.

A imprensa faz sua opção ideológica e não há argumento de independência que se sustente, mesmo com todo o esforço dos veículos de comunicação brasileiros para conquistar credibilidade através de isenção e relato “verdadeiro” dos fatos. Para o professor de Comunicação da Universidade de Brasília (UnB), Luiz Gonzaga Motta, parte da seleção das notícias e seu enfoque se dá através de uma decisão ideológica do que comunicar:

“Toda decisão de comunicar alguma coisa é, ao mesmo tempo, uma decisão de não comunicar outras. O conteúdo das mensagens não é a única parte que significa. Quando dizemos algo, o que dissemos e o que poderíamos ter dito são parte inseparáveis do que dizemos. Esse axioma, comum a toda forma de comunicação, é particularmente relevante para a comunicação de massa não só pela ampla gama de assuntos que fica de fora como pelos interesses envolvidos na inclusão e não exclusão de conteúdos. A seletividade e o controle, inerentes a todas as práticas de comunicação, ganham, assim, relevância especial nos processos de comunicação da indústria cultural e trazem consigo a questão da ideologia como questão central nas análises dos processos de decisão editorial” 3.

A relação entre imprensa e poder

Há duas questões importantes para entendermos a relação entre a imprensa e o poder. A primeira diz respeito à vinculação do veículo jornalístico junto às esferas de poder público e privado. A segunda é o próprio poder exercido pela imprensa na sociedade.

Os veículos de comunicação estão intrinsecamente ligados ao poder para usufruir suas benesses, ou para questioná-lo, sobretudo se há conflito de interesse empresarial ou de classe. O jornal em questão é o tradicional, liberal, de grande tiragem e defensor da livre iniciativa e do mercado, portanto, distinto de outro tipo de jornal, com linha editorial diversificada, de outra matriz ideológica ou na disputa concorrencial que busca novos e diferentes leitores. Este tradicional, antes de tudo, defende o status quo, a manutenção da linha ideológica liberal do Estado.

Essa defesa do Estado não significa, contudo, a defesa de governos que podem –e normalmente o são – ser questionados por suas linhas editoriais. Os chamados grandes jornais têm interesses ligados aos grupos corporativos aos quais as empresas jornalísticas são associadas. Não significa também, que todos os grupos jornalísticos estão no mesmo campo; ao contrário, há uma distinção concorrencial entre eles.

A imprensa é considerada por alguns pensadores, e por parte da sociedade, como o quarto poder, ou seja, um poder inserido na sociedade com capacidade de intervenção direta, mas sem estar instituído de elegibilidade e distinto dos poderes públicos republicanos: o executivo, o legislativo e o judiciário.
Este poder se deve ao alto índice de confiabilidade que a sociedade deposita sobre a imprensa. Um poder independente, com autonomia e expressão da vontade popular, muito embora um instrumento privado e de interesse particular.

A idéia de quarto poder não é unanimidade. Uma das principais polêmicas é justamente a característica privada e de interesse particular dos veículos de comunicação. A confiança da sociedade reside no pretenso papel da imprensa em investigar e cobrar da política e dos políticos a probidade, o compromisso com a causa pública e o exercício e o estabelecimento das regras institucionais.

Ocorre que a cobrança pública para os políticos não tomarem proveito individual parte de instituições de caráter privado que também exercem seus interesses particulares na sociedade. A posição da maioria da grande imprensa quanto a acontecimentos históricos – como o Golpe Militar de 1964 em que a maioria da imprensa e das empresas de mídia foi amplamente favorável à implantação da ditadura no país – é uma demonstração deste interesse de classe.

Portanto, temos uma contradição ao estabelecer a imprensa como quarto poder, porque o caráter privado que o jornal passou a desempenhar na sociedade é distinto do papel público que se reserva o jornalismo, como pressupõe seu exercício social.

É notória a capacidade de poder que a grande imprensa exerce na sociedade, pela confiabilidade depositada, o conjunto de profissionais esclarecidos, o papel histórico de transmitir informação, idéias e opiniões, a capacidade de persuasão e, destacadamente, a capacidade de dialogar com as massas. Contudo, a leitura que se faz de um poder paralelo, autônomo, e independente não é correta. Há, pelo menos, dois argumentos possíveis de se averiguar nessa interdependência de poder exercido pela imprensa.

O primeiro diz respeito sobre para quem a grande imprensa exerce o poder. Alguns desavisados poderiam considerar ser para a própria sociedade. Não, o poder exercido pela imprensa está calçado nos interesses das elites. Neste caso, a palavra no plural é correspondente aos vários grupos sociais dominantes que se unificam em sentido geral para preservar o sistema, mas se digladiam por maiores espaços de dominação.

O segundo é o peso real da capacidade de intervenção da grande imprensa na sociedade. Ao mesmo tempo em que há a concentração monopolística das empresas de mídia, é cada vez maior a quantidade de órgãos de comunicação fazendo com que a verdade não seja uma unidade de pensamento. Também se deve relativizar a abrangência de todos esses órgãos, ainda longe de considerar a imprensa no Brasil como democrática.

As duas questões apontadas levam à conclusão de que o quarto poder exercido pela grande imprensa é, na verdade, parte constitutiva do sistema capitalista onde os grandes capitais financeiros e de produção exercem o poder de fato. Contudo, é forçoso considerar o papel da grande imprensa como predominante na chamada formação da opinião, causando um modelo ainda antidemocrático de informação e da formação da sociedade.

A grande imprensa se comporta como partido neoliberal?

A questão sobre o comportamento da imprensa como um partido político se insere no contexto da disputa pela hegemonia na sociedade. Quando os partidos políticos entram em crise e não conseguem corresponder às demandas das lutas políticas e ideológicas podem ser substituídos pela intervenção e orientação dos veículos de comunicação identificados no mesmo campo.

A disputa pela hegemonia da sociedade, como elaborou Gramsci, se dá pela força da coerção e pela força das idéias. Os veículos de comunicação cumprem papel decisivo na elaboração e massificação das idéias dominantes. Em situações como a atual política brasileira em que Lula conquistou o apoio de parcela significativa da sociedade e em certo ponto contrapõe o modelo neoliberal – mesmo com suas debilidades – coloca a influência da grande imprensa em situação de dificuldade. O que acontece neste momento é uma disputa acirrada para desgastar Lula e seus aliados, tentar impedir o avanço de sua popularidade e até inviabilizar os avanços do governo, sobretudo nas ações sociais.

Os principais partidos de oposição a Lula – PSDB e DEM – são constantemente criticados pelos grandes jornais pela inércia e falta de ações suficientes para se contraporem ao governo. Essa crítica tem tonalidades distintas de acordo com a orientação de cada jornal e região do país, mas constrói uma unidade em torno de um projeto que possa substituir a atual orientação do governo federal.

A grande imprensa busca influenciar a sociedade através das disputas de idéias, através das formulações de seus próprios articulistas ou intelectuais orgânicos que buscam se posicionar diante dos diversos fatores sociais. Neste momento, são os grandes veículos de comunicação que se posicionam como principais oposicionistas a um novo modelo que se busca desenvolver no Brasil.

O sociólogo Octávio Ianni procurou sistematizar o papel da mídia na sociedade atual e desenvolveu a tese do príncipe eletrônico, um novo agente social capaz de capitalizar a condução política da sociedade, tanto em referência ao príncipe de Maquiavel, como um condottiere, quanto ao moderno príncipe, uma organização articulada, um partido composto por pessoas capazes de compreender e transformar uma sociedade, como buscou sintetizar Gramsci. O príncipe atual é representado pelos meios de comunicação que cumprem um papel fundamental para a manutenção ou transformação social.

O príncipe eletrônico é constituído pela diversidade midiática em sua fase empresarial mais apurada, com técnicas e estratégias avançadas acompanhando o desenvolvimento do próprio capitalismo, reservados os espaços de disputa entre os meios e entre as corporações. Portanto, conforme esclarece Ianni, o mais importante instrumento (juntamente com empresas que constituem os oligopólios transnacionais) de hegemonia não é homogêneo nem monolítico; ao contrário, além da competição entre os meios de comunicação, ocorrem diferenças que dão a impressão da democratização do meio. Os veículos de comunicação estão ligados a “blocos de poder” atuantes em escalas nacional, regional e global.

Segundo os estudos oferecidos pelo sociólogo brasileiro, baseado nos argumentos gramscianos, os jornais (como parte constitutiva da mídia) exercem uma função ideológica transformando o mercado em democracia e, por conseguinte, como forma de desenvolvimento da sociedade, a única saída para as organizações de Estado.

Embora não afirme categoricamente que o príncipe eletrônico represente a substituição da representação legítima do condutor ou do partido, é possível verificar essa posição no texto de Ianni. O argumento de que as estruturas de representação estão em fase de superação pode ser precipitado, pois as classes ainda se organizam por partidos, movimentos, sindicatos (de trabalhadores ou patronais), corporações privadas etc. Todo o poder da mídia de hoje, como instrumento hegemônico, serve a um conjunto de organizações, inclusive pela representação contemporânea do condottiere, como os jornais tratavam Fernando Henrique Cardoso e o príncipe moderno, através dos partidos e grupos formadores de opinião distinguidos pelos projetos classistas.

Portanto, a manutenção do sistema de exploração de classe depende necessariamente da imposição das leis sobre o funcionamento social aplicada pelo Estado, e o convencimento da maioria da sociedade através dos instrumentos disponíveis, destacadamente os meios de comunicação.
Então os meios de comunicação substituíram os tradicionais meios de organização social, como os partidos políticos?

Embora haja um papel preponderante dos grandes meios de comunicação na atual luta política em defesa de preceitos privados e receitas neoliberais, ainda não superaram a função dos partidos políticos e outras formas de organização social. A melhor definição é ainda a capacidade que essas empresas jornalísticas e outras corporações midiáticas detêm em pautar a sociedade e os próprios partidos políticos.

A disputa pela consciência coletiva é uma constante e envolve os interesses das empresas jornalísticas pautadas pela lógica de mercado. O papel de qualquer empresa no capitalismo é busca de lucro, distinto do papel do jornalismo, busca da verdade. A contradição entre empresa jornalística e jornalismo é a utilização da segunda em função da primeira. Daí que a função pública das grandes empresas jornalísticas em representar a sociedade se esvai. No limite, buscam representar o pensamento de uma parte elitizada da sociedade.

Como resultado, parte da imprensa brasileira cumpre seu papel ideológico de classe e busca, neste momento histórico, travar uma dura batalha política contra as forças progressistas mais conseqüentes, em função dos antagonismos de seus projetos nacionais.

Rodrigo de Carvalho é sociólogo e mestre em Comunicação Social.

Notas
(1) “Manual de Estilo e Redação” da Folha de São Paulo, p. 07.
(2) Jornal O Globo, editorial, p. 06.
(3) Motta: 2002: 125.

Bibliografia
GRAMSCI, Antonio. Os Intelectuais e a Organização da Cultura, Civilização Brasileira, 8ª ed., Rio de janeiro, 1991.
IANNI, Octávio. “O Príncipe Eletrônico”, em Desafios da Comunicação, Vozes, 2ª ed., Petrópolis/RJ, 2000.
Manual de Redação, Folha de S. Paulo, “Publifolha”, 6a ed., São Paulo, 2001.
MOTTA, Luiz Gonzaga. “Ideologia e processo de seleção de notícias”, em Imprensa e Poder, Editora UnB e Imprensa Oficial de São Paulo, 2002.
Editorial, O Globo, p. 6, edição de 4 de agosto de 2007.

EDIÇÃO 91, AGO/SET, 2007, PÁGINAS 30, 31, 32, 33