Bergman, Antonioni e o falso “fim de uma era”
Miguel de Cervantes e William Shakespeare morreram na mesma data – 23 de abril de 1616 –, e a Unesco baseou-se nessa coincidência para escolher 23 de abril como Dia Internacional do Livro. Também o cinema acaba de vivenciar uma perda dupla e simultânea que motivou muitos críticos, no Brasil e no mundo, a anunciarem o “fim de uma era”. Entre a manhã e a noite de 30 de julho deste 2007, deu-se a morte de dois gigantes – o sueco Ingmar Bergman e o italiano Michelangelo Antonioni.
Fim de uma era? O exagero da sentença lembra a espontaneidade de um diálogo travado ao fim do enterro do cineasta Ernst Lubitsch. À saída do cemitério, dois outros diretores se lamentavam. “Nunca mais Lubitsch”, disse Billy Wilder. “Pior”, rebateu William Wyler, “nunca mais os filmes de Lubitsch!”. Pois não é de hoje – já faz mais de duas décadas – que se pode dizer “nunca mais as obras-primas de Antonioni e Bergman”.
Com Fanny e Alexander, de 1982, Bergman se declarou aposentado da direção de filmes e se dedicou mais ao teatro e à televisão. É verdade, voltou a colaborar com o cinema, ainda que de forma parcial. São dele os roteiros de Segundas Intenções, Sunday’s Children (ambos de 1992) e Infiel (2000). Seu Saraband, filmado em 2003 para a TV, chegou a ser exibido nos cinemas. Todas essas produções não estão, porém, no elevado nível que o cineasta sueco atingiu por reiteradas vezes.
No caso de Antonioni, o distanciamento ocorreu em virtude do derrame sofrido pelo diretor em 1985. Comprometido nos movimentos – andava de cadeira de rodas – e impossibilitado de falar, ele fez um e outro curta-metragem e precisou da parceria de Wim Wenders para dirigir o irregular Além das Nuvens (1995). Há três anos, surpreendeu em Eros, para o qual fez o episódio O Rumo Perigoso das Coisas. Mas a surpresa estava menos em seu retorno e mais na prolongada cena de masturbação interpretada por Regina Nemni. Antonioni estava com 89 anos quando o filme começou a ser rodado – e nunca antes havia dirigido uma seqüência tão anticonvencional.
Não foi, definitivamente, pelos últimos 20, 30 anos que Antonioni e Bergman fizeram história. Autores de filmes marcadamente originais, reflexivos e ousados, eles engrandeceram o cinema num período que vai, grosso modo, do fim da Segunda Guerra Mundial a meados da década de 1970. É a época subseqüente a Cidadão Kane (1941), a obra genial de Orson Welles que rompeu com o modelo clássico de D. W. Griffith e sintetizou as bases do cinema moderno. Em crise, Hollywood perdia espaço para cinemas autorais, a começar pelo neo-realismo italiano e ainda mais com os cinemas novos de vários países, como França e Japão.
Bergman e Antonioni se beneficiaram dessa onda renovadora, mas suplantaram-na. Tinham diversos temas em comum. Em excelente artigo para o New York Times, intitulado “O Homem que Fazia Perguntas Difíceis”, Woody Allen enumerou as questões abordadas nos filmes de Bergman: “Mortalidade, amor, arte, o silêncio de Deus, a dificuldade das relações humanas, a agonia diante das dúvidas religiosas, casamento em crise, a inabilidade das pessoas para se comunicarem com outras”. Com exceção da abordagem religiosa, pode-se dizer que Antonioni tratava dos mesmos assuntos – não à toa era considerado de “o cineasta da incomunicabilidade”.
Profissionais do cinema desde os anos 30 estrearam na direção na década seguinte – Antonioni com Gente do Vale do Pó (1943), Bergman com Crise (1946). Produziram muito, em quantidade e qualidade. O filme que projetou o autor sueco foi O Sétimo Selo (1957), um misto de saga e reflexão de um cavaleiro medieval, o fidalgo Antonius Block (Max von Sydow). Embora o longa seja repleto de cenas memoráveis, nenhuma ganhou mais notoriedade do que a abertura.
Ao voltar das Cruzadas, em meio às mazelas da Peste Negra, Block põe em julgamento o ato de viver. Angustiado, entra numa modesta igreja e encontra ali uma figura que não se revela inteiramente. “Minha indiferença me me castiga”, confidencia-lhe o fidalgo. “Quero que Deus me estenda a mão, mostre a cara, fale comigo. Choro para Ele na escuridão, mas não existe ninguém lá”. Mas a figura misteriosa é a própria Morte, que ignora cada lamúria do cavaleiro e anuncia que veio buscá-lo. Para postergar seu fim, Block conduz a Morte para um jogo de xadrez.
“Imagens como esta não têm mais espaço no cinema moderno, comprometido que está com a psicologia superficial e com o comportamento realista”, afirmou há anos o crítico Roger Ebert, num ensaio sobre O Sétimo Selo. “Os filmes não se preocupam mais com o silêncio de Deus, mas com as conversas dos homens”. E é por isso que Bergman faz falta ao cinema não só agora – mas há pelo menos uma geração. A era desses filmes pessoais e autênticos acabou possivelmente em algum momento dos anos 70, quando a indústria hollywoodiana retomou sua força e impôs os adolescentes como público-alvo do cinema.
Tubarão (1975), lançado simultaneamente em mil salas nos Estados Unidos, inaugurou o paradigma dos blockbusters – as superproduções que tomam os cinemas de assalto. Dois anos depois, Guerra nas Estrelas se tornou o primeiro filme-evento, cujo lançamento é associado a toda sorte de produtos (camisetas, flâmulas, copos, brinquedos, etc.) e multiplica o lucro da rede cinematográfica. Com esse agressivo “pacote”, Hollywood conseguiu reerguer os filmes comerciais e limitou o espaço para os filmes ditos “de arte”.
Num cenário assim, passaria quase despercebida a experimentação que Bergman promoveu em 1966 com Persona (que no Brasil recebeu o inacreditável título Quando Duas Mulheres Pecam). No enredo, uma atriz chamada Elizabeth (Liv Ullmann) emudece para sempre durante a encenação de Antígona. Passa a ficar, então, sob os cuidados da enfermeira, Alma (Bibi Andersson). Mas o tratamento que Alma lhe dispensa envolve uma série de neuroses, transtornos, histerias, agressões. Persona confronta fatos e imaginações, realidade e sonho, de uma tal forma só possível no cinema.
À tensão que ronda os monólogos e as ações de Alma, Bergmnan contrapõe imagens sublimes, de muita sensualidade. A cena em que os rostos de Liv Ullmann e Bibi Andersson se fundem chama atenção até diante dos padrões atuais de efeitos. Cenas belas e tensas, a bem da verdade, sobressaem em toda a filmografia bergmaniana. “As sugestões poéticas são submetidas a um processo de filtragem e surgem livres de impurezas na tela”, comentou Antonio Moniz Vianna sobre A Fonte da Donzela – numa frase que traduz a obra completa de Bergman.
Quem aprecia originalidade e audácia também sente falta de Antonioni há décadas. “Cada um de seus enigmas se tornou um filme ou pelo menos um esboço, e onde não se podia realizar o esboço, ele o projetou na tela das palavras”, resumiu o crítico alemão Andreas Kilb, em texto publicado no Frankfurter Allgemeine Zeitung. Por coincidência, a carreira do diretor italiano, assim como a de Bergman, tem em 1957 um ano-chave, com o lançamento de O Grito. O filme gira em torno de um amor mal-resolvido e duas mortes. Logo depois de saber, por telefone, que o marido faleceu, Irma (Alida Valli) rompe com o amante, Aldo (Steve Cochran). Ela está apaixonada por outro – e também está convicta de suas decisões. Aldo não aceita a separação e, crise após crise, entra em depressão. Vaga a esmo, transa com outras mulheres, faz bicos, mas continua a pensar só em Irma. A segunda morte – e o tal grito do título – ocorre na cena final. Desestabilizado, sem conseguir retomar a relação, Aldo se suicida.
A desolação e o tédio marcam também a trilogia que Antonioni filmou em seguida – A Aventura, A Noite e O Eclipse –, mas é a morte, novamente, que está no centro de seu filme mais célebre, Blow Up – Depois Daquele Beijo. Thomas (David Hemmings), um fotógrafo de moda, aciona sua máquina ao ver um casal discutindo num parque londrino. Quando revela os negativos, descobre que, sem querer, flagrou também um homem armado e outro caído, talvez morto. As imagens não são claras e, quanto mais Thomas as amplia, há menos resolução. O fotógrafo vai ao parque e encontra o corpo. De volta à sua casa, dá conta de que lhe furtaram os reveladores retratos. O corpo, no parque, igualmente desaparece. O filme se encerra em uma cena redundante – Thomas se depara com adolescentes jogando uma partida imaginária de tênis, sem quadra nem rede, sem raquete ou bola.
O impacto que Blow Up provocou em 1966, quando foi lançado, estendeu-se por cinematografias de variados gêneros e países. Com muita habilidade, Antonioni expõe a excitação que move Thomas ante a possibilidade de ter testemunhado um crime. O dia-a-dia do jovem fotógrafo é uma rotina pautada pela a legenda máxima dos anos 60 – “sexo, drogas e rock’n roll”, tudo ao extremo. São as possibilidades desencadeadas pelas fotos no parque que recompõem a essência do personagem e, ao mesmo tempo, testam conceitos como a verdade e a ética.
Em Passageiro: Profissão Repórter (1975), seu último grande filme, Antonioni retoma brilhantemente esses temas. David Locke (Jack Nicholson) é o jornalista que, como o Thomas de Blow Up, encontra um homem morto – e esse fato redireciona sua vida. A descoberta ocorre num hotel. David decide assumir a identidade do homem, mesmo sem saber nada a respeito dele, e forja a própria morte, trocando de roupas e documentos. Quando descobre que o morto era um traficante de armas, empolga-se com a nova identidade e segue a agenda do criminoso. Em suas andanças, cruzará várias vezes com uma jovem (Maria Schneider), que vira cúmplice. Mas David já precisa conciliar fugas – da polícia, de traficantes, de matadores e da mulher que começa a desconfiar que ele não morreu.
Se as cenas inicias são tão expressivas e emblemáticas nos filmes de Bergman, Antonioni caprichava particularmente nos finais – e o desfecho de Passageiro é exemplar. O diretor italiano não queria mostrar o assassinato de David. Num plano-seqüência que dura minutos, deixou a câmera sair de um quarto, filmar pessoas e objetos, parar, movimentar-se – e só voltar ao cômodo, pela janela, após um som de tiro. Pedro Butcher, na Folha de S.Paulo, não ficou longe da razão ao dizer que essa imagem-síntese, “não só por ser um plano-seqüência virtuoso”, contém “em si as características mais importantes do cinema moderno: a imagem que incorpora o tempo (recusando o corte da montagem) e o chamado extra-campo, ou seja, aquilo que está fora do quadro”.
São cenas, filmes e diretores que estão mesmo em falta no cinema. Sem Antonioni, assim se pronunciou o presidente do Festival da Cannes, Gilles Jacob: “Ele foi um alquimista do íntimo, o maior aquarelista do coração que o cinema moderno já conheceu”. No dia seguinte à morte de Bergman, o La Repubblica, exaltando “seus filmes, sua inteligência, sua arte, sua poesia”, ressaltou: “devemos agradecer, sobretudo, pela confiança que ele sempre depositou na inteligência do público”. Há décadas, a era em que o cinema exigia inteligência do público chegou ao fim.
André Cintra é jornalista.
EDIÇÃO 91, AGO/SET, 2007, PÁGINAS 78, 79, 80, 81