A experiência histórica indica que as conquistas das mulheres só se dão em períodos de expansão democrática, sob pressão das próprias mulheres, contando com o apoio do pensamento avançado da sociedade. Em toda onda obscurantista, a primeira vítima é a mulher. Quer maior comprovação do que o simbolismo das fogueiras consumindo “bruxas” – aquelas mulheres que ousavam transgredir as verdades estabelecidas no período da Inquisição?

Ao analisar os avanços sociais conquistados na resistência dos excluídos percebe-se que ela depende do tempo e das circunstâncias. E é importante resgatar os aspectos centrais do momento presente para descobrir os caminhos a serem percorridos.

O legado do século XX é contraditório: o início de seus anos 90 é marcado pelas vitórias do mundo do trabalho, com as primeiras experiências de construção das sociedades socialistas. Nelas, valores morais que ressaltavam a solidariedade e o combate aos preconceitos contribuíram para importantes conquistas institucionais das mulheres.

Em meados do século, outros passos foram dados. As mulheres iniciaram uma jornada de afirmação da própria identidade e de sua visibilidade. Investida que teve na produção de Simone de Bouvoir um simbólico marco. Conferências mundiais sucessivas pontuaram a construção política desses avanços.
Nesse período, a humanidade se descobriu mulher.

Lamentavelmente, no entanto, o fim do século é marcado pelo avanço da barbárie das guerras, a ofensiva dos fundamentalismos e a quebra de paradigmas de humanidade. Nesse contexto desafiador é que se desenvolve a busca da mulher por mais espaços de poder.
Acompanhando a herança perversa da sociedade capitalista globalizada do final do século, a construção política brasileira apresenta componentes que se opõem aos melhores pressupostos da tradição democrática.

O Estado brasileiro é marcado pelo autoritarismo, na elevada concentração de poder de sua República, e pela apropriação privada da coisa pública, cujas históricas chagas da corrupção só agora vêm à plena luz, na sua inteireza. Para isso foi decisiva a peculiar origem de sua representação eletiva: o voto censitário, onde sufrágio e poder econômico têm a mesma raiz.

A subversão de valores nas conquistas das mulheres

A experiência brasileira comprova que toda conquista das mulheres teve como pano de fundo de sua sustentação a subversão de valores da estrutura social. O direito do voto feminino foi um subproduto da revolução de 1930, em contraponto aos valores das oligarquias rurais. Naquele período, a expansão da sociedade industrial-urbana confrontava com a estrutura de poder dos coronéis, que asseguravam sua representação política através dos famosos currais eleitorais. A universalização do voto era componente importante para a ruptura do poder político com a hegemonia rural. A intensa mobilização das “sufragistas” contou com uma necessidade objetiva de modernização do Estado brasileiro. O voto feminino foi resultante desses dois movimentos.

A licença-maternidade, outra importante conquista feminina, que referendou o sentido social da maternidade, é produto das lutas dos trabalhadores e da necessidade nascente do Brasil industrial, em confronto com a produção agrária. Incorporar as mulheres no mercado de trabalho, mesmo que ainda em grau limitado naquele período, exigia a regulamentação de suas condições específicas.
A participação das mulheres na atividade agrária tradicional não as retirava da proximidade do lar, por isso não era uma exigência da estrutura rural. Mas, passou a sê-lo no Brasil urbano, fruto de sua expansão industrial.

As décadas de 1980 e 1990 tiveram como conquista a instituição de organismos específicos nas administrações públicas. Em 1985, são criados os conselhos nacional e estaduais dos Direitos da Mulher e as delegacias específicas de crimes contra a mulher. Essa expansão das iniciativas do Estado em relação ao combate às discriminações contra as mulheres foi a materialização da ruptura com o período ditatorial fechado às demandas democráticas da sociedade.

O ponto mais relevante do processo de apropriação pelo Estado do combate institucional às discriminações contra a mulher é a aprovação do Plano Nacional de Políticas Públicas para as Mulheres, enviado pelo governo Lula e aprovado pelo Congresso Nacional. A unificação das políticas públicas, representada por esse Plano Nacional tem o significado simbólico da retomada do papel do Estado nas demandas sociais, em confronto com o modelo neoliberal de Estado mínimo.
Esse resgate histórico das conquistas femininas comprova a íntima relação que elas têm com os avanços democráticos, impondo aos movimentos feministas a agenda global da sociedade.

Radicalizar na democracia, reordenar espaços de poder

O novo momento da democracia brasileira, com a eleição de Lula, impõe maior protagonismo da sociedade para subverter os valores estratificados. A reeleição de um operário para continuar conduzindo o governo do país significou a confiança da parte excluída da população brasileira em buscar seus próprios caminhos para superar os impasses do seu desenvolvimento e suas desigualdades seculares. Mas o gesto inaugural da eleição não assegura, por si só, a construção real de um novo tempo. A pressão organizada dos setores tradicionalmente excluídos é elemento decisivo do processo de mudança.

Os defensores do “estabelecido” continuam com fortes instrumentos de pressão para manter a situação presente. Por isso, a retomada da expansão do movimento feminista e de sua autonomia é um pressuposto para a necessária pressão transformadora.

Passa a ter prevalência a luta pela incorporação das mulheres nas instâncias de poder, como componente decisivo da democratização da estrutura política do Estado brasileiro. A inclusão da mulher na política não pode ser vista apenas como direito. Essa incorporação é parte essencial da construção democrática, é dever do Estado e da sociedade.

Neste momento, o principal desafio é levar a mulher a encontrar sua perspectiva de poder através da construção dessa escalada, da articulação de redes de apoio para a sua participação política, da conquista de uma reforma política sob a ótica de gênero e do reforço para garantir sua presença nas estruturas partidárias.

A construção de seu poder passa pela reafirmação de sua auto-estima, pela ampliação do recrutamento feminino para a política e pela criação de mecanismos de sua qualificação. A articulação de redes de apoio que viabilizem e reforcem essa participação são componentes essenciais nessa estratégia.

As dificuldades dos partidos em absorver a temática de gênero; a baixa representação das mulheres nas instâncias decisórias; as dificuldades de acesso ao fundo partidário são obstáculos a serem enfrentados.

A criação do Fórum de Coordenadoras Nacionais de Organismos de Mulheres é um exemplo de mecanismo que pode contribuir na superação desses obstáculos. Exemplo que deve ser multiplicado nos níveis estaduais e municipais. O reordenamento dos espaços de poder, que permita a inclusão das mulheres, passa necessariamente pela aprovação de uma reforma política sob a ótica de gênero.

Alguns pressupostos dessa reforma contribuem para essa inclusão:
a) O caráter democrático que assegure a pluralidade da representação passa pela manutenção do voto proporcional. É através dele que a mulher consegue melhores condições de alcançar representação;
b) a nitidez ideológica programática através da fidelidade partidária, ordenada pelos partidos é parte dessa construção;
c) a diminuição da força do poder econômico, com o financiamento público, é o caminho para viabilizar recursos materiais para as candidaturas femininas; e
d) o reforço dos partidos, através das listas pré-ordenadas, regulamentadas para garantir a implementação das cotas, e a participação democrática dos convencionais é o caminho possível de ampliar a representação feminina nas instâncias de poder.

Propostas de ampliação da participação feminina na reforma política

A batalha concreta para a ampliação da participação feminina nas instâncias de poder teve, no recente debate da reforma política na Câmara Federal, uma experiência real dos obstáculos a serem superados. Para começar, os elementos centrais de financiamento público e das listas pré-ordenadas foram obstaculizados pela lógica conservadora que derrotou na votação da Câmara a lista mista apresentada pela Emenda Aglutinativa com metade dos eleitos na lista pré-ordenada e metade na votação direta dos mais votados.

O financiamento público na eleição legislativa foi derrotado, limitando a superação do componente fundamental nas candidaturas femininas, que é o acesso aos recursos materiais para as campanhas. No debate sobre o tema, algumas medidas de ampliação dos espaços para as mulheres, mesmo que ainda não regulamentadas, foram incorporadas pelos relatores.

São elas:

A) Quanto às cotas: as propostas apresentadas ao plenário incluíam – “Do número de vagas resultante das regras previstas neste artigo, cada partido ou federação deverá reservar o mínimo de trinta por cento e o máximo de setenta por cento para as candidaturas de cada sexo” (Artigo 8-A, inciso III, parágrafo 4º).
Emenda Aglutinativa de Plenário. “A ordem de precedência dos candidatos na lista pré-ordenada corresponderá à ordem decrescente dos votos por eles obtidos na convenção, procedendo-se aos ajustes necessários para que não haja mais de duas candidaturas consecutivas de pessoas do mesmo sexo, no primeiro terço da lista” (Artigo 8º, parágrafo 4º das Emendas de Plenário do relator, deputado Ronaldo Caiado).

B) Quanto aos recursos do Fundo Partidário: os dois relatórios apresentados incluíam: “Na criação e manutenção de instituto ou fundação de pesquisa e de doutrinação e educação política, sendo esta aplicação de, no mínimo, vinte por cento do total recebido, dos quais, pelo menos, trinta por cento serão destinados às instâncias partidárias dedicadas ao estímulo e crescimento da participação política feminina” (Artigo 44, inciso IV dos dois relatórios).

C) Quanto ao tempo de Rádio e TV: este foi um componente também de consenso entre os dois relatórios que indicavam: “Promover e difundir a participação política das mulheres, dedicando ao tema, pelo menos vinte por cento do tempo destinado à propaganda partidária gratuita” (Artigo 45, inciso IV dos dois relatórios).

Na batalha para tornar a inclusão das mulheres nas instâncias de poder – um DEVER DO ESTADO E DA SOCIEDADE – há um longo caminho a percorrer. O primeiro passo a ser dado é lutar por incluir a mulher na batalha por desenvolver o país com distribuição de renda e superação das desigualdades.

Jô Moraes é deputada federal pelo PCdoB/MG.

EDIÇÃO 91, AGO/SET, 2007, PÁGINAS 68, 69, 70, 71