Uma laicização milionária
Ninguém estranhe que eu me sirva da matéria de hoje para falar em Papai Noel. Esperei, de propósito, que esfriasse o clima natalino para dizer algumas coisas a respeito desse personagem que me intriga, faz algum tempo.
Creio que a invenção do Papai Noel como promotor laico das festas natalinas deve ser considerada a maior jogada de marketing (espontânea? inconsciente? coletiva?) de todos os tempos. A sociedade de consumo pode se orgulhar disso. O que teria que ser considerada uma proposta insensata e inviável – a sobreposição de um personagem de fantasia à comemoração litúrgica do nascimento do Filho de Deus, que vem sendo celebrada desde o séc. IV – é coisa de um atrevimento sem precedentes. Mas que, por incrível que pareça, deu certo. Deu certo a ponto de os cidadãos se sentirem obrigados a usar os símbolos e a praticar os rituais das duas “crenças” ao mesmo tempo: a lúdica e a mística. Aliás são símbolos e rituais já consolidados e caracterizados até nos adereços (criatividade limitada, como sempre acontece com as recorrências consagradas).
A perspectiva, no entanto, é que a curto prazo, a fórmula lúdica se torne o motivo principal do evento, com tendência a se universalizar; pois a festa, em seu formato laicizado, já invadiu diversos paises não-cristãos que, com essa atitude, passaram a participar da farra comercial, autorizados pelo fato de que o discurso e o figurino do nosso herói não são vinculados a nenhuma referência religiosa.
Mas quem é esse Papai Noel que já foi além do seu papel de promotor para se tornar, em breve, o dono do evento? Encabulado, à procura de uma justificativa da eleição ou da construção desse personagem, dei-me ao trabalho de fazer uma pesquisa, ainda que informal, quanto à lenda que lhe proporcionou essa desmedida popularidade. Tempo perdido. Temos uma porção de historinhas que não batem umas com as outras, dependendo da imaginação dos autores. Quando você encontra duas iguais é porque um autor copiou de outro. Somente o começo de todas as variantes é comum e inalterável: um tal de São Nicolau (séc. 4) costumava distribuir presentes para as crianças, em nome dos Reis Magos.
Supõe-se que isso tenha algo a ver com a breve tradição do Jesus Menino deixar brinquedos aos pés da árvore, a partir da Revolução Industrial. Convenhamos que esta associação é pouco, muito pouco para satisfazer a nossa curiosidade. E a roupa vermelha, de lã, própria para climas frios, com neve e tudo mais? Como explicá-la? E o gorrinho com borda de arminho e pompom, que já se tornou o mais característico símbolo natalino, e que é usado tanto por um coral de criancinhas cantando na frente de uma igreja quanto por “mamães-Noel”, bailarinas de um show televisivo?
Isso faz algum sentido com a comemoração de uma data que é a representação máxima de uma crença praticada por centenas de milhões de pessoas? (Vale a pena lembrar que o nome do laico Papai – Noël – significa Natal em francês, um país que nada tem a ver com nenhuma versão da lenda?). Então, o que é que faz sentido? É preciso que eu diga o que todo o mundo está cansado de saber? Papai Noel é uma instituição comercial, a qual, de longe, é a mais eficiente e a mais bem sucedida de todo o calendário anual de bons negócios, mostrando e demonstrando que o marketing, elevado a enésima potência, tudo pode. Portanto, esqueçam a maior parte das elucubrações que rabisquei nessa matéria. São resquícios, entre muitos outros, de pensamentos humanistas que vão se tornando absolutamente inúteis com o triunfo da sociedade de consumo.