A Grande Revolução Socialista que derrubou a velha Rússia dos czares foi sem dúvida o mais importante acontecimento da história mundial até o momento, o fato mais destacado na evolução social e política da humanidade. Pela primeira vez o proletariado – tendo à sua frente o Partido Comunista e unido às demais camadas populares, principalmente o campesinato – tornou-se a força dirigente e iniciou a construção do poder dos trabalhadores e da sociedade socialista.

Outubro de 1917 confirmou a tese de Marx e Engels, baseada na análise científica da sociedade e da história, de que o capitalismo não é eterno. Sob o influxo de contradições antagônicas, num dado momento inevitavelmente a evolução econômica e política da sociedade apresenta questões agudas e têm lugar situações revolucionárias que, num quadro de amadurecimento das condições subjetivas, resultam na vitória da revolução. Já em 1848, o Velho Continente foi de ponta a ponta revolvido pelos movimentos que entraram para a história como a “Primavera dos Povos”, quando o proletariado fez seu batismo de fogo na luta política e pela primeira vez formulou bandeiras de luta próprias, entrelaçando a luta nacional, a luta democrática e a luta social. A era dos Impérios coloniais da Santa Aliança dava sinais de exaustão e o capitalismo nascente já se revelava incapaz de cumprir o desiderato da liberdade, da igualdade e da fraternidade. Principalmente no que toca à emancipação social, já em meados do século 19, a burguesia revelava todas as suas limitações. Por isso, no documento fundador do socialismo científico, o Manifesto Comunista, publicado em 1848, Marx e Engels diziam: “De todas as classes que neste momento estão enfrentando a burguesia, somente o proletariado é a classe verdadeiramente revolucionária”. Um quarto de século depois, em Paris, ocorria a primeira tentativa de tomada revolucionária do poder pelo proletariado, durante as jornadas heróicas da Comuna. E na Rússia, doze anos antes da vitória da Revolução de Outubro, as massas populares fizeram uma experiência fundamental – a Revolução democrática contra a autocracia imperial czarista.

Outubro de 1917 foi a confirmação da opinião de Lênin de que, com a passagem do capitalismo à etapa imperialista, abria-se a época da revolução socialista, devido ao amadurecimento das contradições objetivas: entre o proletariado e a burguesia, entre o imperialismo e os povos e nações oprimidos, além das contradições entre as potências imperialistas pelo domínio do mundo. A Revolução socialista de 1917 criou uma nova situação política no mundo. Foi extraordinária a sua influência política e ideológica. A União das Repúblicas Socialistas Soviéticas foi a força principal na vitória sobre a maior e mais agressiva potência militar da burguesia imperialista – a Alemanha hitlerista. A vitória do socialismo estimulou as lutas dos trabalhadores no mundo capitalista, obrigou a burguesia a fazer concessões ao movimento sindical e operário. O século 20 foi fortemente marcado pelo socialismo vitorioso na União Soviética e sob a influência desta foi transformado no século das revoluções antiimperialistas, democráticas, populares e socialistas. O século das lutas pela libertação nacional e social dos povos, das lutas anticoloniais, democráticas, pela paz e a justiça, objetivos estes que se confundem com os grandes valores e ideais da Grande Revolução Socialista de Outubro. A principal lição que ficou de 1917 foi a de que somente a revolução pode abrir caminho à conquista da libertação, das transformações sociais e políticas progressistas. Há 90 anos era sepultada a colaboração de classes como estratégia do movimento operário e popular. Obviamente, aquele momento é irrepetível na circunstância e na forma e por certo a questão da Revolução social, da tomada do poder político pelos trabalhadores, da construção da nova sociedade não se apresenta nos dias de hoje com os mesmos termos da época da Revolução de 1917. Há problemas novos e complexos a reequacionar, à luz duma teoria enriquecida e do estudo concreto da realidade contemporânea.

Socialismo, necessidade objetiva

O ciclo aberto em 1917 foi truncado com a degenerescência do socialismo e interrompido com o fracasso das primeiras experiências de construção do socialismo, uma derrota histórica que criou uma nova situação no mundo e produziu uma importante mudança na correlação entre as forças progressistas e as conservadoras. Atualmente, os povos estão confrontados por uma brutal ofensiva do imperialismo, sobretudo o norte-americano, para impor sua dominação através do militarismo e da guerra. Nesse quadro, tornou-se uma noção corrente que o socialismo e a revolução sofreram um golpe fatal e doravante já não há chance para a luta revolucionária. Para nós, os comunistas, contrariamente a esse senso comum, a luta pelo socialismo continua na ordem-do-dia, porque corresponde a uma necessidade objetiva da evolução da sociedade. E não nos iludimos quanto à possibilidade de esse salto histórico se processar espontaneamente ou por dádiva das classes dominantes. As forças que lutam pelo socialismo têm em conta as novas condições históricas, que o socialismo não pode ser construído abruptamente. O exame atento da história mostra que a construção do socialismo e a evolução rumo a uma sociedade sem classes, o comunismo, serão obras de muitas gerações. É preciso também ter presente que não há modelo para a construção do socialismo. A adoção do modelo único foi um grave erro, uma posição anticientífica. O socialismo é universal enquanto teoria geral e aspiração de libertação da classe operária em todo o mundo. É universal enquanto transformação, em moto-perpétuo, de uma época de opressão numa época em que a humanidade será livre e realizará suas aspirações de justiça e progresso. Mas o socialismo será resultado de uma luta multifacética de cada povo, em circunstâncias históricas e políticas bem delimitadas, o que exigirá das forças revolucionárias e do Partido Comunista de cada país a elaboração de novos e originais programas e formulações estratégicas e táticas.

Contra-revolução e crise da civilização

A passagem do 90º aniversário do maior acontecimento da história da humanidade enseja à atual geração de lutadores pelo socialismo reflexões de sentido prático. Não está ainda plenamente configurada a correlação de forças que levará a humanidade à nova “primavera dos povos”. Mas tampouco essa correlação forma-se por geração espontânea, cabendo às forças revolucionárias adotar linhas estratégicas, procedimentos táticos e métodos de ação consoantes à necessidade de abordar, nas novas condições, a luta pelo socialismo em todo o mundo. Diante do capitalismo-imperialismo mundializado, das políticas neoliberais, das políticas de guerra, da natureza reacionária do sistema político e econômico burguês, ganha relevo a questão: encontra-se na ordem-do-dia a tarefa de lutar por melhorias no capitalismo, de combater as “deformações” da globalização ou de elaborar estratégias, táticas e métodos revolucionários que conduzam os trabalhadores em todo o mundo à luta pelo socialismo como único caminho para superar os inarredáveis impasses em que a humanidade está confrontada sob o atual sistema? O grande paradoxo da presente época é que o capitalismo atingiu um nível tal de desenvolvimento, um tamanho grau de expansão, que alcança todos os rincões do planeta; um grau antes inimaginável de desenvolvimento de suas capacidades, mantendo sua essência de perseguir o lucro máximo, o que obtém através da exploração e opressão das massas trabalhadoras e da espoliação das nações dependentes. E permanecendo como um sistema que produz crises e estagnação. O capitalismo dos nossos dias beneficia apenas as grandes burguesias parasitárias dos países imperialistas. É, assim, inevitável a eclosão de lutas, em que os fatores de classe se entrelaçam com os nacionais. É nesse contexto que ressurge em nossos dias a luta pelo socialismo.

A Revolução socialista de 1917 criou uma nova situação política no mundo. A União das Repúblicas Socialistas Soviéticas foi a força principal na vitória sobre a maior e mais agressiva
potência militar da burguesia imperialista – a Alemanha hitlerista

No 11º Congresso do seu Partido, realizado em outubro de 2005, os comunistas brasileiros puseram em relevo os retrocessos econômicos e sociais da presente época, desnudando o caráter retrógrado do capitalismo, suas lancinantes contradições, que conduziram a civilização a uma crise, pondo a descoberto a disjuntiva da época. Ou a humanidade luta contra o capitalismo e abre novamente o caminho da história para a construção de um ordenamento econômico e social superior, ou sucumbirá inapelavelmente na barbárie. Segundo o documento aprovado pela unanimidade dos congressistas comunistas, os retrocessos desta época manifestam-se no aprofundamento das assimetrias entre os países ricos imperialistas e os países dependentes e no agravamento das contradições de classe. A idéia-força do desenvolvimento independente é substituída pela imposição das regras da globalização capitalista, baseadas na espoliação de países e povos, na super-exploração das massas trabalhadoras, no corte dos direitos sociais e na devastação do meio-ambiente. Num cenário econômico em que se acentuam os fatores de instabilidade e de crise, em que se evidenciam os desequilíbrios estruturais da economia norte-americana, sua tendência para o declínio e a exacerbação do parasitismo, são nulas as possibilidades de regeneração do sistema capitalista num sentido socialmente progressista. Atualmente vivemos uma fase destrutiva e regressiva do capital em suas relações com o trabalho. O desemprego, a precariedade, a informalidade, o corte de direitos laborais e previdenciários se transformaram em verdadeira pandemia. Essas constatações chamam a atenção para uma questão fundamental. O desenvolvimento nacional independente já não é possível nos marcos do capitalismo. O pressuposto do desenvolvimento é o socialismo, a existência de um novo poder, em mãos das classes emergentes da sociedade – as classes trabalhadoras – capaz de empreender transformações econômicas e sociais estruturais, a partir da legitimidade alcançada na luta por um novo ordenamento social e político.

A principal lição que ficou de 1917 foi a de que somente a revolução pode abrir caminho à conquista da libertação, das transformações sociais e políticas progressistas

A 90 anos do grandioso acontecimento ocorrido na velha Rússia, o mundo do início do século 21 exibe os traços de inaudito retrocesso. Cada vez mais fica patente que o desaparecimento do socialismo na URSS e nos países do Leste europeu no início dos anos 1990 foi uma contra-revolução, cujas conseqüências nefastas continuam a se fazer sentir. O ciclo político aberto na última década do século 20 é conservador e contra-revolucionário. O principal vetor do quadro político é a abrangente e brutal ofensiva do imperialismo, o que cobra elevado preço aos povos, em termos de liberdade, soberania nacional, segurança e direitos sociais. Os principais instrumentos dessa ofensiva são as políticas econômicas neoliberais, a militarização, a guerra e o exercício de uma política externa unilateralista e securitária por parte dos Estados Unidos, que ignora os organismos multilaterais, a não ser quando se trata de instrumentalizá-los, assim como vilipendia o direito internacional, tornado letra morta. Em que pese a utilização demagógica e também instrumental da “democracia” e da “defesa dos direitos humanos”, as liberdades políticas são aviltadas pela hipertrofia do estado policial, pela proliferação de leis que consagram o terrorismo de Estado, pela violação dos direitos humanos. Isto evidencia que o sistema capitalista já não tem condições de assegurar a democracia política e a democracia social. O pressuposto destas é o revolvimento e a superação das atuais estruturas e superestruturas da sociedade. A conquista de direitos políticos e sociais plenos, que garantam o poder político para os trabalhadores e a emancipação social, não emanarão de um “aperfeiçoamento” do sistema burguês nem serão dádivas das classes dominantes – aliás, cada vez mais reacionárias –, mas da supressão do próprio sistema capitalista e de sua superação pelo socialismo. Em grande medida, a estratégia do imperialismo visa a impedir o fortalecimento das nações que buscam caminho próprio de participação na vida internacional e de desenvolvimento econômico. Quase duas décadas transcorridas desde o desaparecimento da URSS, os EUA se supõem em condições de perseguir seus objetivos de impor a tirania global e exibem de maneira ameaçadora seu poderio militar e nuclear superdimensionado, com mais de meio milhão de soldados norte-americanos fora do território dos Estados Unidos, seja nas ocupações de países, como o Iraque, o Afeganistão e a antiga Iugoslávia, seja nas mais de 700 bases militares espalhadas em todos os rincões do planeta, com seus gastos militares de cerca de meio trilhão de dólares, ultrapassando a soma dos orçamentos militares dos dez países de maiores gastos militares do mundo, e seus planos de instalação dos escudos antimísseis, incrementando a escalada nuclear.

Como expressão dessa ofensiva para impor seu domínio no mundo, o imperialismo estadunidense elaborou teorias para exercer a primazia de seus interesses sobre a vida internacional. Está vigente e em pleno funcionamento o projeto para “o novo século americano”, consubstanciado na estratégia de segurança nacional, que consagrou o princípio da guerra global e infinita, da guerra preventiva, da “recriminação” e “punição” aos países considerados como integrantes do “eixo do mal”, segundo critérios arbitrários. Tudo isso demonstra que outra aspiração fundamental da humanidade, a paz, não pode ser alcançada nos marcos do capitalismo e do sistema de dominação imperialista. Somente o socialismo pode fazer renascer as possibilidades de paz, convivência harmônica entre as nações e cooperação internacional. Sob o sistema atual, serão sempre grandes os riscos de conflitos. Evitar o aparecimento de um concorrente global, uma potência multidimensional que exerça no cenário internacional o papel de contrapeso ao hegemonismo estadunidense é o escopo da política externa do imperialismo. Isto implica uma atitude de permanente vigilância em relação à China e à Rússia, a tentativa de subordinar a Europa aos seus interesses e o esforço para impedir o surgimento de países líderes regionais, assim como o esmagamento das experiências revolucionárias.

Um recomeço, preparando a nova Primavera dos Povos

Os fatores estruturais e conjunturais mencionados acima trazem para a ordem-do-dia a necessidade de reiniciar a luta por alternativas de fundo, com caráter popular e que representem uma ruptura com o estado atual de coisas no mundo. Para as forças antiimperialistas, revolucionárias, progressistas, partidárias do socialismo, trata-se de retomar a luta pelo socialismo nas novas condições do século 21. Naturalmente, o movimento revolucionário vive ainda sob o impacto das derrotas sofridas pelo socialismo no início dos anos 1990, as quais produziram significativa mudança nas correlações de força e debilitaram o fator subjetivo. O começo dos anos 1990 foi marcado pelas derrotas generalizadas da revolução e do socialismo, pela degenerescência de partidos comunistas e forças revolucionárias, num ambiente de desmoralização, descrédito e fracasso. Esse ambiente não está totalmente superado, mas vivemos um recomeço, uma nova transição. Porque a última década, principalmente de 1995 até os dias de hoje, foi marcada por um novo despertar, um renascimento das lutas. E esse renascimento foi implicando também o surgimento de uma série de novas forças políticas, novos movimentos e novas formas de coordenação entre si. Na percepção do novo momento de lutas, ganha realce o fato de que os Estados Unidos estão sofrendo derrotas em seus empreendimentos bélicos no Iraque e no Afeganistão, no Líbano e na Palestina. Encontram-se politicamente isolados, sofrem seguidas derrotas diplomáticas e, apesar da brutalidade e das ameaças de desencadear novos ataques “preventivos”, não conseguem impor sua vontade. Simultaneamente, cobra força a luta pela paz, remonta a luta social e operária nos países capitalistas desenvolvidos, aumenta a resistência operária contra o corte de direitos e o definhamento do Estado de bem-estar.

A América Latina é cenário de importantes mudanças. Aqui está em formação um promissor quadro político, vão-se abrindo perspectivas e amadurecendo as condições para transformações políticas e sociais de vulto. Além da resistência heróica de Cuba, que derrota a cada dia o bloqueio imperialista, a América Latina vê triunfar a Revolução Bolivariana, com acentuado caráter antiimperialista. Depois de uma década, desde a primeira vitória eleitoral de Hugo Chávez, em 1998, o programa da revolução vai tomando novos contornos, à medida que são proclamados objetivos socialistas. Além disso, forças democráticas, patrióticas e populares, genericamente designadas como de esquerda ou centro-esquerda, assumiram os governos de vários países, formando objetivamente um contrapeso ao hegemonismo estadunidense na região, promovendo reformas econômicas, políticas e sociais. Por caminhos novos, nunca dantes percorridos, as camadas populares vão sendo provadas em novas experiências políticas, elevando a consciência democrática e antiimperialista, acumulando força política e organizativa para lutas de maior envergadura no futuro.

Na passagem do 90º aniversário da Grande Revolução Socialista, o panorama político vem experimentando transformações. Significa que um novo surto revolucionário está em curso? Que a Revolução Socialista voltou a ser uma questão candente a exigir solução imediata? Que começou a “Primavera dos Povos” do século 21? Ainda não. Ainda. Significa, entretanto, que melhoram as condições para lutar, que se intensifica a acumulação revolucionária de forças, que aparecem os primeiros sinais de que o imperialismo não é invencível. No reposicionamento da luta pelo socialismo, não se pode ser fatalista e captar apenas os sinais da ofensiva do imperialismo. É preciso perceber as novas potencialidades revolucionárias que estão despertando. O caminho que percorrerá a nova luta pelo socialismo não será fácil nem retilíneo. Esta luta se confronta em cada momento, em cada batalha, com um colossal sistema de dominação que não cederá pacificamente as suas posições. Se os trabalhadores e os povos querem um novo sistema político, econômico e social, liberdades, soberania e direitos, paz e segurança, terão de encetar a luta política de classes, na qual hão de ter firmeza diante da força, sabedoria em face do engodo, uma elevada consciência política-ideológica, força organizativa, tirocínio tático-estratégico e capacidade de combate. A celebração do 90º aniversário do glorioso Outubro é uma feliz ocasião para cultivar esses valores.

José Reinaldo é jornalista, secretário de Relações Internacionais do Partido Comunista do Brasil, diretor do Cebrapaz (Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz).

EDIÇÃO 92, OUT/NOV, 2007, PÁGINAS 61, 62, 63, 64, 65