1- Até a eclosão, em 1914, da primeira grande guerra européia, a II Internacional, como lembrou Luigi Cortese, previa o curso histórico provável da revolução proletária com muito otimismo: “a lógica da transição para o socialismo estava incluída na própria lógica do desenvolvimento capitalista que, em certo sentido, a garantia, e a revolução socialista eclodiria da plenitude daquele desenvolvimento”(1).

Esse otimismo era partilhado pelos marxistas, inclusive por Lênin, quando publicou “Notas críticas sobre a questão nacional”, artigo escrito entre outubro e dezembro de 1913. Nele enfatiza:
“a tendência histórica universal do capitalismo à destruição das barreiras nacionais, a assimilar as nações, uma tendência que se torna de década em década mais vigorosa e constitui um dos fatores principais para a transformação do capitalismo em socialismo”.

Acrescenta: “O marxismo substitui a cada nacionalismo o internacionalismo, a fusão de todas as nações numa unidade superior, que se desenvolve sob nossos olhos, com cada novo quilômetro de ferrovia, com cada novo trust internacional, com cada nova associação operária”(2).

Essa visão da história tinha recebido sua formulação original em 1848, nas páginas fundadoras do Manifesto Comunista, em que Marx e Engels oferecem “a exposição geral das condições efetivas de […] um movimento histórico que se desenvolve sob nossos olhos”.

Nossos olhos enxergam cento e cinqüenta e nove anos a mais de história mundial do que os daqueles dois gênios do pensamento revolucionário, quando redigiram o Manifesto solicitado pela Liga dos Comunistas. Mas, retomando o que diziam os homens do Renascimento em relação aos gênios da Antigüidade, vemos mais longe do que eles porque estamos como pigmeus postados no ombro de gigantes. Naquele momento, era perfeitamente plausível a perspectiva de que, ao tomar o poder político e se tornar classe dirigente das sociedades em que mais se desenvolvera o modo de produção capitalista, a classe operária dos países europeus avançados emanciparia os trabalhadores e aboliria em escala mundial a opressão de classe em todas suas formas. Obviamente esse desfecho não estava datado, mas esperava-se que tardaria algumas décadas e não vários séculos. Hoje, sabemos que essa expectativa não se confirmou.

Não é entretanto por um ato de fé que, neste início do século XXI, continuamos a considerar o Manifesto uma referência fundamental para o combate contra a ordem do capital. Permanece inteiramente válida a análise da expansão planetária da burguesia e do caráter historicamente determinado das relações capitalistas de produção, cujos limites decorrem da subordinação do desenvolvimento das forças produtivas à lógica objetiva da valorização do capital. Amplia-se e aprofunda-se a contradição social fundamental entre os que vivem (ou tentam viver) da venda de sua força de trabalho e os que desfrutam das multiformes modalidades, notadamente das financeiras, da exploração capitalista. A solução para essa contradição está expressa no programa máximo do Manifesto: a emancipação social em escala internacional exige que os meios de produção, a ciência e a técnica se tornem, por meio da ruptura revolucionária da ordem do capital, patrimônio comum da humanidade.

2- Foram muitos os fatores que frustraram a expectativa de um triunfo revolucionário do proletariado europeu num tempo histórico relativamente curto. Engels apontou o primeiro deles numa carta a Marx de 7 de outubro de 1857:

“[…] o proletariado inglês se emburguesa cada vez mais; parece que esta nação, burguesa entre todas, quer chegar a ter, ao lado de sua burguesia, uma aristocracia burguesa e um proletariado burguês. Evidentemente, por parte de uma nação que explora o universo inteiro, isso é até certo ponto lógico”.
Um quarto de século depois, em outra carta a Marx (de 11 de agosto de 1881), ele se referiu “às piores trade-unions inglesas, que se deixam dirigir por homens comprados pela burguesia”; no ano seguinte, em carta a Kautsky, de 12 de setembro de 1882, desenvolveu as mesmas observações, apontado, com lucidez muito rara entre os socialistas daquela época, os efeitos perversos do “monopólio colonial” sobre o movimento operário inglês:

“Você me pergunta o que pensam os operários ingleses da política colonial. A mesma coisa que eles pensam da política em geral. Não há, aqui, partido operário; só há radicais conservadores e liberais. Quanto aos operários, eles desfrutam com a maior tranqüilidade […] do monopólio colonial da Inglaterra […] sobre o mercado mundial”.

Entrementes, em 1871, a Comuna de Paris tinha concretizado, com trágica grandiosidade, a primeira experiência histórica da tomada do poder pela classe operária. Ela o tomou, mas não conseguiu conservá-lo: isolados na capital, os “communards” foram massacrados pelo mesmo exército que acabara de capitular diante dos prussianos. Longe, entretanto, de “enterrar o proletariado militante”, a Comuna – notou Engels em 1895, último ano de sua vida(3) –, foi o ponto de partida de sua “mais poderosa ascensão”, principalmente na Alemanha, para onde deslocou-se o centro de gravidade do movimento operário. Reconheceu, porém, claramente que as expectativas do Manifesto tinham sido “desmentidas pela História”, na medida em que se comprovou que “o nível de desenvolvimento econômico no continente (europeu) não estava de modo algum maduro para a abolição da produção capitalista”. Essa constatação retificou a perspectiva histórica da tomada do poder pela classe operária, mas não a dinâmica objetiva que iria colocá-la na ordem-do-dia: a revolução socialista eclodiria onde e quando o desenvolvimento capitalista tivesse atingido sua plenitude. Com a ressalva, porém, apontada por Engels nas cartas acima referidas: o “monopólio colonial” exercido pela Inglaterra tendia a associar os trabalhadores do país capitalista mais desenvolvido à pilhagem do planeta, desviando-os do combate revolucionário, cuja linha de frente se deslocava para o continente europeu.

Ao se abrir o século XX, o acúmulo das descobertas científicas, o pujante desenvolvimento da tecnologia e das forças produtivas, com o conseqüente aumento exponencial da produtividade do trabalho nos ramos mais dinâmicos da indústria, suscitaram um otimismo que contagiou o movimento operário europeu organizado nos partidos da II Internacional. Esse vôo utópico foi muito curto. Desde o início dos anos 1910, a guerra foi sendo anunciada por sintomas inconfundíveis: carreira armamentista, aumento da duração do serviço militar, proliferação do nacionalismo xenófobo etc. França e Grã-Bretanha, de um lado, “impérios centrais” de outro, preparavam-se para decidir, em campo de batalha continental, quem ficaria com a parte do leão no mercado mundial e no botim colonial. A II Internacional mobilizou-se amplamente na luta pela paz e pela fraternidade dos povos. Mas não logrou impedir a orgia de sangue e de destruição em que chafurdou a “civilização” européia.

Só um punhado de dirigentes marxistas revolucionários manteve-se firme na luta contra a guerra após seu desencadeamento. Lênin, o mais célebre deles, compreendeu que a plenitude do desenvolvimento capitalista coincidia com uma crise que estava ameaçando a essência mesma da civilização moderna”(4), tornando-a indiscernível da barbárie moderna. Na primavera de 1916, em pleno dilúvio de chumbo e fogo que mudou brusca e catastroficamente o curso da história, ele preparou Imperialismo, estágio superior do capitalismo, em que, desmistificando as ilusões do marxismo amolecido da II Internacional, expõe uma visão nova, relativamente à do Manifesto, das conseqüências da expansão mundial do capitalismo. Mostrou que essa expansão, em vez de tornar o planeta econômica e socialmente homogêneo, trazendo os povos ditos atrasados para a civilização moderna, aprofundava a divisão do mundo entre países imperialistas e países explorados pelo imperialismo. É o que uma passagem do capítulo VIII (cujo título é “O parasitismo e a putrefação do capitalismo”) enfatiza:

“O imperialismo é uma imensa acumulação de capital-dinheiro num pequeno número de países […]. Daí o extraordinário desenvolvimento da classe ou, mais exatamente, da camada dos que vivem de rendas financeiras (rentiers) […], que estão totalmente alheios à participação numa empresa qualquer e cuja profissão é a ociosidade. A exportação de capitais, uma das bases econômicas essenciais do imperialismo […] confere uma chancela de parasitismo ao conjunto do país que vive da exploração do trabalho de alguns países e colônias d’além-mar […]” (grifos nossos)(5).

3-A hora mais sombria é a que precede a aurora. A lúcida e audaciosa política dos bolchevistas mudou o curso da história em outubro de 1917. Essa grande revolução dirigida por Lênin comportava, entretanto, pelo menos dois componentes fortemente heterodoxos: o partido de vanguarda (organização revolucionária “de tipo novo” relativamente à Liga dos comunistas em cujo nome Marx e Engels tinham redigido o Manifesto) e a aliança da classe operária com o imenso campesinato russo, sobre a base de um programa que garantiu aos camponeses a paz e a terra, livrando-os da hecatombe nas trincheiras da “Grande Guerra” e da exploração dos grandes agrários.

Considerada mero desvio de rota relativamente ao curso da revolução proletária previsto no Manifesto, a retificação bolchevista reativou a expectativa de que, rompido o elo mais fraco do capitalismo, o proletariado logo conquistaria o poder nos países economicamente mais avançados: o grande rio da história voltaria a seu curso normal. Quatro ou cinco anos depois, entretanto, no mesmo momento em que morria o fundador do bolchevismo, a vaga revolucionária do proletariado europeu quebrava-se nas muralhas da reação. Desde então, a dinâmica principal da luta revolucionária deslocou-se para o Oriente, onde sob a direção de Mao Tse-tung, os comunistas chineses levaram adiante, em duas décadas de heróicos e grandiosos combates, uma revolução nacional e agrária que livrou da opressão e da miséria um quinto da população mundial. A gloriosa vitória da União Soviética sobre a Alemanha hitleriana – numa Europa onde os comunistas tinham constituído a espinha dorsal da resistência ao nazi-fascismo – abriu, mais uma vez, a perspectiva concreta de repor a história no curso previsto pelo Manifesto. Mas uma vez mais, também, a história concreta seguiu, na segunda metade do século XX, um curso distinto. O imperialismo estadunidense contribuiu decisivamente, juntando os dólares do plano Marshall com a intoxicação da guerra fria, reforçada pela chantagem nuclear, para uma nova estabilização burguesa no ocidente europeu. Foram as lutas de libertação nacional na Ásia, na África e na América Latina que levaram adiante o combate revolucionário, transformando a geografia política do planeta.

Só um punhado de dirigentes marxistas revolucionários manteve-se firme na luta contra a guerra após seu desencadeamento. Lênin, o mais célebre deles, compreendeu que a plenitude do desenvolvimento capitalista coincidia com uma crise que estava ameaçando a essência mesma da civilização moderna

A derrota e o desmantelamento do bloco soviético provocaram a ruptura, em favor do bloco capitalista agrupado na OTAN, da correlação internacional de forças, abrindo brecha para um novo surto de agressões coloniais. Mas não só os povos periféricos sofreram as conseqüências perversas da contra-revolução burguesa de 1989-1991. Enquanto tinha durado o “perigo comunista”, as burguesias dos países imperialistas, principalmente europeus, aceitaram as conquistas sociais dos trabalhadores. A derrota do comunismo soviético permitiu-lhes desencadear, pela brecha aberta na década anterior por Reagan e Thatcher, ataque frontal ao “Estado de bem-estar”, ao qual o movimento operário tem resistido, com êxito variável. Mas a influência largamente majoritária dos partidos social-democratas sobre os grandes sindicatos europeus bloqueia a luta anticapitalista, sobretudo no terreno eleitoral. Em curto prazo, não se vê como pôr fim à alternância, sem alternativa de fundo, de governos neoliberais e social-democratas, ambos levando adiante, estes mais moderadamente, a mesma política de redução dos “custos sociais” da valorização do capital.

A contestação da ordem mundial imposta pelo capital financeiro provém, nesse começo do século XXI, dos povos e dos Estados que lutam contra a hegemonia estadunidense. Para eles, a grande tarefa histórica das próximas décadas é o desenvolvimento das forças produtivas e a distribuição a toda a sociedade dos frutos do progresso material. O aspecto principal da luta anticapitalista continuará sendo, provavelmente por muitas décadas, a luta antiimperialista. A conexão dessas duas lutas há de ser assegurada pelo movimento operário em aliança com o campesinato revolucionário, apoiados pela juventude e pela inteligência socialistas.

João Quartim de Moraes é professor de Filosofia da Unicamp.

Notas

1 Luigi Cortese “Lenin e il problema dello Stato”, in Lenin e il Novecento, Domenico Losurdo e Ruggero Giacomini, organizadores, Nápoles, La Città del Sole”, 1997, p. 244.
2 Cf. Lênin, Oeuvres, Paris-Moscou, tomo 20, 1959, p.21.
3 Na introdução a uma nova edição de As lutas de classe na França de Marx.
4 Cortese, ib., p. 244.
5 Cf. Lênin, Oeuvres, Paris-Moscou, tomo 22, 1960, p. 298.

EDIÇÃO 92, OUT/NOV, 2007, PÁGINAS 44, 45, 46, 47