No mês de outubro Belém do Grão-Pará
Pára num dia de trégua que nem preamar
Estanca a peleja de todo ano
Rio-Mar e Mar-Oceano indivisíveis no estuário
Quem não tem tempo de rezar no corre corre
O mês inteiro pra ganhar dinheiro
Se ajoelha na calçada imaginária
Ao ver o peso do Cirio de Nazaré passar
Cobra grande com cara de diversa gente
Centopéia de um milhão de pés e bocas cabocas
Fome de verdade e justiça
Atiça a demanda do paraíso perdido
De repente achado de graça num instante.

No mês de outubro Belém do Grão-Pará
Dá uma parada sem igual
Aquela maré humana transforma
O espetáculo do carnaval devoto
A rua suja pelo esgoto a céu aberto
Vira lugar sagrado onde era deserto
De bondade na cidade
Quem mora de aluguel no chão dos lobos
Já tem todo universo para habitar
Todo náufrago da belle époque da Borracha
Vai ou racha e será salvo em ribanceira
Justa e perfeita numa primeira manhã refeita
Na Ponte do Galo
Passado e futuro se confundem aqui agora
Quem foge do estado de sítio sem eira nem beira
Todo expropriado das ilhas do Marajó ancestral
Pelas armas e os barões assinalados
Contenta-se em ser feliz proprietário de Invasão
Nos arrebaldes da Feliz Lusitânia
De pressa paga promessa
Salva-se o coração ribeirinho de cada uma e cada um
No imenso estuário da diversidade da fé.

No mês de outubro Belém do Grão-Pará
É rio de rua cheia de homens e mulheres em procissão
Boca de sertão amazônico
Promesseiros, sesmeiros, posseiros e herdeiros
Do caboco Plácido rezador
Extraído do mato sem cachorro
Beira de igarapé a meio-caminho do Utinga
Uma rocinha entre civilizado e canibal tupinambá
Geração espontânea luso-tropical
Umas três casas e um rio apartado
Longe do laço do Paço e do cânone do Santo Ofício
Criança que não cansa da esperança no peito do velho
Mateiro amamentado no leite da seringueira
Pureza da Natureza divina de todas as coisas
Mãe do Todo Poderoso e nossa mãe também:
Que somos filhos de Deus e irmãos de Cristo nascido na Bahia
Ou em Belém do Pará…
Toda família é sagrada valendo tudo ou nada
Seja ela do reino vegetal ou animal
Seio donde a humanidade foi gerada graças a Deus
Mestra da fraternidade das diversas raças e feições
Livres da pena capital pelo sangue de Jesus Libertador
Salvos de trabalho escravo e confusão de seitas feitas
Sem pé nem cabeça rixentas à beça a vida inteira
Esperando a Morte chegar…
Questão religiosa superada com razão e emoção
Sete céus acima da besteira dogmática
Mais profunda que o abismo da Monarquia absoluta
Vencida na luta dia a dia
Aleluia!
Libertas Quae Sera Tamem
(libertas e serás também, tradução tupiniquim)
Ai de mim! Que não creio
Peço a Deus na voz do Chico Buarque pela gente humilde
Ó instante mágico do Círio de Nazaré!
Passagem dos inocentes
Transmigração materna infinita da aldeia galiléia
O mundo transfigurado no rosto amargo da multidão
Alquimia dos tijucos no ouro dos garimpos
Dourado na berlinda pela imagem sublimada da Virgem
Mãe antes do parto, durante e depois do ato Criador
Vida promovida do barro à alta glória Amém
Corda metafísica da necessidade material
Nossa de cada dia:
Fome sem nome de mãos, braços e pernas
A vida, a morte e a sorte eterna do extremo-norte
Vindas por diversos caminhos em procissão
Até à última fronteira da Terra sem mal
No país do Carnaval
Sob o sol e a chuva nos campos de Cachoeira
Os habitantes em busca ainda da terra da Promissão
O quinto império no reino de dom Sebastião.

No mês de outubro Belém do Grão-Pará
Paresque é o milagre do sítio da Nazaré
De Portugal transportado ao solo amazônico
Graça do achado da antiga terra sem mal
Profetas canibais convertidos
Do Bom Selvagem em bons cristãos
O santo Espírito seja louvado em prosa e verso
Em todas línguas havidas e por haver
De Lévi-Strauss ao santo homem Naom Chomsky
Não é à-toa que gente da Ilha pega canoa pra vir
À academia do peixe-frito comungar
Desta verdade nua e crua: o Círio é o natal
Paraense comedor de pato ao tucupi
Caboco nato do forte do Presépio em terra tapuia
Aleluia! Farinha no prato e peixe na cuia de açaí.

 

 

José Varella, Belém do Pará, 13/10/2007