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    Comunicação

    Poema pra quem não sabe rezar

    No mês de outubro Belém do Grão-Pará Pára num dia de trégua que nem preamar Estanca a peleja de todo ano Rio-Mar e Mar-Oceano indivisíveis no estuário Quem não tem tempo de rezar no corre corre O mês inteiro pra ganhar dinheiro Se ajoelha na calçada imaginária Ao ver o peso do Cirio de Nazaré […]

    POR: José Varella

    5 min de leitura

    No mês de outubro Belém do Grão-Pará
    Pára num dia de trégua que nem preamar
    Estanca a peleja de todo ano
    Rio-Mar e Mar-Oceano indivisíveis no estuário
    Quem não tem tempo de rezar no corre corre
    O mês inteiro pra ganhar dinheiro
    Se ajoelha na calçada imaginária
    Ao ver o peso do Cirio de Nazaré passar
    Cobra grande com cara de diversa gente
    Centopéia de um milhão de pés e bocas cabocas
    Fome de verdade e justiça
    Atiça a demanda do paraíso perdido
    De repente achado de graça num instante.

    No mês de outubro Belém do Grão-Pará
    Dá uma parada sem igual
    Aquela maré humana transforma
    O espetáculo do carnaval devoto
    A rua suja pelo esgoto a céu aberto
    Vira lugar sagrado onde era deserto
    De bondade na cidade
    Quem mora de aluguel no chão dos lobos
    Já tem todo universo para habitar
    Todo náufrago da belle époque da Borracha
    Vai ou racha e será salvo em ribanceira
    Justa e perfeita numa primeira manhã refeita
    Na Ponte do Galo
    Passado e futuro se confundem aqui agora
    Quem foge do estado de sítio sem eira nem beira
    Todo expropriado das ilhas do Marajó ancestral
    Pelas armas e os barões assinalados
    Contenta-se em ser feliz proprietário de Invasão
    Nos arrebaldes da Feliz Lusitânia
    De pressa paga promessa
    Salva-se o coração ribeirinho de cada uma e cada um
    No imenso estuário da diversidade da fé.

    No mês de outubro Belém do Grão-Pará
    É rio de rua cheia de homens e mulheres em procissão
    Boca de sertão amazônico
    Promesseiros, sesmeiros, posseiros e herdeiros
    Do caboco Plácido rezador
    Extraído do mato sem cachorro
    Beira de igarapé a meio-caminho do Utinga
    Uma rocinha entre civilizado e canibal tupinambá
    Geração espontânea luso-tropical
    Umas três casas e um rio apartado
    Longe do laço do Paço e do cânone do Santo Ofício
    Criança que não cansa da esperança no peito do velho
    Mateiro amamentado no leite da seringueira
    Pureza da Natureza divina de todas as coisas
    Mãe do Todo Poderoso e nossa mãe também:
    Que somos filhos de Deus e irmãos de Cristo nascido na Bahia
    Ou em Belém do Pará…
    Toda família é sagrada valendo tudo ou nada
    Seja ela do reino vegetal ou animal
    Seio donde a humanidade foi gerada graças a Deus
    Mestra da fraternidade das diversas raças e feições
    Livres da pena capital pelo sangue de Jesus Libertador
    Salvos de trabalho escravo e confusão de seitas feitas
    Sem pé nem cabeça rixentas à beça a vida inteira
    Esperando a Morte chegar…
    Questão religiosa superada com razão e emoção
    Sete céus acima da besteira dogmática
    Mais profunda que o abismo da Monarquia absoluta
    Vencida na luta dia a dia
    Aleluia!
    Libertas Quae Sera Tamem
    (libertas e serás também, tradução tupiniquim)
    Ai de mim! Que não creio
    Peço a Deus na voz do Chico Buarque pela gente humilde
    Ó instante mágico do Círio de Nazaré!
    Passagem dos inocentes
    Transmigração materna infinita da aldeia galiléia
    O mundo transfigurado no rosto amargo da multidão
    Alquimia dos tijucos no ouro dos garimpos
    Dourado na berlinda pela imagem sublimada da Virgem
    Mãe antes do parto, durante e depois do ato Criador
    Vida promovida do barro à alta glória Amém
    Corda metafísica da necessidade material
    Nossa de cada dia:
    Fome sem nome de mãos, braços e pernas
    A vida, a morte e a sorte eterna do extremo-norte
    Vindas por diversos caminhos em procissão
    Até à última fronteira da Terra sem mal
    No país do Carnaval
    Sob o sol e a chuva nos campos de Cachoeira
    Os habitantes em busca ainda da terra da Promissão
    O quinto império no reino de dom Sebastião.

    No mês de outubro Belém do Grão-Pará
    Paresque é o milagre do sítio da Nazaré
    De Portugal transportado ao solo amazônico
    Graça do achado da antiga terra sem mal
    Profetas canibais convertidos
    Do Bom Selvagem em bons cristãos
    O santo Espírito seja louvado em prosa e verso
    Em todas línguas havidas e por haver
    De Lévi-Strauss ao santo homem Naom Chomsky
    Não é à-toa que gente da Ilha pega canoa pra vir
    À academia do peixe-frito comungar
    Desta verdade nua e crua: o Círio é o natal
    Paraense comedor de pato ao tucupi
    Caboco nato do forte do Presépio em terra tapuia
    Aleluia! Farinha no prato e peixe na cuia de açaí.

     

     

    José Varella, Belém do Pará, 13/10/2007